domingo, 25 de abril de 2021

Quando talvez quem sabe

quando

um deus verdadeiro

se torna incapaz de me socorrer

e o diabo astucioso com disfarçado desprezo

me atrai para seus múltiplos templos

onde cultos profanos me ludibriam


quando

em meus ouvidos moucos 

o passado se transforma num eco mudo

referência nula para um presente pobre

semente infértil para um futuro estéril


quando 

as maravilhosas humanas conquistas

com seus duvidosos amplos benefícios

são fonte borbotoante de angústias insondáveis

resultantes de meus desejos questionáveis 

em busca de vãos prazeres insaciáveis


quando

protegido pelo escudo de bastarda liberdade

o poder concentrado em minhas mãos privilegiadas

serve para que eu plutocrata ali mais me locuplete

alimentando a insuperável miséria insuportável de tantos


quando 

minha irrefreável milenar ganância mais e mais 

descontroladamente crescente na linha do tempo 

a ponto de se aproximar da desmesura irresponsável  

passa a ameaçar de destruição a própria vida


talvez

fosse a oportunidade rara para eu 

deixar de lado ao menos por instantes

as ambições as espertezas as vaidades

invariavelmente infiltradas em minhas ações 

as telas da televisão do computador do celular 

nas quais abduzido me reflito cotidianamente


talvez

despojado de arraigada arrogância

nu em minha limitada humana condição  

refletido no âmago de mim mesmo 

devesse tentar refletir sobre a possibilidade  

de ser apenas um ser humano

pequenina parte fragmento frágil 

abandonado na solidão de um todo

infinitamente maior universal

um ser para o qual uma existência

simples e decente

é necessária mas é também 

mais do que suficiente


talvez

assim pudesse encontrar a trilha utópica que

me levaria perto da tão almejada felicidade


quem sabe

domingo, 18 de abril de 2021

Poema do gato vivo

o poetinha

como costumava ser

carinhosamente chamado

o poeta maior

diplomata de carreira

artista das letras e da música

cantor do amor

encantador de mulheres 

certa feita

em florença

nos idos de mil novecentos e sessenta

escreveu um encômio 

aos felinos domésticos

que denominou de 

soneto do gato morto


entre tantas coisas belas 

como soeu acontecer

com quase tudo que ele escreveu 

naquele particular poema está dito que

um gato vivo é qualquer coisa linda

nada existe com mais serenidade


ora pois

não é que um dia desses

por conta do meu aniversário 

de quem eu considerava 

uma pessoa amiga

ganhei de presente um gato


passemos sem delongas aos fatos

o tal bichano de fato

acorde a opinião do bardo 

sem dúvida era portador

de uma invulgar beleza 

serenidade porém nem pensar

sua educação deixava muito a desejar

sofá poltrona cadeira mesa

o sacana subia sem pestanejar 

quando bem lhe desse na telha

para refestelado ali se aboletar

carpetes e tapetes

além das almofadas de finos tecidos

eram os lugares por ele escolhidos 

para praticar a arte de arranhar

saltava sobre a pia da cozinha e ali

comia o que havia de seu agrado

o restante largava tudo bagunçado

diariamente dava um repasse na fruteira

que ficava em cima da geladeira

rasgava os pacotes de bolacha e de chocolate

ainda dentro do prazo de validade 

guardados na prateleira do armário

era mesmo um bichinho salafrário

espalhava papel higiênico o limpo e o usado

pelo chão do banheiro

eta gatinho abusado

entrava no roupeiro para afiar as unhas

em minhas camisas de seda preferidas

pisoteava delicadamente 

com as patinhas sujas de barro

meus papéis em cima da escrivaninha 

achava sempre um jeito 

de dar uma escapadela

pela porta ou pela janela

e voltava na manhã seguinte 

com a fuça estropiada se fazendo de doente

dormia o dia inteiro acordava no fim da tarde

reclamava da ração miando desesperado o patife

parava só depois de receber um bom naco de bife

pra completar meu desespero

enchia todos os cantos de pelo


as palavras do renomado vate

bem se aplicavam aquele meu gato 

o danado era um disparate

mesmo parado ele caminhava

e parecia que estava sempre rindo da minha cara


pra concluir esta baboseira

deixo aqui registrada

uma confissão derradeira

não consegui suportar a situação

e tive que me livrar do animal

dando ele também de presente

para um parente meio distante 

um cara considerado muito legal

foi a forma que encontrei 

de manter o maldito gato vivo 

sem que eu não enlouquecesse 

e quem sabe até morresse

porque pra falar com franqueza

era ele ou eu aqui nesta casa

domingo, 11 de abril de 2021

Palavras jogadas

a imperfeição com que as almas se tocam

responde pelo guardar-se da entrega de si próprio

e um corpo por mais que tente 

se refugiar em pensamento

se exacerbado pela falta de espírito 

sempre carecerá de pleno entendimento

entendimento que vai além do alcance das palavras


antes de falar é essencial 

pensar em que e como se vai falar

ouvir com atenção e serenidade 

a voz do próprio pensamento

pois não se deve pensar que falar 

consiste em dizer tudo a qualquer preço

falar demais 

sem o hábito de primeiro ponderar 

é volúpia verbal 

frequentemente 

de bem penosas consequências


sabedoria é 

perceber quando as palavras que falam 

são piores do que as palavras silenciosas 

retidas prudentemente na boca

ficar em silêncio para dar 

a um equívoco indiscernível

tempo disponível 

para ser absorvido pelo esquecimento

ao faltar comunicação ter  

a delicadeza instintiva 

de se abster da contenda gratuita


bom é sentir a graça infinita de 

levantar voo numa frase simples

feita de palavras respeitosas e doces 

que quebram trama no peito


conseguir escolher numa fração de segundo 

entre uma palavra ou outra a mais apropriada

alerta quanto ao pensamento dos outros mas

ainda mais quanto aos próprios pensamentos


mesmo sem saber até que ponto os pensamentos

conseguem ser revelados pelas palavras

evitar com tato não ser compreendido

visto que a compreensão torna a pessoa 

de alguma forma transmissível 

sem que ela perca necessariamente 

algo da pessoa que ela é


outrossim até uma frase pouco elucidativa 

pode transmitir compreensão

compreensão feita de palavras perdidas 

e palavras sem sentido 

pois muitas são as palavras perdidas 

por  serem mal ouvidas ou sequer ouvidas

palavras bem ditas ou palavras mal ditas 

não importa mas que foram ditas

e por conta do desdém 

não se costuma dar crédito 

ao milagre das palavras sem sentido


destarte exaurido pelo esforço 

de penosas contorções mentais 

passa-se a ter verdadeira ojeriza das palavras 

e se é levado a considerar que viver 

só vale a pena se for de forma visceral 

literalmente 

com o resto transformado 

num oco desprezível emaranhado

ignorante da essência do que se pretende dizer  

e afinal ter de se reconhecer vencido 

por este inconsequente jogo de palavras

 

domingo, 4 de abril de 2021

O ferro

o ferro

em seu estado original

combina com o oxigênio e

forma uma terra mineral 

que ocupa certas porções da crosta da Terra

é assim que o ferro quer

é assim que o ferro gosta

é assim que está bem para o ferro


o homem 

como único animal 

autodenominado de racional

no uso dessa tal razão

ardilosamente 

inventa mil maneiras de separar 

o ferro do oxigênio

rompendo casamento tão estável

é assim que o homem quer

é assim que o homem gosta

é assim que o homem acha que está bem pra ele


o ferro

submetido a esse humano artifício

se transforma num elemento apto

à produção dos mais diversos artefatos

chapas barras fios

com os quais por sua vez são fabricados

outros tantos objetos

veículos máquinas navios

portões grades edifícios


o homem

para atingir seu fim

principia 

derrubando florestas exuberantes

pondo abaixo belos montes 

cavando buracos profundos

depois 

solta na atmosfera 

que dá vida ao planeta 

volumes imensos de gases tóxicos

lança nas águas 

do meio ambiente 

milhões de litros de líquidos podres   

joga em aterros 

ditos sanitários 

milhares de toneladas de sólidos estéreis

finalmente

mercadeja 

usa 

abusa 

de todos os artefatos e objetos fabricados

para construir obras

algumas úteis 

outras perfeitamente dispensáveis

algumas portadoras de certa beleza 

de outras não se pode dizer o mesmo com certeza


o ferro

a princípio

aceita toda essa situação e

obedece aos caprichos do bicho homem

mas com o tempo

pouco a pouco

com perseverança

lentamente

sem jamais perder a esperança

de voltar a ser feliz como fora um dia

ele vai restabelecendo 

sua antiga união com o oxigênio 

para voltar à condição original  

agora na forma de ferrugem

apesar de não ser a vontade do homem

apesar de tantos sacrifícios

apesar de tantos desperdícios

apesar de tantos malefícios

é assim que o ferro quer

é assim que o ferro gosta

é assim que o ferro fica