domingo, 30 de dezembro de 2018

Happy new year please

jesus
já deu jingle bells de novo
jeans
roto nos joelhos de fábrica
presente de papai noel
todos os ditos ainda vivos
ficamos um ano mais velhos
de novo
velho não valho nada
é tudo
que tem a dizer babaca
algum dia será vali
sei que dei
bastante vale
refeição
pra qualquer coisa que fosse
vai dezembro vai xô
vem janeiro vem
fevereiro e março 
april in paris
new york in december
again
engole mais um
outro e mais outro
o peru gluglu está quase pronto
não deixa passar do ponto
vai dar pra todo mundo
não óbvio que não
só se for de pica grossa
cruzes nossa
o resto depois eu conto
se houver tempo
nove oito sete seis cinco quatro três dois um
zero
mãos ao alto
oremos
brindemos
depois
bom só na roda da boa fortuna
que deus nos proteja
pelo menos em parte
a parte que nos cabe
é claro
serve champanha saltão demi-sec
sirvo
então
cheers

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Feliz Natal

rola pela inóspita encosta
da ética
ribanceira abaixo
a moral

mandatário o mercado
sob a tutela do capital
pouco valor têm o bem e o mal
quem estiver fora está ferrado

rodam as estações no tempo inexorável
ronda o pressentimento
apesar das aparências em contrário
que as coisas vão de mal a pior

murcha mais uma árida primavera
passa a gotejar o suor
sob o sol escaldante
de outro verão sufocante

cobertos de pedra os caminhos
orlados por espessa erva daninha
conduzem pra profundo precipício
vastidão do tripúdio ao estropício

surpreendida a alma por gélido sopro
arfa um instante depois imóvel se cala
braço invisível na voragem põe o corpo
matéria perecível do sentir não sabe a fala

mesmo quem quer se soltar da terrível teia
tendida sobre a cabeça se esgarça nutante
entre recusar ou assentir em ceder a veia
para vampiros o sangue sugar radiantes

chegam aos confins do mundo
os ares mais insalubres
todo recanto tem um canto imundo
a situação é cada vez mais lúgubre

pela fresta do ralo da pia
furtivamente
baratas apreciam a lua cheia
brilhando alta no céu

um dia todos vamos pro beleléu
mas por ora é hora de festa
assim alegres ainda que breve
riamos até o raiar do dia

domingo, 16 de dezembro de 2018

PT 14 - alternativa é sair para a rua

alternativa é sair para a rua
enfrentar sua crueza nua
ingenuamente
imaginar afastar a melancolia
correndo atrás de mercadorias
os muros sujos pichados
o lixo espalhado
a lama a lama
o rio transbordado
o fedor as fezes
sentir nojo enjoo
vomitar sobre a cidade
a cólica a cueca borrada
o assalto o sequestro
o tiro a morte
a polícia
milícia propícia
aos crimes
esperança perdida
em tempo de injustiça
o tráfego o tráfico
trêfego trófico
curtição da ração diária de erro
voltar para casa
salvo-conduto
ilusão da segurança
das cercas elétricas
lentamente
a mão trêmula esfregar a cara
forma insegura tentativa inútil
de arrancar o tédio lhe dar um fim
justamente
a melhor parte de mim

domingo, 9 de dezembro de 2018

PT 13 ─ sob a pele de parvas palavras

sob a pele de parvas palavras
se escondem códigos cifrados
mal usados por eles por mim
pretensamente poetas estafetas
entrementes do tipo chinfrim
rigorosamente uns caras de pau
pra tentar soletrar o mundo imundo
já inundado de tantos poemas maus

domingo, 2 de dezembro de 2018

PT 12 ─ amiga estou inebriado pela voz

amiga estou inebriado pela voz
que sai desta tua matraca
ah! se tivéssemos a sós...
francamente não sei se é boca ou cloaca

quando se abre lançando petardos
que explodem em meus ouvidos
estarrecido aqui fico no aguardo
implorando que cesse o zumbido

minha casa de veraneio na praia
comprada com tanto sacrifício
com a separação ficou pra lacraia
até o fim só me causou malefício

pelo menos agora estamos distantes
graças a deus me sinto menos aflito
desejo que mesmo sob sol escaldante
o ar sobre ela se anuvie de mosquito

não me creio digno sequer de pensar
no que meu saudoso pai cansou de dizer
com essa jararaca filho não deves casar
ouve minha advertência tu vais se foder

porém tapei os ouvidos pro sábio conselho
fui estúpido falei pra ele não meter o bedelho
mas a união nascia alimentada com o fermento
da discórdia causadora de todo meu desalento

dei tudo de mim e sempre estava no fundo
vivia meditabundo na iminência do fim
tentei um lance arriscado fiquei petrificado
traição era tarde pro meu coração covarde

assim me esvaziei de mim
como um objeto abjeto
dejeto lançado no esgoto
tratado como um cara escroto

inútil destroço atirado no abismo
fosso escuro pra curtir acritude
se fosse minha maior virtude
o cinismo

domingo, 25 de novembro de 2018

PT 11 ─ onde há vida

onde há vida
existe criação
pra peitar a morte

as coisas não têm em si poesia
a poesia é uma coisa
usada pra tirar poesia das coisas

os acontecimentos
são só acontecimentos
perante a poesia aproveitados
pra revelar ou não sentimentos

os segredos dentro das casas
o rumor de gente nas ruas
as pessoas em sociedade
diante da poesia são invocados
ou deixados repousar em paz

da fome da saciedade
do cansaço do descanso
da secura da chuva
do equívoco da longa viagem no escuro
do calor da luz do dia claro
nada significam além
de seus significados
reinterpretados ou abandonados
ao deus-dará pela poesia

a bile a careta de gosto amargo
o riso sardônico o gozo frustrado
a dor ampliada o corpo excedente
exumando sepultado passado
recomposição da lembrança
enfrentamento no espelho do presente
dissipação da esperança
caso se queira
são matéria de poesia
para tanto é preciso destarte
não se importar em mentir iludir
não se aborrecer em fazer
algo imprestável perecível
no curto ou longo arco do tempo
pois é pra isso que existe
a profissão de procurador de poesia
ou vate (à merda)
ou bardo (carrega dor do farto fardo)
ou poeta (pateta sujeito abjeto predicado com posto)

domingo, 18 de novembro de 2018

PT 10 ─ o bafo quente do vento bate

o bafo quente do vento bate
na cara crestando a pele
no alto o azul se tinge de branco projetando
no espelho tremelicante sombras esconsas
no baixio as águas se engolfam provocando
estrondos intermitentes que ensurdecem
ora menos ora mais
às vezes espuma borrifa os pés
descalços sobre a rocha rugosa
a cabeça permanece baixa
entrementes a mente em rodopios
eis que levanto a fronte
encaro o rebojo
que irrompe estrepitoso
dispara rumo a mim
no fundo profundo
cessam
o calor da pele
os estrondos
os rodopios
esta ingênua pilhéria

domingo, 11 de novembro de 2018

PT 9 - nestes tempos sujos

nestes tempos sujos
estas palavras amarradas
deixam um rastro de mesquinhez
nestes tempos sujos
esta boca seca
traz como mensagem a derrota
esperança
forma rara secreta dura
recusar-se ao grande
aceitar o mínimo
os temas passam
as pessoas passam
tudo passa
o presente passa
passou o passado
o futuro passará
tudo passará
resistir reexistir
fogo orvalho
firme bandalho
fiel fugaz
sublime destino grotesco
a lâmina atravessa
a carne o osso
a pedra o fosso

domingo, 4 de novembro de 2018

PT 8 ─ o velho muro recém-rabiscado

o velho muro recém-rabiscado
esconde o arco do céu sombreado
nuvens sobre assento mal-acabado
onde sento minha bunda bolorenta

as formas frias que se dispersam ao léu
perturbam a paz do homem que cata papel
as veias do mundo imundo estão entupidas
de ganância e maldade pelo rabo ingeridas

amanhã talvez amanhã hoje não hoje não
talvez vá ao supermercado comprar pão
hoje fico por aqui me ajeito com bolacha
polenta talvez não sei o que você acha

domingo, 28 de outubro de 2018

PT 7 - me poupa imbecil de ser caluniado

me poupa imbecil de ser caluniado
por estes porretas mui amigos dos poetas
que querem se passar por profanos profetas
e fazem papel de patetas bando de veados

têm a moral mais suja que pau de galinheiro
se vendem dando falsos laudos por dinheiro
enquanto eu fico aqui com esse jeito infantil
me achando importante nesta manhã primaveril

entrementes o vento gira o meu cata-vento
o núncio anuncia o fechamento do convento
tudo se expõe menos minha da breca cabeça
quero que o diabo goze e o mundo me esqueça

domingo, 21 de outubro de 2018

PT 6 ─ vou dormir com a fronte crestada

vou dormir com a fronte crestada
para ouvir os espíritos malévolos
bando pairando no ar almas penadas
prontas pra penetrar meus alvéolos

no recesso do quarto escuro
ficam rente ao teto esvoaçando
sem alarde minha ruína tramando
enquanto me estendo na cama duro

da janela o assobio do vento na fresta
quem sabe não fosse um aviso de alerta
dos segredos da eiva que estou condenado
construir com eito malfeito quando acordado

domingo, 14 de outubro de 2018

PT 5 ─ ataca com sua matraca emperrada

ataca com sua matraca emperrada
a patroa da mal paga empregada
enquanto o barquinho dorme no porto
seguro na mão o leme que treme torto

do mocho acorda o moço com frio
por poucos segundos o agudo pio
do instante distante em desalento
veio em busca de lavor mais lento

por favor chega de tanto desamor
agora gozar livre da fratura a dor
pois não sabes que as sebes maduras
aturam as agruras das manhãs futuras

domingo, 7 de outubro de 2018

PT 4 - se tu me amas me ama de pernas abertas

se tu me amas me ama de pernas abertas
não sejas modesta nem banques a esperta
deixa em paz o pífio do teu padrinho
e vem aqui pegar no meu passarinho

se quiseres assim
será bom para mim
mas tem de ser bem devagarinho amada
pois meu tesão é zinho vem a vai num nada

domingo, 30 de setembro de 2018

PT 3 - pai verdadeiro conhece seus compromissos

pai verdadeiro conhece seus compromissos
e os enfrenta sempre com grossa coragem
não se esconde atrás de índole retraída
bem como não comete traição aventurosa

mãe sagaz quer que sua prole no entanto
consiga benfazeja abastança contanto seja
ela de origem certa para depois não trazer
a malignidade que todo desacerto possui

procriar um cara vadio é grande desgraça
ladrão então nem pensar fora de cogitação
sempre há negócios misteriosos para fazer
que mais adiante causam um proveito vazio

vitimado pela febre da posse fácil de ouro
aceita vender a honra por pernicioso dinheiro
precipitado no erro aguarda o dia da confissão
para talvez transformar o ganho podre em cinza

domingo, 23 de setembro de 2018

PT 2 - no transcurso suado da vida nunca se lastimar

no transcurso suado da vida nunca se lastimar
quando o fado nos deixa infelizes não se indignar
mesmo sob efeito da dor mais atroz não se agitar
decerto são bons conceitos que tentam nos ensinar

mas cedo acendemos os mais estranhos vícios
e logo a eles descobrimos providenciais escusas
antes inútil consolo que acreditamos a salvação
invenção curiosa que no final termina em nada

curta é a aventura em que fomos confiar
de repente o tempo escuro faz tudo girar
com estupidez enorme sem dó de estragar

a divertida brincadeira que aqui foi nascer
e nos coloca sem graça de queixo caído
face ao fato inevitável de ter de morrer

domingo, 16 de setembro de 2018

PT 1 - então entornei a taça vazia

então entornei a taça vazia e
diletante celebrei o ícone morto
coração fraco haveria de chorar
sozinho arrasto o vil gravame
me perdendo no concreto
que se ergue sobre o asfalto
quente submisso aos pneus
soturnos louco derrotado
abafo o soluço e me infiltro
velhaco pelas vias ásperas da
cidade em que coagula um ar
de chumbo sobre águas turvas
a banhar esgotos podres
e o lixo resiste nas calçadas
abandonadas pisadas por nós
flácida chusma tacanha que não
se abala em poluir sem vislumbrar
o torto crucifixo que nos fará gemer
amargo à sombra da caverna
com nada mais para barganhar
além de apontar um balaço falso
ou decepar o frouxo pescoço inútil
encruzilhada para nos destruir
entrementes ausentes de rebuço
plácidos nos fechamos em torres
oblíquas para gozar molemente
lamentando a inefável corrosão
dos tímidos inertes escória a se
untar de ferro e fumaça ao estalar
da dura calcadura e torcemos o
nariz ao mau cheiro mostrando
repulsa ao jogar-lhes gravanhas
sem nela tocar súbito algo ruge
força cuspir o fel da garganta
mas em seguida se acalma logo
volta tudo de novo ao normal
com a cuspida caindo no nada

domingo, 9 de setembro de 2018

‘Y-pyrang-a

aqui do alto de uma das janelas do apartamento
vejo lá embaixo bom trecho do histórico riacho

certamente sua cara está bem mudada comparada
àquela que apresentava à época da independência

o projeto original do criador foi bastante modificado
o traçado reto obedece à vontade insaciável dos carros

se outrora suas plácidas margens ouviram
o retumbante brado de um heroico povo

hoje esse povo heroico cumpre patriótico rito e deposita
regularmente em suas erodidas margens ricas oferendas

entulho resto de obra sobra de telhado madeirame podre
sofá mesa cadeira esmigalhados carcaça velha de televisão

mal-agradecido o riacho rejeita tão respeitosas dádivas devolve
tudo nas chuvas seguintes em forma de magníficas enchentes

a etimologia do nome baseada no bom senso dos silvícolas
nos ensina do vermelho de suas antigas águas nada mais restar

desembocando ao longo de toda sua extensão os esgotos
se incumbem de colori-las de outra cor o marrom-cocô

também pudera outra não poderia ser mesmo sua sina
a dar-se crédito da nossa história às línguas viperinas

na ocasião do simbólico ato viera o príncipe regente à capital
da província paulista para resolver importante pendência política

embora no duro o que queria era afogar o ganso nas coxas apetitosas
da marquesa enquanto no rio chorava dona leopoldina desditosa

acolhido por imprevisto mal-estar intestino pedro primeiro ainda não feito
sem vacilar um segundo largou seu planaltino barro bem na beira do ribeirão

completando a obra ordenou lavassem a iminente bunda imperial nas então
cristalinas águas depois desembainhou a espada e soltou o famoso grito

domingo, 2 de setembro de 2018

Vaga visão

amanhecia
a vidraça da sala rústica
testemunhava
difusa claridade que pouco a pouco
substituía
o negrume da noite
uma aragem atrevida
percebendo um dos vidros da vidraça quebrado
escafedia-se para o interior
espalhando frio no ambiente

o homem
fechou o volumoso livro de aspecto envelhecido
pousou-o sobre a mesa de madeira carunchada
apagou o lampião
levantou-se lentamente
amassando a ponta de mais um cigarro
no tosco improvisado cinzeiro
entupido de guimbas e cinza
raspou a garganta para soltar o pigarro crônico que
há anos o acompanhava
espreguiçou-se
vestiu o gibão
dobrado no espaldar da cadeira de palha
única que havia na sala
esticou as perneiras
bateu duas ou três vezes as alpargatas
contra o chão cimentado
ajeitou o chapéu de couro na cabeça e
saiu porta afora

não se enxergava um palmo diante do nariz
cada beco
era dominado pelo cinceiro

o bléin-bléin-bléin do cincerro
vindo de um ponto perdido do meio do brancor geral
provavelmente alguma vaca recém-parida
conduzindo o sinuelo
para mais uma jornada de pastagem
feria com nostalgia os ouvidos
o homem
caminhou na direção do sinceiro
plantado ao lado da casa
seu verdadeiro companheiro sincero
pernoitava ali
numa cocheira improvisada

o homem
levantou a aldraba e
abriu a porteira apodrecida

o animal
soltou um brando relincho
parecendo querer saudar aquele que
chegava novamente tão cedo
foi a passo em sua direção

o homem
apanhou a albarda
há muito se fora o tempo dos arreios com adereços de metal
apoiada na cerca meio bamba e
ajustou-a sobre o lombo do cavalo
escondendo parte de suas costelas
recolheu a alabarda
caída no chão
montou
empunhando a arma
apontada para frente
imprimiu um trote ligeiro na montaria

posando de cavaleiro
furou a densa neblina
desaparecendo sem deixar vestígio

domingo, 26 de agosto de 2018

Um par ímpar

ir além dos braços
no abraço
tecer e ser tecido
pulverizar-se
no enlaçar-se
deixar de existir como indivíduo
passando a existir dentro do outro
abrir-se ao estranho
abismando-se no outro
reconhecer a alteridade
sem perder a própria identidade
aprender a gerir um corpo alheio
sabendo guiar o próprio corpo
ir da superfície mais visível
até o escuro âmago invisível
tocando lá no fundo a alma
ouvir dessa junção pulsante de espírito e matéria
foco de felicidade e sofrimento
seus ecos festivos e lúgubres
saber o que fazer
mesmo sem saber que sabe
e então fazer

domingo, 19 de agosto de 2018

Três forças vitais

três podem ser consideradas
as forças da natureza
que tornam a vida possível

a força de impulsão
são os desejos
podemos chamá-la de eros

a força de manutenção
são as necessidades
podemos chamá-la de anake

a força de contenção
são as limitações
podemos chamá-la de tânatos

ao conjunto de desejos
chamaríamos erotismo
o erotismo busca como recompensa o prazer
o erotismo pode ser
sexual
em que o prazer se liga
ao sexo
geral
em que o prazer se liga
à vaidade
ao orgulho
à honra
ao poder
à conquista
ao domínio

as necessidades
são o conjunto de fatores
indispensáveis à sobrevivência
do indivíduo
alimento
repouso
abrigo
da espécie
reprodução

tânatos é a força
impositora de limites à vida
na tentativa de coibir
exageração de desejos
no esforço de suprir
carência de necessidades
seu limite extremo é
a morte
morte que deve ser entendida
como profilaxia da vida

domingo, 12 de agosto de 2018

Toadilha

— pro meu amor com carinho —
(parodiando o mestre mb)

fui sempre um homem triste
mas depois que tu vieste
ganhei de todo a alegria
fiquei alegre alegre alegre

nunca dantes me sentira
tão feliz assim
é que ando dentro da vida
com vida dentro de mim

domingo, 5 de agosto de 2018

Ter um dom é bom

ter um dom é bom
mas não é tudo não
muitas vezes é nada
o dom vira fumaça
pra fazer algo acontecer
a gente tem que se mexer

domingo, 29 de julho de 2018

Strano amore

apregoou sempre pra deus e o mundo
seu amor maior pelo filho
protegeu tanto o marmanjo
adulou tanto o malandro
que deu no que tinha de dar
virou um come-caga-dorme imprestável
um trastalhão símbolo da inutilidade

mesmo assim segue sua ação desatinada
dizendo que ama demais o salafrário
que é sua sina que não pode fazer nada
que não consegue agir de modo contrário

domingo, 22 de julho de 2018

Soneto da sinusite

doutor por favor uma informação
qual a razão de tanta constipação
caro paciente é o ar puro da cidade
não respeita sexo cor credo ou idade

dor na cara dor na testa dor nos olhos dor nos dentes
dor em cima dor embaixo dor no lado dor na frente
da vermelhona napa de ranho não cessa o corrimento
da garganta sai um fedido catarro amarelo visguento

do jeito que as coisas estão indo
boas razões há para se acreditar
que em breve mais um defunto lindo

dentro dum caixão coberto de flores
na tumba os vermes vão degustar
para que goze o fim de suas dores

domingo, 15 de julho de 2018

Sexo e gênero

sexo é órgão reprodutor
distingue o macho e a fêmea
macho tem bililiu fêmea tem xoxota sem esquecer o assexuado
é fornecido pela natureza resultado da genética da procriação

gênero é categoria
distingue classes a partir de contrastes
por exemplo masculino feminino sem esquecer o neutro
é instituído pela cultura resultado destarte de convenção

os seres humanos convencionaram corresponder
ao sexo macho o gênero masculino
ao sexo fêmea o gênero feminino

é constante a confusão entre sexo e gênero porém
essa é uma situação que não convêm
cada um é cada um e assim devem ser respeitados

zelar pelos filhos cabe a ambos os gêneros
masculino e feminino mas tradicionalmente
as mulheres ficam com a maior carga embora
essa situação esteja mudando lentamente
por outro lado amamentação natural
até o momento é exclusividade da fêmea
ou seja é questão de natureza sexual

vestuário obedece a parâmetros de gênero
o uso de vestido é moda vinculada
ao gênero feminino generalizadamente
resultado de evolução culturalmente
assim instituída pela sociedade humana
que muito bem poderia ser diferente
nada impede que indivíduos do sexo dito forte
desfilem por aí com minissaia bem justa
pondo em destaque glúteos e órgão genital
e exibindo patéticos pares de pernas peludas
depende só de uma origem convencional
embora convenhamos de duvidoso gosto

diversa acredito que seja
a situação envolvendo
o crescimento de barba na cara
ou a ocorrência
via de regra incômoda
de vinte oito em vinte oito dias
para as mais reguladas
da presença da menstruação
desde uma tenra idade com pausa
para eventual gestação
até a vinda da calórica menopausa
fenômenos de biológico nexo
intrinsecamente ligados ao sexo

domingo, 8 de julho de 2018

Sabedoria de vida

sabedoria de vida dizem
é saber tirar o bem do mal
isso me faz lembrar a mimosa
esquálida vaquinha malhada
do meu avô amedeo
sitiante de modestos recursos

ele mantinha a mimosa num pasto de tiririca
e a mimosa perseverava dando seu máximo
para conseguir tirar daquele pasto pobre
leite quase todos os dias

poucos litros mas tirava
conseguia tirar também bosta
muito mais bosta do que leite
evidentemente

domingo, 1 de julho de 2018

Realidade inevitável

há de vir o dia em que
não mais perambularei pela cidade
nem sequer por qualquer outro ponto do planeta
aí quereria me ver transformado num cometa

mas qual o quê?
o lugar certo para ser encontrado
será um buraco escuro e deletério
uma cova do cemitério

ali restarei com a minha carcaça
putrefata pasto para vermes vorazes
devoradores de carne morta de gente
saneando o nauseabundo ambiente

transformado num amontoado de ossos
lá continuarei na maior tranquilidade
caído no mais completo esquecimento
do mundo em seu perene movimento

domingo, 24 de junho de 2018

Questão de palavra

o menino-manoel
poeta maior que
a partir de grosso mato vocabular
cultivou grande campo poemático
em certo ponto de
seus rupestres poemas afirma
sofrer um encantamento poético
ao olhar a garça-ave e a palavra garça
embalado que fica pela comunhão
do corpo níveo da ave com
o corpo sônico da palavra

não me atrevo a desdizer as palavras
do ilustre bardo das ignorãças
sábio entendedor de tudo sobre o nada
contudo se deus me prouvesse
ser poeta e poeta pantaneiro
a palavra aveira
que eu teria escolhido
seria tuiuiú
não só pela beleza da ave
ave-símbolo do pantanal
mas também pela sua exuberância letral
nome de pronúncia meio difícil
que entrementes é como as gentes
costumam popularmente chamar o jaburu

como não sou campesino eu sou citadino
e nem poeta talvez eu seja se tanto
um poetastro menor cretino
fico mesmo com a palavra urubu
urubu no nome contém três vogais u
todas em posição de destaque
o que segundo uns ditos entendidos da língua
“por ser uma vogal grave fechada velar e posterior
costuma integrar signos que evocam
coisas fechadas escuras
inspiradoras de
sentimentos de angústia
experiências negativas relacionadas à
doença
sujidade
tristeza
morte”
tudo bem de acordo com o que pretendo aqui representar

a tais considerações de natureza lingual
agrego outra respeitante à natureza do animal
que pelo seu altruísmo pode sem dúvida ser
eleita a ave-símbolo desta metrópole
dados os relevantes serviços que presta
ao bem-estar geral da comunidade
como fiel auxiliar das autoridades
responsáveis
na medida do possível
pela limpeza dos logradouros
labuta diuturna que visa
atenuar de tais ambientes
para menor desconforto
da parte boa da população
a presença inconveniente de
carcaça de bicho morto
lixo em decomposição e
tantas outras podridões e sujidades
que empestam cada canto da cidade

domingo, 17 de junho de 2018

Que esperança

ainda hei de tê-la um dia
não palavra vaga
em vão pronunciada
terá de ser palavra forte
pra querer vencer a vida
pra enfrentar até a morte
única talvez capaz de levar além
de um mesquinho só sobreviver

não palavra vazia
saída da boca pra fora
mas principalmente também
o bendito fruto do ventre dela
pra adoçar o fel do céu da boca
chegar até ao fundo das entranhas
e nesse escuro âmago quem sabe
algum tempo aí conseguir permanecer

ainda hei de tê-la um dia
a esperança de poder compreender
toda esta oca barafunda

domingo, 10 de junho de 2018

Que

que este corpo outrora sempre tão entristecido
seja agora contemplado no que lhe resta ainda
ao menos com um pouco das benesses da alegria

que eu me livre de pensamentos em desalinho
ciência imprecisa comportamento em desatino
noites inimigas mal dormidas rosto envilecido

que eu ame agora sem ranço e amargura
seja amado em plenitude ímpeto e ternura

que eu esqueça de querer entender a incoerência
de como alguém diz amar usando prepotência

que do passado não me lembre mais de nada
e rápido seja também totalmente olvidado

domingo, 3 de junho de 2018

Puindo a manhã

sabe joão não sei nem por onde começar
uma explanação que antes até do seu início
já sente ardente vontade de se encerrar
só tem gana de tomar chá de sumiço

sabe por que mui prezado poeta?
a situação dela vai de mal a pior
anda tomando tanto na crica quanto na roseta
e rola bitola da grossa tamanho do maior

nestas megaplagas urbanas escasseiam cada vez mais os galinheiros
o tempo passa e cada vez mais raros os gritos de verdadeiros galos
o consumo exige do povo laborioso ganhar cada vez mais dinheiro
e a manhã se esgarça tecida a fios de sol cada vez mais sem halo

tendas mendigas se entretendem em todos os cantos praças pontes viadutos
luz só artificial de eletricidade pois é expressamente proibido soltar balão
nem com alvará assinado pelo presidente nem mesmo com salvo-conduto
evidente o perigo de graves incêndios além do potencial prejuízo à aviação

domingo, 27 de maio de 2018

Prêmio literário

de repente me dei
a veleidades de escritor
afinal hoje
com este negócio de internete
todo mundo virou escritor
embora poucos saibam escrever
dentre os quais sem topete
não tenho certeza de poder
talvez não ser incluído
hoje praga maior que escritor
só palestrante de curso de autoajuda
que ganha uma nota preta vendendo receita
pra simplório achar a paz e ficar milionário
por favor não fiquem ofendidos
senão será um deus nos acuda

escrito o primeiro livro
não pestanejei um segundo e
me dirigi cheio de pompa
com os originais debaixo do braço
ao escritório da famosa editora multinacional
ia exigir a imediata publicação da obra genial
— ah ah ah doce ilusão
não passei nem da recepção

o remédio foi procurar uma editora não tão famosa
depois outra um pouco menos conhecida
depois outra
depois outra
depois aquela totalmente desconhecida
afinal só me restou mesmo
publicar a obra-prima e única
pagando do meu próprio bolso
fiz pelo bem da humanidade
nada a ver com esta coisa de vaidade

contratei a edição mais barata
em termos de qualidade de impressão
contava com a riqueza do conteúdo
pra superar a pobreza da aparência
e também de quantidade de exemplares
minha família é pequena
bem poucos são os amigos
pouco maior o número de desafetos

nem bem o livro saiu do prelo
enviei todo orgulhoso
e por que não confessar
também esperançoso
um exemplar pra concorrer
ao tradicional prêmio literário
se conquistasse tal galardão
seria minha consagração

passadas algumas semanas
recebi da comissão organizadora do prêmio
uma carta atenciosa
na gentil missiva aqueles ilustres senhores
me recomendavam que inscrevesse o livro
num outro concurso literário
recém-instituído no país
destinado a relevar novos talentos das letras pátrias

o nome do referido concurso era inspirado
igualmente num animal da ordem dos quelônios
mas cuja acentuação havia sido modificada
por uma simples questão de estilo
para acompanhar a prosódia natural
da língua portuguesa brasileira
que é como todo mundo sabe
principalmente paroxítona

segundo as palavras
ao que parece sensatas
dos amáveis responsáveis
pelo famoso prêmio
num concurso menos renomado
provavelmente
aumentaria um pouco minha chance
de conquistar alguma coisa que fosse

após ponderar sobre o assunto
decidi seguir o conselho
dos conceituados senhores
de diminuir o azar de entrar pelo cano
e inscrevi minha obra no novo concurso
o prêmio cagado do ano

passados alguns meses
ao ter conhecimento dos resultados
pela imprensa especializada
confesso que fiquei meio decepcionado
não conquistei nem um premiozinho
um mísero que fosse a título de consolação
o que me levou a tomar uma decisão

em respeito ao bom senso
e atento à minha ociosidade
vou mudar de atividade
vou encerrar essa história
de pretender ser escritor
doravante esquecerei a glória
serei só um telespectador
desses em tempo integral
todo trabalho intelectual
vou de uma vez esquecer
e pregarei a bunda direto
bem em frente da tevê

domingo, 20 de maio de 2018

Pontos cardeais

subi num avião e fui em direção ao leste
pra tentar localizar o foco da infecção

encontrei país de tradição milenar falando língua moderna
nowadays here in china we make everything

se confúcio fosse vivo será que entenderia tamanha confusão?
o velho mao diria em bom mandarim pior só puxar palanquim

espelhando-me no exemplo dos grandes viajantes do passado
peguei um transporte em pequim e segui o caminho das mercadorias

vim para ocidente desemboquei bem aqui no meio do novo oeste
principal centro consumidor de todas as quinquilharias made in china

um tanto desanimado vesti meu gasalho e tomei a rota do sul
após uns dias de navegação me deparei com um bando de pinguins

todos eles cobertinhos por reluzente espessa camada de petróleo
se ajeitavam debaixo do buraco de ozônio para melhor se secar

em busca de boa sorte apontei rumo norte
subi um alto edifício no polo financeiro do mundo

para minha desagradável surpresa fui acolhido pelos braços da morte
quando o tal edifício alto veio abaixo ao colidir com uma aeronave

domingo, 13 de maio de 2018

Poetar hoje

poetar hoje perdeu o charme a elegância
a importância que teve no passado
o poeta hoje é uma figura sem valor
completamente desprestigiado
o editor hoje só de olho no mercado
foge da poesia como da cruz foge o diabo
exceção bem rara para
um ou outro poeta muitíssimo afamado
assim enquanto paciente aguarda a consagração chegar
resta ao poeta hoje ilustre desconhecido
ao menos um consolo literogeniturinário
fazer do seu poetar um punhetar
e ir gozando o melhor que puder um gozo solitário

domingo, 6 de maio de 2018

Poema escatológico

merda tudo é uma merda
eu sei que vocês vão dizer que é tudo mentira
que eu invento estas coisas só pra extravasar
meu péssimo pessimismo meu mau humor crônico
mas podem crer é tudo verdade isto que me aconteceu
juro por deus
o dia amanhecera lindo ensolarado
logo cedo no café da manhã falei pra minha querida esposa
— amor vamos para o litoral aproveitar o feriado
ao que ela me respondeu
— vida minha vai você prefiro ficar em casa curtindo meu resfriado
decidi ir mesmo sozinho
quando fui dar partida no carro a bateria estava arriada
o auto elétrico socorro demorou um tempão
e cobrou uma nota preta por uma bateria nova
peguei a estrada completamente superlotada
no meio do caminho parei num posto de combustível
pra botar gasolina no tanque e tirar a água do joelho
a gasolina estava 30% acima do preço tabelado
e tinha uma baita fila pra entrar no sanitário
chegada finalmente minha vez de urinar
me deparei com uma privada tão entupida
que a merda escorria pela borda
a cena me causou tamanho engulho
que o xixi ficou com a saída bloqueada
na orla da praia considerei ter dado sorte
estacionei o carro numa vaga sombreada
debaixo de uma exuberante amendoeira
ao lado de um canal que conduzia um líquido putrefato
exalando um fedor insuportável de esgoto puro
para desembocar sem nenhum constrangimento
diretamente nos braços acolhedores do oceano
antes de dar um mergulho julguei saudável
fazer uma boa caminhada pela praia
logo aos primeiros passos na areia
senti uma coisa mole se entranhar pelos dedos do pé esquerdo
ao verificar de perto o ocorrido constatei se tratar
de genuíno cocô de cachorro de raça
procurei não perder a calma até achei graça
não pretendia de jeito nenhum estragar o meu dia
lavei aquela sujeira na espuma da arrebentação
tendo o cuidado de esfregar bem com areia molhada
depois entrei na água pra aliviar a bexiga que quase estourava
entre uma onda e outra boiava eu sossegado
quando sinto algo bater no meu costado
me virei e — valha-me deus nossa senhora
dei de cara com um cagalhão com mais de palmo
de comprimento bitola de pelo menos polegada e meia
num primeiro instante instintivamente pensei
— este baita quando saiu deve ter arrebentado de duas a três pregas
e completei o raciocínio
— a menos que o autor ou autora da façanha tenha o rabo acostumado
a agasalhar uma boa trolha
em seguida considerei oportuno sair da água dado o adiantado da hora
fui almoçar num restaurante chique da cidade
porque não era de hoje tinha eu essa vontade
esperei cerca de sessenta minutos por um mísero lugar
acomodado por fim numa mesa perto das toilettes
pedi ao maître uma caesar salad só pra esnobar
mas o destino resolveu rapidinho me castigar
protegida por um croûton
à sombra de uma folha de alface americana
besuntada de creme de leite e maionese
uns fiapos de queijo ralado nas costas
e um pedacinho talvez de alice na boca
uma lesma lentamente numa boa a sacana
fazia as necessidades bem no meio do meu prato
revoltado levantei e me mandei sem pagar a conta
quando cheguei onde tinha estacionado o automóvel
qual não foi minha surpresa desagradável?
o capô, o para-brisa, o teto, o vidro traseiro
estava tudinho coberto de cagada de passarinho
limpei o melhor que pude o vidro dianteiro
e embora não fosse tarde toquei embora pra casa
pois passava do meio da tarde e nunca gostei de viajar no escuro
fui chegar em casa com a noite já há tempo instalada
para um percurso de quarenta minutos em condição normal
gastei mais de quatro horas devido à quantidade de veículo
entrei no apartamento e gritei me sentindo um tanto ridículo
— cheguei querida
a resposta foi o silêncio acompanhado de um bilhetinho
carinhosamente deixado em cima da mesa da sala
— volto logo saí com umas amigas
quando me dirigia para o quarto do casal
senti uma terrível cólica intestinal
julguei fossem apenas flatos
mas avaliei mal a situação de fato
pensando em aliviar a pressão dos gases
borrei a cueca e boa parte dos outros trajes
pergunto a vocês então
— tenho ou não tenho razão? não foi tudo mesmo uma merda?

domingo, 29 de abril de 2018

Pesadelo

a noite a planície erma em negro manto envolve
não há lugar no céu de chumbo para luar nem brilho de estrela
cavalga vulto diáfano à frente de denso rastro de poeira
segue em direção dos agudos gritos
que pelos ares ecoam lancinantes
desesperados pedidos de clemência insistentes
— misericórdia misericórdia misericórdia
mais adiante seu cavalgar o vulto estanca
empina-se ainda repetidas vezes apeia-se depois da sela e
sem hesitação salta na escuridão do abismo infinito
cessam os gritos
silêncio

domingo, 22 de abril de 2018

Pedra

na úmida sombra sob seus pés a pedra musgosa
esconde minhocas lesmas e outros bichos
pedra pelada ao sol inclemente
aquece lagarto letargo aparente
uma pedra no meio do caminho atrapalha o sossego da gente
mas é pedra a ser removida em trabalho bem paciente
não adianta dar pontapé
arrebenta o sapato estupora o pé
uma pedra desgraçada de ruim
é a pedra fabricada pelo rim
na pedreira a dinamite dobra a dureza da pedra
e faz dela humilde matéria-prima para
calçamento de rua concreto lápide muro
parede pia piso tampo de mesa túmulo
de dentro da pedra em fino lavor
a obra de arte retira o escultor
até em história de lição de moral pedra participa
— quem nunca pisou na bola
que atire a primeira pedra

domingo, 15 de abril de 2018

Pergunta retórica

dizem que
quem não tem cão caça com gato
muito bem então pergunto
quem também não tem gato caça com quê?
com rato?
porque rato é o que não falta

domingo, 8 de abril de 2018

Perdão por vos servir

perdão por vos ter gerado
e em tudo e sempre me empenhado
para que crescêsseis sãos

perdão por vos ter alimentado
com o melhor de minha seiva
e assim desabrochásseis árvores

perdão por vos ter protegido
e prosseguir a ser o escudo
sobre o qual atirais impunemente vossas pedras

perdão por vos ter dado
tanto embora vossos olhos
cobiçosos continuam sempre a exigir mais

perdão por vos ter solicitado
pouco quase nada em troca
poupando-vos de maiores dissabores

perdão por vos ter servido
durante tão longo tempo
bem mais do que merecíeis

perdão por sem que o sabeis
continuar ainda a vos servir
enquanto houver força em mim

domingo, 1 de abril de 2018

Pelas vitrines da vida

homens mulheres
velhos crianças
jovens adultos
ricos pobres
de dia de noite
cotidianamente
mais e mais e mais
nos atropelamos pelas ruas
ávidos de ter

tomados pelo desejo
alucinante de consumir matéria
debruçamo-nos sobre as vitrines
na busca desenfreada
de todo tipo de coisa-objeto

donde proviria tal cupidez?
seria de fato necessária tanta matéria?
ou seria por sentirmos tudo se perdendo
é que insistimos nessa loucura de procura?

e se nos curvássemos mais amiúde sobre a vitrine
não essas de fora mas a de dentro a escondida
infinita incomensurável mágica encantada
única capaz de nos levar passear pela vida?
de revelar nosso outro rosto o rosto verdadeiro?

talvez ali descobríssemos que disso tudo aí
não necessitamos nada ou quase nada
talvez descobríssemos outro tipo de desejo
a avidez de ser

domingo, 25 de março de 2018

Operário padrão

como tantos e tantos outros
o zé amâncio era nordestino
de pernambuco
caruaru? capital do forró acho que não o zé não era chegado
garanhuns? companheiro do presidente? quem dera
serra talhada? parente do lampião? também não o zé era da paz
não me lembro de onde só não esqueço que era

operário padrão
para o benefício do patrão
e o engrandecimento da nação

começou trabalhando como ajudante geral
aliás naquela época naquela fabriqueta
todo mundo começava como ajudante geral
depois passava para ajudante específico
o zé amâncio logo foi promovido a ajudante específico
o zé amâncio era muito bom de serviço

operário padrão
para o benefício do patrão
e o engrandecimento da nação

durante bom tempo foi chefe da calcinação do ácido
o pior serviço da fábrica aquela fumaceira pestilenta
que impregnava tudo que corroía tudo
mas o amâncio segurava a barra se esmerava
e cuidava do setor com primor

operário padrão
para o benefício do patrão
e o engrandecimento da nação

mais tarde passou para a fundição
operador de forno de indução
foi aí que encerrou sua brilhante carreira de peão

operário padrão
para o benefício do patrão
e o engrandecimento da nação

era dezembro quase natal
o menino jesus estava para nascer
como fazer meu deus
para conseguir esquecer?
de repente a estrondosa explosão
espalhando por todos os lados destruição
a onda de calor infernal atingiu bem em cheio
a cara o peito os braços as pernas o corpo
do zé amâncio que estava ali no seu posto

operário padrão
para o benefício do patrão
e o engrandecimento da nação

o zé amâncio ficou inteirinho queimado
queimaduras de todos os graus
primeiro segundo terceiro quarto quinto
sexto sétimo oitavo nono décimo etc.

operário padrão
para o benefício do patrão
e o engrandecimento da nação

o zé amâncio era por natureza amorenado
mas ficou tão queimado coitado
lembrava mais a cor de um tição apagado
embora fosse atarracado tinha constituição robusta
mas quem viu não teria como desmentir
inchou tanto que parecia ia explodir
ficou entre a vida e a morte longas 72 horas
persistindo teimosamente nessa demora
imóvel num leito infecto de um hospital público
lutando bravamente contra a indesejada
por imaginar talvez quem sabe
poder logo ter alta e retornar de novo ao trabalho
pensamento absurdo bem próprio do zé amâncio

operário padrão
para o benefício do patrão
e o engrandecimento da nação

ao término do terceiro dia
cessou enfim aquela agonia
o corpo calcinado do zé amâncio
foi sepultado num túmulo banal
de um cemitério popular na periferia da capital

operário padrão
para o benefício do patrão
e o engrandecimento da nação

domingo, 18 de março de 2018

O tempo

o tempo existe
graças ao movimento
sem movimento
não teria tempo
o tempo é invenção
do ser humano
na vã intenção
de fixar o movimento
ambulante contumaz
com seu caráter fugaz
só sabe seguir adiante
se virar ao contrário
não é igual ao de antes
mesmo que aparente
estar parado não está
a terra não para de girar
em torno de si e do sol
o universo se expande
qualquer matéria tem estrutura formada
por partículas elementares continuamente
se mexendo em sua microscópica intimidade
para que exista vida desde formas primárias
até as que apresentam extrema complexidade
é necessário que haja algum tipo de movimento
de células de órgãos de fluídos de membros
movimento ocorre não só envolvendo matéria
mas relativo apenas de energia dito ondulatório
tempo é o suceder de movimento
criado o conceito de tempo
para poder realizar sua medida
o ser humano
inventou o relógio e o calendário
com o relógio mede as horas do dia
com o calendário os dias do ano
as pessoas assim passaram
a poder organizar com mais precisão o dia a dia
a ter data de aniversário
de nascimento
normalmente comemorada com alegria
de falecimento
em geral lembrada com tristeza
pelo menos durante certo tempo
até cair em completo esquecimento
para tentar impedir a inevitável perda
do efêmero dos fatos
os antigos criaram as efemérides
registro de acontecimentos diários
julgados dignos de nota
originando a ciência de nome história
ao aprender a relacionar
espaço com tempo
surgiu a ideia de velocidade
que uma vez inventada
nunca mais parou de aumentar
no começo meio devagar
mas depois cada vez mais veloz
a tal ponto que está atingindo níveis
que podem ser considerados
sem nenhum exagero
quase que insuportáveis
para um ser humano normal
tal a fobia geral da humanidade
em ter mais e mais e mais
pressa pra tudo aquilo que faz
o mais das vezes sem necessidade
visto que certamente chega o momento
que cessa definitivamente o movimento
do sangue nas veias
com a parada do coração
a falência do pulmão
e se diz que a vida chegou ao fim
agora é vez e hora da morte
tempo de se escafeder urgente
porque atrás continua a vir gente
quanto à questão post mortem
está aí um ponto polêmico
que os seres humanos
ainda não conseguiram
um consenso satisfatório
uns acreditam que o tal fim
é sim o início de nova fase
com inúmeras possibilidades
as quais não cabe aqui discuti-las
alegando que essas carecem de prova
os céticos juram de pés juntos
que o mencionado fim é mesmo
sem sombra de dúvida o fim da picada
e que dali pra frente não há mais nada
por ora tudo indica que essa última
corrente de pensamento é a correta
até que qualquer uma das outras
apresente prova cabal concreta

domingo, 11 de março de 2018

Nugas I

se isso que escrevo
terá sido um dia impresso
em forma de livro não sei
terá qualquer valor isso?
se alguma coisa disso que escrevo
terá sido um dia lido por alguém não sei
terá qualquer utilidade isso?
para alimentar minha vaidade gostaria de saber
que tivesse sido enquanto ainda eu fosse vivo
mas se tal não acontecer
eu ter sabido ou não ter sido amanhã ou nunca
não tem a mínima importância
porque de uma forma ou de outra isso tudo
como tudo o mais dia vem dia vai cai
no triturador denominado tempo
para ser submetido ao processo de nome esquecimento
e mais dia menos dia acaba por se transformar em nada
o que importa na verdade é a necessidade
vital que me obriga dia a dia a fazê-lo
o que conta é o diuturno prazer egoísta que sinto ao realizá-lo
o resto é resto é o que vai só sobrar
e talvez fosse bom não deixar de lembrar
mesmo se raimundo me chamasse
conforme alguém já disse
para o mundo eu que me lixe

domingo, 4 de março de 2018

Momento mais íntimo

neste ponto somos inflexíveis não abrimos mão
entendemos ser um direito de todo cidadão
se o presidente da república do país resolvesse aparecer
com o maior respeito mandaríamos dizer
— agora não dá vai ter que esperar
se o presidente dos estados unidos chamasse ao celular
ele ouviria num inglês de aprendiz
can you call later please?
se naquele instante a presença do papa fosse anunciada
em nossa minúscula sala de visita que é também de jantar
ainda assim sua santidade teria de ter paciência e esperar
se meu querido já falecido pai nos surpreendesse
e levantando da tumba por ali aparecesse
até mesmo ele teria que esperar
afinal é ensejo legítimo
é nosso momento mais íntimo
quando esquecendo eventual desavença
tentamos eliminar incômoda presença
unidos num único destino
eu e o meu intestino

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Matéria-prima poética

a matéria-prima da minha poesia é água
às vezes utilizo ar
para fazer a minha poesia uso também uma peneira
destas com abertura larga própria para peneirar pedra
ou outro material semelhante
pego a peneira e peneiro água
igual como aquele menino do manoel
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira
peneiro só um pouco de água não muito
água é um bem muito valioso pra ser desperdiçado
o que fica retido na peneira é a minha poesia
quando pretendo construir um poema mais leve
substituo água por ar
neste caso o peneiramento é mais trabalhoso
provoca desperdício maior de matéria-prima
agora confesso a vocês o seguinte
gostaria que minha poesia fosse fogo
incendiasse almas espíritos corações
mas isso é uma ingênua pretensão
sei muito bem por mais me ludibrie
que minha poesia se já não é será terra
pois como tudo na vida um dia vira pó

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Mala-sem-alça

má você é má
macerar é pra você um dom
machucar lhe dá prazer
magoar é o que melhor sabe fazer
maligna
maluca
maníaca
matraca aberta a todo instante
martelação extenuante
massacrante arengação
martírio pra alma e pros ouvidos
máquina de produzir conflitos
máscara social pregada à cara
matrimônio igualado a patrimônio
marido ai coitado está fodido
marionete em casa vira carpete
mala femmina não se pode bobear senão você pimba...
mata
maravalha valha-me adeus

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Jardim de ervas daninhas

do fundo do poço
madrugada tempo estiolado
quieta desventura vadia
espera da morte tardia
jardim de ervas daninhas

onde estão os amigos? os amigos
foram sem rancor sem amor
nada mais tenho a lhes oferecer
não têm mais nada a colher
jardim de ervas daninhas

tornei-me outro estranho de mim
embora o mesmo
sou hoje o quê? nada
nada continuei a ser agora acabado
jardim de ervas daninhas

tornei-me espectro
buraco de pedra e gelo
aqui os amigos não poderiam habitar
então partiram se aborreceram
jardim de ervas daninhas

amigos não mais aguardo
nem fantasmas de amigos
gosto amargo de saudade na boca seca envelhecida
poço escuro de palavras murchas
jardim de ervas daninhas

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Imortalidade

acredito piamente na ressurreição
não ser a chamada morte o inexorável fim
terminada esta aparente humana condição
irei à terra e em seguida renascerei capim

acredite tal crença alimento em mim de fato
e assim possamos quem sabe então talvez
nos encontrar de novo ou pela primeira vez
você ali condolente e eu calado sob a sola do seu sapato

domingo, 28 de janeiro de 2018

Sumário

nascimento
momento
de sair pra real
infância
inocência
nem tanto
adolescente
arrogante
cheio de insegurança
adulto
inculto
se achando sabido
pecúlio
entulho
maior conquista
carestia
maresia
corrosiva indignidade
fome
some
daqui
esgoto
esgota
boca faminta
erva
preserva
soterrada esperança
ar
respirar
cada vez mais difícil
alma
acalma
com vento da tarde
noite
açoite
no sono 
morte
sorte
certa hoje amanhã

domingo, 21 de janeiro de 2018

Imarcescível amor

você se deu a outros
por circunstâncias várias
desejo necessidade apego vontade desespero solidão
é o que costuma me dizer nas vezes que
sobre esse assunto conversamos
antes que a mim se entregasse
aí sim de corpo e de alma
verdadeiramente completamente
como jamais se dera em toda sua vida
é o que sempre me afirma e confirma e garante e afiança
mesmo quando sobre isso nem sequer pensamos conversar
ao pressentir como moderna pitonisa urbana
minha provecta infantil renitente insegurança
que teimo em querer dissimular
mas que inevitável se manifesta
no gesto de carinho reprimido
na fuga do olhar ao abrigo do horizonte
no silêncio das palavras abortadas
na quase ironia de um sorriso amarelo esgarçado
e vem você de manso sem alarde
e me oferece um sorriso de ternura
e me beija a mão e me acarinha o rosto carrancudo
e vai transformando pouco a pouco amargor em doçura
e vai desatando um a um os nós do peito constrangido
e uma serenidade aconchegante penetra pelos poros
rompe-se o bloqueio da entrega de afeto
dissipa-se o medo de uma união escravizante
ingênua alegria benfazeja invade o ambiente
ardente desejo de compartilhar carne e espírito torna-se presente
assim tecemos o cotidiano de nossas vidas que agora acreditamos
I N
S E P A R Á
V E I S

domingo, 14 de janeiro de 2018

Estimado Manuel

assim eu quereria toda a minha poesia
que fosse como a sua eterna dizendo apenas coisas simples
que fosse contundente como a fome num estômago famélico
que tivesse a coragem do mato nas frestas dos muros e das calçadas
a pureza escondida atrás dos rostos encardidos das crianças abandonadas
a paixão dos amantes que se amam loucamente sem explicação
(13 de outubro)

domingo, 7 de janeiro de 2018

Epifania

é angustiantemente gratificante quando
parece que tudo a nossa volta se estanca
e
somos invadidos por raro
clarividente efêmero momento
e
nos voltamos pra bem dentro de nós
com percuciente pensamento
e
conseguimos perceber a abundante
mediocridade aí sempre presente