domingo, 26 de novembro de 2017

Cartema ao poeta Manoel

Estimado bardo:
Muito me orgulha
que nossa querida língua
conte com tão insigne figura
como a sua
poeta criador
de tantos e tão belos poemas
que servem para engrandecê-la ainda mais
como expressão da cultura do nosso povo.

Embora de certa forma
constrangido pelo pudor
sou compelido pela vaidade
a confessar-lhe que
ouso ter veleidades poéticas.
O que trocando em miúdos significa dizer que
rabisco meus versinhos.
E completo a confissão lhe informando que
sua poesia é um de meus paradigmas.
Ah! caro Maneco (perdoe se abuso da intimidade)
como eu gostaria de fazer poesia igual a sua.
Há momentos em que chego até a
sentir inveja de você.

Ninguém é capaz de falar
tudo do nada
com tão
sábias ignorãças
como você.
Quisera eu saber a seu modo
“apalpar as intimidades do mundo
usar palavras que ainda não tenham idioma
repetir repetir até ficar diferente
descobrir que as coisas que não têm nome
são mais pronunciadas por crianças
aprender a escrever o cheiro das árvores
entender que poesia é voar fora da asa
errar bem o nosso idioma
fazer o nada aparecer
ser lido pelas pedras
ter palavras que sirvam na boca dos passarinhos
não gostar de palavra acostumada
parecer com nada parecido
não servir mais pra pessoa
estar em eternidades.”

Então eu leio e leio de novo
depois releio e releio de novo
os seus versos
pra ver se fica dentro de mim
pelo menos algum resquício
que sirva de chama inspiradora
mas qual o quê tudo o que sobra é nada!
Vai ver que sou muito duro de molejo
não tenho jeito pro negócio.
Mas também tem uma coisa sou um cara turrão
não desisto fácil não.

Fiquei sabendo um dia desses
assistindo um documentário na televisão
que você
além de exímio criador de versos
é também um excelente criador de gado.

Tive então uma ideia que
talvez pudesse me ajudar
a achar minha inspiração.

Decidi que devia comer carne de boi
criado em suas terras.
Rodei os açougues aqui da capital
até que por fim
encontrei o que queria.
Comprei logo a peça inteira
levei para casa e pedi pra cozinheira
ir preparando ao longo da semana
das mais diversas maneiras
crua fatiada bem fininho
moída pra fazer bolinho
frita
assada
ensopada
tudo com os mais apetitosos temperos
pra minimizar qualquer chance de erro
e passei a comer sua carne Manoel
todos os dias
no almoço e
no jantar.

Apesar dos meus esforços
ainda que possa parecer ignorãça
de minha parte
até agora
infelizmente
nada.
Não consegui escrever sequer
um poemelho
que fosse
uma estrofe
que prestasse
um verso
que chegasse aos pés dos seus.
Mas não tem importância.
Ainda não estou pensando em desistir.
Vou continuar tentando.
Lendo seus livros e
comendo sua carne.
Para minha sorte e alegria
as duas coisas são de primeira!

domingo, 19 de novembro de 2017

Briga de foice

o poeta
esgravata
o poema
desbarata
o poeta
cata
o poema
desacata
o poeta
aparata
o poema
achata
o poeta
contata
o poema
delata
o poeta
relata
o poema
maltrata
o poeta
trata
o poema
arrebata
o poeta
reata
o poema
empata
o poeta
resgata
o poema
destrata
o poeta
aquilata
o poema
enlata
o poeta
arremata
o poema
sucata
o poeta
formata
o poema
mata
o poeta

domingo, 12 de novembro de 2017

Boa lição de vida

embora a tivesse conhecido apenas há pouco
ambos em idade avançada ela mais que eu acredito
me presenteou com uma boa lição de vida
possibilitou que estivesse junto dela naquele leito
num momento tão importante de sua vida
no primeiro instante de sua morte

domingo, 5 de novembro de 2017

Beleza pura

prometo de hoje em diante
não ser mais pessimista
este sujeito mal-humorado
implicante que em tudo vê defeito
vou deixar a ironia de lado
e enxergar o lado bom da vida
vou olhar este vasto mundo
imundo
com olhos de brandura meigos de ternura
vou achar tudo beleza pura

quando eu encontrar um bando
de crianças famélicas
sujas maltrapilhas abandonadas
mendigando pela cidade
vou achar uma beleza
e pensar em contrapartida
“mas também tem um montão
de criança bem tratada bem alimentada
que frequenta escola cara e usa roupa de grife”

quando eu passar por uma
das centenas de favelas que pululam
aos quatro cantos desta magnífica metrópole
com seus milhares de barracos ao estilo gaudí
paredes feitas de madeira velha e pedaços de papelão
piso de terra batida teto de restos de lona plástica
amontoados uns sobre os outros
em tremenda promiscuidade
fedor de cocô no ar exalando
de esgoto que escorre aberto ao céu
vou achar uma beleza
e pensar em contrapartida
“mas também tem um montão
de gente que mora em casa de alvenaria
com todo saneamento básico
sobrado geminado uns
sobrado semi-isolado outros
alguns em
sobrado isolado dos dois lados
ou apartamento bem montado
tem gente até que mora
bem acima do inferno do rés do chão
lá no alto quase dentro do céu
em cobertura milionária
de não sei quantos mil metros quadrados”

quando eu andar distraído desavisado
por rua deserta ou mesmo movimentada
e aí ter a oportunidade de ser abordado
por um ou mais laboriosos cidadãos
a pé de carro ou de motocicleta
sem muita noção de boa educação
com um baita revólver na mão
apontado bem para o meio da minha cabeça
solicitando que eu entregue minha carteira
vai ser legal à beça
vou achar uma beleza
e pensar em contrapartida
“até que tive uma baita de uma sorte
poderia ter sido levada também a vida
por bala mancomunada com a morte
porém foi levado apenas o dinheiro
fruto do trabalho de um mês inteiro”

quando eu caminhar ao longo das margens
dos rios córregos ribeirões que cortam o
sagrado solo desta imensa capital do estado
e encontrar principalmente depois de boa chuvarada
flutuando sobre as águas escuras cheirando à bosta
milhares de garrafas plásticas de embalagem
e densa espuma de algum produto tóxico
competindo pra ver quem é que consegue
cobrir mais área de superfície
vou achar uma beleza
e pensar em contrapartida
“o ser humano é mesmo genial
primeiro faz água pura cristalina cheia de vida
virar um líquido fétido podre morto
depois usando o poder de sua tecnologia
volta a transformar
uma verdadeira merda fluida
de novo em prometida água potável
própria pra se beber ou ao menos se lavar”

quando eu me encontrar perdido
no meio da multidão que invade
shopping centers supermercados
parques clubes jardins
restaurantes bares lanchonetes
teatros cinemas casas de shows
consultórios ambulatórios hospitais
ônibus trens aviões
nos fins de semana
nos meios de semana
nos inícios de semana
vou achar uma beleza
e pensar em contrapartida
“já imaginou se não tivesse todo esse povaréu
como seria triste nossa vida
quão terrível nossa solidão
ia faltar tanto calor humano”

quando eu me pegar preso
num destes puta congestionamentos
do caótico trânsito urbano de veículos
de manhã indo para o trabalho
de noite voltando pra casa
durante o dia rodando daqui pra lá de lá pra cá
ou nos fins de semana e nas vésperas de feriados
indo pro litoral pra enfrentar nas padarias
fila pra comprar leite pão e cigarro
pegar micose na areia da praia
ingerir uns coliformes fecais a mais
ao tomar agradável banho de mar
vou achar uma beleza
e pensar em contrapartida
“pelo menos quando eu chegar vou poder relaxar
beber uma cervejinha assistindo ao meu time jogar
se a esposa se lembrou de botar pra gelar
se as crianças tiverem ido mais cedo pra cama
se a sogra não resolveu dar as caras pra aporrinhar”

é por essas e por outras que doravante
posso até jurar por deus se quiserem
conforme prometi acima
não serei mais pessimista
nem menos