OBJETIVO
Crime e Castigo, de
Fiódor Dostoiévski, publicado pela primeira vez, em folhetins, no periódico
“Mensageiro Russo”, de janeiro a dezembro de 1866, é romance que exercita, com
plenitude, a característica do autor, segundo o crítico russo Mikhail Bakhtin
(1997: 28 – 29), de ver e pensar o mundo predominantemente no espaço e não no
tempo.
O
espaço no qual desenvolve-se a ação do romance é a cidade de Petersburgo, na
Rússia tzarista, na época contemporânea à da elaboração da obra. A cidade adquire papel relevante no
suporte físico das ações das personagens, chegando quase até a constituir-se em
personagem: “no romance, há centenas de
exemplos de como os objetos inanimados participam da ação, misturados
àquele mundo de indigência e sofrimento, o mundo daquela Rússia sofredora...”
(Schnaiderman, 1999: 186), enquanto o tempo, atualizado, adensa-se – è “o tempo de crise, no qual o instante se iguala aos anos, aos
decênios e até a “um bilhão de anos”” (Bakhtin, 1997: 172). O tempo de
transcurso do romance é de cerca de um mês: “Raskolnikov estava esgotado por
aquele mês de sofrimento que...” (Dostoiévski, 1953: 526).
O
objetivo do presente ensaio é proceder a uma análise de alguns aspectos do
espaço, em Crime e Castigo, sob os
seguintes pontos de vista: a) o quarto do protagonista – Raskolnikov; b) a
promiscuidade do espaço; c) índices de espaço (função de insígnia): ponte –
natureza – iluminação – cor amarela – escada; d) a circularidade interior –
exterior.
O texto
utilizado para a realização do ensaio foi o editado pela José Olympio
(Dostoiévski, 1952 – 3) e todas as citações do mesmo, referem-se à essa edição,
apontando-se as respectivas localizações dos trechos citados, pelas páginas em
que os mesmos se inserem na obra.
ANÁLISE
a)
o quarto do protagonista – Raskolnikov
Segundo
Bakhtin (1997: 71 – 2), Dostoiévski não é escritor de ambientes familiares, nos
quais “as pessoas vivem uma vida biográfica num tempo biográfico: nascem,
passam pela infância e a adolescência, contraem matrimônio, têm filhos,
envelhecem e morrem.”. O espaço de Dostoiévski é o limiar, o limite, a
iminência da ruptura, o “ponto em que
se dá a crise’. É assim, que
Dostoiévski ambienta a moradia de Raskolnikov:
“Numa
dessas tardes mais quentes dos princípios de julho, um rapaz saía do pequeno
quarto que alugara, no beco S.,...A água-furtada ficava no alto de uma casa
enorme, de cinco andares, e parecia mais um armário do que um cômodo
habitável.” (p.29).
A
observação da mãe de Raskolnikov, logo após a chegada à Petersburgo:
“
– Que cômodo feio é este, Rodia, parece um caixão, disse bruscamente Pulqueria
Alexandrovna para romper o silêncio que pesava. Estou certa de que este quarto
entra com cinqüenta por cento na tua neurastenia.”
(p.279).
E Raskolnikov,
respondendo sem nexo à Sonia:
“
– Sim... sim... compreendo... sem dúvida... Está reparando no quarto: mamãe
também acha que ele parece um túmulo.” (p. 288).
Novamente
a mãe após deixar o quarto do filho:
“
– Meu Deus, Dunetchka, disse Pulqueria Alexandrovna assim que chegaram à rua,
estou satisfeita por ter saído de lá. Respiro até melhor...” (p. 289).
E em
seguida:
“
– Fizemos bem em ter saído de lá nesse momento, observou vivamente Pulqueria
Alexandrovna. Ele tinha pressa de sair para um encontro, a negócio... Para ele,
será bom andar um pouco, tomar ares. A gente quase se sufoca naquele quarto.” (p.
290).
Raskolnikov,
após confessar o crime à Sonia, acrescenta:
“
– Então, enfurnei-me na minha toca, como a aranha no seu canto. Conheces minha baiuca, foste lá. Sabes, Sonia, que alma e espírito se asfixiam nos
compartimentos estreitos e baixos? Oh! como detestava eu aquele antro.
Entretanto, não queria sair dele, de propósito.” (p. 477).
Como observa Conradi (1988: 43) a cerca de Raskolnikov:
“He lives in a tiny coffin-like of a room, whose claustrophobia seems a
concrete metaphor for his state of mind.”. Neste ambiente claustrofóbico
Raskolnikov atinge o limite da exasperação mental, que o coloca fora da
realidade; o cubículo oprime-o a tal ponto que ele fica sem possibilidade de
escapar de seu desespero (Conradi, 1998: 55).
b) a
promiscuidade do espaço
O cenário de Crime e Castigo é da Petersburgo dos meados do século
XIX, num mês de julho, sob um
verão insuportável:
“Nas ruas fazia um calor asfixiante. O ar
pesava, o povo se comprimindo por entre os andaimes, montes de cal, tijolos
espalhados pelos cantos e, dominando tudo, o mau cheiro característico, tão
familiar aos habitantes de Petersburgo... O insuportável bafo das tabernas,
aliás tão freqüentes no quarteirão, e os beberrões... completavam o quadro
horripilante e melancólico.” (p. 30).
O
apartamento em que habita Alena Ivanova, a velha usurária fica em:
“... um imenso edifício
de alvenaria, cujas fachadas davam, uma para o canal e outra para a rua. Tal
prédio, subdivido em vários pequenos alojamentos, era habitado por modestos
oficiais de todos os ofícios, alfaiates, serralheiros, etc. Também havia ali
cozinheiras, alemãs, prostitutas disfarçadas, pequenos funcionários.” (p. 32).
Raskolnikov
ao levar Marmeladov, bêbado, para casa observa:
“O
cômodo estava abafado, mas Catarina não abria a janela. Vinham odores infectos
da escada e ela nem se dava ao trabalho de fechar a porta do cubículo. E,
afinal, a porta interior, simplesmente entreaberta, deixava entrar ondas
espessas de fumaça de tabaco que lhe provocam a tosse, sem que se importasse de
cerrá-la. A criança mais nova, uma garotinha de seis anos, dormia sentada no
chão, o corpo meio torcido e a cabeça apoiada no sofá. O guri, um ano mais
velho, tremia todo num canto e chorava. ... A mais velha, uma menina de nove
anos, comprida e fina como um palito, vestia uma camisola toda furada.” (p. 56).
O local do
apartamento, alugado por Lujine, para a mãe e a irmã de Raskolnikov, nas
palavras de Rasumikhine:
“ – É um lugar
horroroso, sujo, fedorento, e por cima um lugar suspeito. Já se passaram feias
histórias ali ... Só o diabo sabe que espécie de gente mora lá. Eu mesmo fui,
ali, levado por um escândalo. Afinal, os quartos são baratos ...” ( p. 187).
Svidrigailov
comenta:
“...
estou convencido de haver em Petersburgo muita gente que anda falando sozinha,
alto. Encontram-se semiloucos, freqüentemente ... Dificilmente haverá lugar onde a alma humana esteja submetida a influências tão sombrias e estranhas.” (p. 528).
E, acrescenta:
“O povo
dá-se a embriaguez: a mocidade culta estiola-se e afunda-se em sonhos
irrealizáveis, perece em monstruosas teorias. Os judeus tudo invadiram,
entesouram, escondem o dinheiro. Os outros entregam-se ao deboche. Eis o
espetáculo que me ofereceu a cidade ao chegar; espalha cheiro de podridão.” (p. 542 – 3).
No quarto
do hotel, pouco antes de se suicidar, Svidrigailov:
“Acendeu
a vela e pôs-se a examinar atentamente o quarto. Era uma verdadeira gaiola com
uma janela, de teto baixo, em que um homem da altura de Svidrigailov mal podia
ficar em pé. Além da cama, sujíssima, uma simples mesa de madeira pintada e uma
cadeira enchiam o cômodo. As paredes pareciam de tábuas cobertas de uma
tapeçaria tão empoeirada que era difícil adivinhar-lhe a primitiva cor.” (p. 566).
Estes
fragmentos indicam que a ambientação, de acordo com os conceitos de Osman Lins
(1976:79 – 80; 82 – 83) é tanto franca, com a presença pura e simples do
narrador, descrevendo o espaço, quanto reflexa, com o espaço sendo criado
através do discurso de uma das personagens.
Os exemplos
mostram que onde quer que se vá, nos ambientes internos, nos ambientes
externos, tudo é promiscuidade. Este espaço degradado leva as personagens,
conforme as observações de Viviana Bosi, a uma condição desenraizada do
ambiente em que vivem (habitam espeluncas alugadas, onde a qualquer momento
podem ser mandados para o olho da rua) e tendem ao escapismo da realidade quer
por via psíquica (loucura/alienação), quer por via química (alcoolismo) (Bosi,
2001).
Segundo
Leonid Grossman, em seu estudo sobre Dostoiévski (1967: 116) : “Crime e
castigo é antes de tudo o romance da cidade grande do século XIX. O
fundo, amplamente exposto, do centro capitalista determina o caráter dos dramas
e conflitos. As tavernas e botequins, as casas de tolerância, os hotéis
ordinários, as delegacias de polícia, a água-furtada do estudante e o
apartamento da usurária, as ruas, os becos, os pátios e desvãos, a Sienaia (rua
dos prostíbulos) e o “canal de esgoto”, tudo isto como que engendra o projeto
criminoso de Raskolnikov e marca as etapas de sua complexa luta interior.”.
c)
índices de espaço
(função de insígnia)
Osman Lins
(1976: 73), citando M. Butor, aponta que a presença
de objetos, nos cenários do romance, com
determinadas características particulares funcionam como potentes
“proliferadores de espaços” pois “Necessitamos pormenores, ... destinados a
exercer uma função de insígnia.”.
Em
Crime e Castigo podem-se encontrar
inúmeros referentes, que exercem essa função simbólica assinalada por Lins, constituindo-se em importantes índices de espaço, dentro do corpo da obra. A seguir, apresentam-se alguns desses índices.
c1) ponte – a presença do rio
Peterburgo
foi contruída sobre o pântano formado na desembocadura do rio Neva, no fundo do
golfo da Finlândia. A cidade entrecortada pelo rio, possui inúmeras pontes.
Dostoiévski lança mão do referente ponte em diversas cenas de Crime e Castigo, para assinalar a
presença do Neva, na cidade:
“Raskolnikov foi direto à ponte. Chegando
bem no meio, debruço-se no parapeito e começou a olhar, longe. ... Em seguida,
começou a reparar nas águas negras do
canal e ficou parado, numa contemplação atenta. ... Voltou-se e viu uma mulher,
coberta com um xale ... apoiou-se no parapeito, com o braço direito, levantou a
perna direita, montou na grade e saltou no canal. A água suja borbulhou um
momento, cobriu a suicida, mas logo ela flutuou...” (p. 211).
Após
sair do velório de Marmeladov:
“Raskolnikov deu nome, endereço e prometeu
voltar no dia seguinte....Cinco minutos mais tarde, encontrava-se na ponte,
justamente no lugar em que a mulher se jogara n’água.” (p. 235).
“Ficando sozinho (Raskolnikov), caiu como sempre em profunda abstração e,
chegando à ponte, debruçou-se no parapeito e pôs-se a olhar fixamente a água do
canal.” (p. 547).
O que passaria pela cabeça de
Raskolnikov, em todos esses momentos, debruçado no parapeito da ponte e olhando
fixamente as águas do rio? Muito provalvemente, o suicídio.
c2 ) natureza
A
presença da natureza em Crime e Castigo
é muito restrita, tendo particular destaque o momento do pôr-do-sol.
Quando
Raskolnikov visita a velha usurária antes do crime:
“... e o sol posto iluminava a peça, naquele
momento. “Nesse dia, o sol clareará, não há dúvida, do mesmo jeito” ...”
(p. 35).
“Voltado para a água (Raskolnikov), olhava fixamente os reflexos rosados do
crepúsculo, a linha das casas obscurecidas pelas sombras crepusculares e uma
longínqua água-furtada, na margem esquerda do rio, parecia incendiada pelos
fulgores de um último raio de sol que incidia sobre ela.” (p. 211).
Na
última noite de vida de Svidrigailov:
“Por volta das dez horas o céu cobriu-se de
nuvens grossas e pretas. Desencadeou-se violenta tempestade. A chuva não caía
em pingos, mas em verdadeiras catadupas que batiam no solo, fustigando-o.
Enormes faíscas riscavam o céu. Svidrigailov chegou à casa, alagado. ...
examinou-lhe com surpresa as roupas molhadas ... Às onze e vinte apresentou-se
todo encharcado ...” (p. 562; 564).
Nas palavras de Rodolfo Pessanha
(1981: 104): “... um banho purificador. Certamente, um novo batismo, dionisíaco
e regenerador. São por demais evidentes as conotações insistentes do arquétipo água: as expressões “alagado”,
“molhadas”, “chuva”, “encharcado”, “gotas”, “inundadas”, “empapados” etc.,
abundam no texto final.”.
Já pagando sua pena, na Sibéria,
Raskolnikov pode , enfim, longe da cidade opressora, sentir a liberdade, embora
prisioneiro, com a natureza invadindo-o,
purificando-o:
“O dia estava ainda belo e quente. Às seis
horas da manhã, ele foi à beira do rio ... sentou-se num montão de madeira sobre a encosta e pôs-se a contemplar o rio,
largo e deserto. Daquela margem elevada, descobria-se vasta extensão de terra.
Da margem oposta e longínqua chegava um canto cujo eco ressoava no ouvido do
prisioneiro. Na imensa estepe inundada de sol, apareciam aqui e ali, em pontos
negros mal perceptíveis, as tendas dos nômades. Era a liberdade ...” (p.
612).
c3) iluminação
Seguindo
as palavras de Leonid Grossman (1967: 58 – 9): “Dostoiévski, que evitava em
suas descrições cores vivas e abundantes, gostava dos efeitos abruptos de
iluminação: os raios do ocaso, que lançavam sombras compridas, e o clarão
passageiro das quimbas, iluminando rostos deformados pelo sofrimento e pelos
vícios. ... Os raios oblíquos do poente.”, pôr-do-sol sempre tão presente,
conforme analisado anteriormente. E, nos interiores, continua Grossman “ a
iluminação rembrandtiana, da luta de luz e sombra, do clarão nas trevas.”.
Raskolnikov,
ao trazer Marmeladov bêbado para casa, observa Catarina Ivanovna:
“E aquele rosto transtornado de tísica
produzia uma impressão desagradável à luz agonizante do toco de vela quase
acabado, cujo trêmulo clarão o iluminava.” (p. 56).
Após
a leitura do Evangelho de São João, Sonia acrescenta:
“ – Acabou a ressurreição de Lázaro, disse
depois, imóvel, sem ousar lançar um olhar a Raskolnikov. Seu tremor febril
durava sempre. O coto de vela acabava de consumir-se no castiçal torcido, e
iluminava fracamente aquele cômodo miserável, onde um assassino e uma
prostituta se haviam tão estranhamente unido para lerem o Livro Eterno.” (p.
383).
c4) cor amarela
Conradi,
citando J. Jones, informa que a cor amarela tem uma forte conotação de sujeira
para o povo russo (Conradi, 1988 50). Em Crime
e Castigo pode-se apontar inúmeros referentes com essa cor:
1)
a ficha de prostituta (Conradi, 1988:
50);
2)
a pele da velha usurária (p. 35);
3)
o papel nas paredes de um pequeno quarto
no apartamento da velha usurária (p. 35);
4)
o açúcar para adoçar o chá de
Raskolnikov (p. 59);
5)
a estreita cela de Raskolnikov (p. 72);
6)
a medalhinha no pescoço da velha
usurária, apenas assassinada (p.114);
7)
o copo e a água oferecidos a Raskolnikov
na delegacia (p. 140);
8)
o rosto da mulher que se atira nas águas
do Neva (p. 211);
9)
a tez do juiz de instrução Porfírio
Petrovitch (p. 301);
10) um divã
no apartamento da velha usurária assassinada (p. 329);
11) o papel
nas paredes do aposento de Sonia (p. 368);
12) a
mobília do gabinete do juiz de instrução Porfírio Petrovitch (p. 387);
13) a
tapeçaria do quarto de Raskolnikov (p. 484);
14) o rosto
de Catarina Ivanovna morimbunda (p. 497);
15) a
cédula monetária dada por Svidrigailov a uma cantora de rua (p. 527);
16) as
pequenas residências próximas ao local onde Svidrigailov suicida-se (p. 572).
Dezesseis
referentes em situações bem disfóricas, com a cor amarela, sugerindo a intenção
de Dostoiévski, com esse procedimento, de acentuar a atmosfera promíscua do
romance.
c5)
escada
Na afirmação de Antonio Candido
(1993: 68), a escada é “um elemento importante na literatura, a partir da
urbanização do século XIX que logo passou de traço realista a cenário
fantástico e daí a espaço simbólico.”.
No espaço degradado de Crime e Castigo é permanente a presença
da escada. Raskolnikov ao visitar a velha usurária na véspera do crime:
“... galgou a escada da direita, estreita e escura ...” (p. 32);
E,
após deixar o apartamento da velha:
“Uma escada saindo da
calçada, levava ao subsolo onde ficava a tasca ... Raskolnikov desceu sem
hesitar ... sentou num canto escuro e imundo, à beira da mesa poeirenta.” (p.
38).
Raskolnikov levando Marmeladov,
bêbado, para casa:
“Atravessaram o pátio e subiram ao quarto andar. A escada ficava cada
vez mais escura. Eram quase 11 horas e
se bem que, nesta época do ano, por assim dizer não houvesse noite em
Petersburgo, o alto da escada estava mergulhado na mais completa escuridão.” (p.
55).
Talvez, num dos momentos mais
sublimes do romance, sublimidade leve, doce, franca (não a angustiada
sublimidade do relacionamento com Sonia), Raskolnikov deixando o velório de
Marmeladov:
“... despediu-se e começou a descer a escada.... No meio da escada, foi
alcançado pelo padre que se ia embora. Afastou-se para deixá-lo
passar....Descia os últimos degraus quando ouviu um passo apressado atrás de si
... Era Polenka. ... A menina continuava descendo ainda: parou um degrau acima
do seu. Um raio de luz fragilíssimo vinha do pátio. ... a menina aproximou-lhe
o rosto e ele viu que lhe oferecia um beijo. De repente seus bracinhos, magros
como dois paus de fósforos, o enlaçaram com força, a cabeça infantil pendeu-lhe
sobre os ombros e a guria começou a chorar, apertando-o contra si, cada vez
mais.” (p. 234 – 5).
Ainda Raskolnikov, entrando na
delegacia para, finalmente, confessar o crime:
“A escada em caracol estava sempre coberta de lixo, tresandando a
emanações infectas das cozinhas, cujas portas estavam abertas em cada patamar
... As pernas fugiam-lhe sob o corpo, impedindo- lhe avançar.” (p. 589).
A escada “produto de uma
transformação radical do espaço urbano” (Candido,1993: 69), ocorrida
principalmente a partir do século XIX, cumpre, em Crime e Castigo, não só traço realista, como caracterizadora do espaço
da cidade de Petersburgo, mas também, como criadora de espaço simbólico.
“A escada é o símbolo por excelência
da ascensão e da valorização, ligando-se à verticalidade.” (Chevalier, 1989:
378). Para Gaston Bachelard (1993: 36 – 7): “A verticalidade é proporcionada
pela polaridade do porão e do sótão ... pode-se opor a racionalidade do teto à
irracionalidade do porão ... ele (o porão) é a princípio o ser obscuro da casa ... Os andares elevados, o sótão, o sonhador os
“edifica” e os reedifica bem edificados. Com os sonhos na altitude clara
estamos, convém repetir, na zona racional dos projetos intelectualizados.”.
Em Crime e Castigo , a escada leva aos subterrâneos, onde estão as
tabernas imundas, ao “ser obscuro da casa”, nas palavras de Bachelard, mas na
ascensão, com Dostoiévski, não há valorização, a polaridade porão – sótão, em
termos de valor, não se concretiza, ambos se igualam na irracionalidade obscura. Na ascensão, a escada leva a cubículos abafados e infectos, não há
sonhos na altitude, só pesadelos. Pelas escadas as pessoas abandonam suas
moradias miseráveis e atingem as ruas, as praças, para se diluírem na chusma
de pobretões e bêbados.
“A escada aparece como um símbolo do
sobressalto, da perplexidade e dos pressentimentos tremendos.” (Grossman,1967:
157).
d)
a circularidade interior – exterior
Uma das características que se
pode notar em Crime e Castigo é a
circularidade das personagens, entendendo-se por circularidade a movimentação,
a circulação das personagens, de espaços interiores para espaços exteriores e
destes, novamente para espaços interiores. Sente-se um verdadeiro “entra-e-sai”
de pessoas de cubículos, quartos, tabernas, delegacia, ruas e praças, num tempo
adensado, transmitindo sensação de ritmo frenético, neurótico.
No interior, quase sempre cenas
com muita carga emocional e elevada tensão psíquica. No exterior, tentativa de
distensão que acaba resultando em cenas de escândalos e catástrofes. De acordo
com Mikhail Bakhtin (1997: 128), este abrir-se público patético, nas cenas da
obra de ficção, pode ser conceituado como o processo de carnavalização da literatura, considerado
pelo crítico russo, como de fundamental importância para o desenvolvimento do
gênero romance, processo este, comprimido no tempo, mas não no espaço e que cria:”...
a praça pública carnavalesca, ... do livre contato familiar e das cenas de
coroações e destronamentos públicos.”.
Raskolnikov após ler a carta
recebida de sua mãe :
“... sentiu o rosto molhado de lágrimas, ...
estava pálido, a expressão convulsa, ... seu coração batia com mais força, a
alma torturada sentiu-se sufocado nessa estreita cela amarelada ... Seus olhos,
seu cérebro, clamavam por mais espaço. Tomou o chapéu e saiu ...” (p. 72).
Com a cabeça fervilhando, no boulevard K encontra uma adolescente
completamente bêbada, seguida de perto por um homem de seus trinta anos, forte,
gordo e vermelho. Tenta socorrer a mocinha, chama um policial para auxiliá-lo.
Apesar da sua condição financeira lastimável, dá vinte copeques ao guarda para
levar a menina para casa. A menina rejeita o socorro. Raskolnikov tem uma
reviravolta completa de comportamento e desandando a rir grita para o policial
deixar tudo do jeito que está. Andando a esmo atravessa uma das pontes do Neva
e chega às ilhas. Entra numa taberna, bebe um copo de vodca e come alguns
bolinhos de carne, acabando de comê-los novamente andando pelas ruas. Deixa o
caminho principal, entra numa picada, cai na relva e dorme logo, tendo um sonho
terrível (p. 79 – 87).
O jantar em homenagem ao morto
Marmeladov começa com os preparativos em clima de aparente cordialidade, que
rapidamente desaparece já nos primeiros instantes do rega-bofe. A presença
inconveniente e mal-educada da gentalha do edifício, a ausência de alguns
convidados considerados importantes, a implicância com Amália Feodorovna
exaltam o ânimo de Catarina Ivanovna, a viúva e anfitriã. A tensão atinge o
clímax com a desfaçatez aprontada por Lujine contra Sonia. Com o
desmascaramento de Lujine, a discussão aquece-se, as duas “senhoras” engalfinham-se
e a pobre viúva acaba sendo expulsa de casa. Catarina Ivanovna, tomada de
loucura, perambula pelas ruas e praças, com seus três filhos pequenos,
cantando, dançando, mendigando. Num lance grotesco sofre queda, é recolhida no
cômodo de Sonia, onde morre pouco depois (p. 438 – 464, 482 – 483, 486 – 497).
Outros exemplos de circularidade:
1)
o atropelamento e morte de Marmeladov
(p. 219 – 233);
2)
primeiro encontro de Raskolnikov com o
juiz de instrução Porfírio Petrovitch (p. 296 – 325);
3)
segundo encontro de Raskolnikov com o
juiz Porfírio (p. 385 – 415);
4)
terceiro encontro de Raskolnikov com o
juiz Porfírio (p. 510 – 529);
5)
o suicídio de Svidrigailov (p. 561 –
575);
6)
a confissão de Raskolnikov, com a cena
patética do beijo no chão da praça do Mercado (p. 584 – 594).
Nas palavras de Gaston Bachelard
(1993: 215 – 6): “ O exterior e o interior formam uma dialética de
esquartejamento, e a geometria evidente dessa dialética nos cega tão logo a
introduzimos em âmbitos metafísicos ... a simples oposição geométrica se tinge
de agressividade.”.
Para Malcolm Jones (1990: 30), em Dostoiévski:” The
result is violent oscillation, instability, threshold situations, a world and
individuals poised on a knife-edge of viability and non-viability, almost real
but not quite ... We see this oscillation ... internalized in the psychology of
the Underground and typically externalized in the Dostoyevskian scandal
scene.”. Estas
situações de estados de tensão, em espaços fechados alternando-se com cenas
públicas de escândalo, caracterizando a circularidade interior – exterior do
romance, pode ser representada pelo esquema:
No espaço interior geram-se condições para aumento
da tensão emocional das personagens; este acúmulo de tensão impele as personagens
para o espaço exterior em busca de distensão; nos espaços externos resultam
cenas de escândalos ou de catástrofes (atropelamento, morte), a distensão é
abortada, há nova interiorização e o ciclo é retomado. A ruptura deste círculo
infernal só ocorre após a confissão de Raskolnikov e sua catarse na prisão.
CONCLUSÃO
Para
iniciar a conclusão deste ensaio, transcrevemos segmentos de um trecho do Bulletin de la Societé de Geografie (da
França), inserido na Introdução Geral, da Obra Completa de Dostoiévski, por
Nunes (1995:116 – 7), no qual é feita
uma descrição da Petersburgo, no século XIX, à época de Dostoiévski:
“A nova
capital da Rússia cintila e brilha aos olhos do estrangeiro pela regularidade,
o asseio e o comprimento das ruas, pela imensidade dos palácios, pela beleza
das casas e pelos soberbos passeios de granito ... É para as ilhas que vão os
mais ricos senhores ... Cortadas de canais, sulcadas sem cessar por barcos de
cores variadas, unidas entre si por pontes elegantes, semeadas de cottages brilhantes de frescura e de
graciosidade, estas ilhas, durante o mês de junho, em que a natureza
despertando de repente parece querer compensar-se do seu longo silêncio, são
bem a estância mais deliciosa que se pode sonhar sobre a terra ... Petersburgo
é sem contradição, uma das cidades mais suntuosas da Europa (grifo meu).
E agora
como é que ficamos com todo esse asseio, a beleza das casas, barcos coloridos,
pontes elegantes, cottages cheios de
frescura, após termos chafurdado na Petersburgo, imunda e degradada, de Crime e Castigo?
Ora, o
ponto de vista do Bulletin é o da
nobreza, da alta burguesia, que tinha olhos só para os palácios, os cottages, os barcos multicoloridos.
Felizmente para seus leitores, Dostoiévski, não endossava esse ponto de vista.
Dostoiévski enxergava o lado sórdido e imundo da cidade, e o revelou e o
perenizou na sua obra. Os bairros pobres, ocupados pelo populacho, com seus
becos e vielas em oposição aos soberbos passeios de granito; com seus canais de
esgoto em lugar dos canais das ilhas, onde os ricos iam veranear, sulcados sem
cessar por barcos coloridos; os edifícios ridículos, com suas pocilgas, suas
tabernas promíscuas em contraste com a suntuosidade dos palácios. Dostoiévski,
através do seu mundo ficcional, incita seus leitores a refletir de maneira mais
abrangente.
A
literatura tem o poder de criar a sua realidade mesmo que, citando
Anatol Resenfeld (1996: 91), seja por meio da: “desrealização, abstração e
desindividualização, ... (na) tentativa de superar a dimensão da realidade
sensível para chegar, segundo as palavras do pintor expressionista Franz Marc,
à “essência absoluta que vive por trás da aparência que vemos”.”, possibilitando ao leitor, não só o prazer estético da leitura, mas também o
alargamento da sua visão de mundo.
BIOGRAFIA SUCINTA
Nos sessenta anos em que viveu
Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski, de 1821 a 1881, sua pátria, a Rússia, passou
por importantes acontecimentos políticos, os quais deixaram marcas na vida, e na obra do grande escritor, conforme
apresentado por Natália Nunes (1995: 25 – 122). Aliados a esses fatores
exógenos, fatores endógenos, de natureza familiar, de vida privada, também
deixaram marcas indeléveis na personalidade do escritor, que contribuíram para balizar sua conduta como
homem e como artista.
O
triunfo da Rússia sobre Napoleão, em 1812, intensificou a aproximação com a
Europa Ocidental, já iniciada no reinado do tsar Pedro I, o Grande ( 1682 –
1725). Essas tentativas de ocidentalização da Rússia, com influência
particular da civilização francesa, sempre foram, contudo, superficiais.
Desenvolveu-se um capitalismo incipiente, que deu origem a uma burguesia que
não possuía o verdadeiro sentido de liberdade individual, incapaz de se opor
eficientemente ao estado tsarista absolutista, fazendo com que as idéias do liberalismo ocidental se degenerassem em inúmeros movimentos políticos
socialistas, anarquistas, niilistas que acabaram desaguando na revolução de
1917.
Quando
o tsar Nicolau I subiu ao trono, em 1825, encontrou oposição declarada dos
ocidentalistas progressistas, que entendiam que a Rússia necessitava de uma
reforma no estilo das reformas ocidentais trazidas no bojo da Revolução
Industrial. Contudo, a burguesia russa era desprovida de força política. Também
o proletariado era fraco e desorganizado. O poder econômico estava nas mãos de
uma aristocracia rural, e o poder político nas mãos de ferro do tzar
absolutista, apoiado no exército e na burocracia administrativa. De outro lado,
havia os eslavófilos conservadores, que pretendiam reformas, mas dentro da
ordem constituída, apoiadas nas fontes tradicionais russas.
Dentro
deste ambiente de agitação social, o jovem Dostoiévski, oscilava entre as duas
correntes de pensamento. Estreou como escritor, em 1846, após exercer a
profissão de engenheiro militar, desde sua formatura, em 1843, com o romance Pobre gente, recebendo muitos elogios da
crítica conservadora ligada à aristocracia. Seus trabalhos imediatamente subsequentes foram, porém, rejeitados por essa mesma crítica, deixando no escritor
o ranço do ressentimento, da vaidade ferida, da insociabilidade e da angústia.
Acabou ligando-se, sem muita convicção, ao movimento progressista, sendo preso
e condenado à morte, em 1849, juntamente com outros companheiros de
conspiração. No último momento da execução , após a leitura da sentença de
morte, por fuzilamento, de cada um dos condenados, tendo até já sido feita a
leitura de um trecho da Bíblia, um ajudante de ordem veio a galope trazendo a
ordem do tzar que desfazia a farsa grotesca -
comutação da pena para oito anos de degredo na Sibéria: quatro anos de
trabalhos forçados na prisão, e quatro anos de serviço no exército da região.
Estas dolorosas experiências influenciaram toda sua criação literária
posterior, impregnando-a com situações nas quais os personagens desenvolvem
sentimentos contraditórios de revolta, culpa, arrependimento, criminalidade,
castigo.
O período na prisão foi de intensos
estudos dos Evangelhos (praticamente a única leitura que lhe era permitida),
travando-se em seu íntimo um embate que o fazia oscilar entre ateísmo e crença em Deus, embate que o
perseguiu durante toda a vida. Via em Cristo o primeiro revolucionário social
da história, um símbolo vivo, real, concreto da humanidade máxima do homem.
Quanto a Deus, manteve-se dolorosamente na dúvida racionalista, em conflito
permanente entre a razão que questiona e o sentimento que almeja amor fraternal
e paz, situações bem ilustradas pelo jovem Dostoiévski, ateu, e o Dostoiévski
no leito de morte lendo o Evangelho, bem como, pelo jovem arrogante e descrente
Raskolnikov, contestando a crença religiosa, cheia de humildade, de Sonia, e o
Raskolnikov, presidiário, que dormia com a Bíblia sob o travesseiro.
O
período siberiano provocou no Dostoiévski homem uma mudança radical em sua
postura política, assumindo uma posição reacionária acirrada de defesa do
absolutismo tsarista e dos valores tradicionais russos, atitude que nem sempre
foi partilhada pelo Dostoiévski artista. Viu-se muitas vezes às voltas com a censura às suas obras e
às suas correspondências, até quase o fim da sua vida, e teve, durante muitos
anos, após deixar a prisão, seus passos vigiados pela polícia.
No
âmbito familiar, a morte de seu pai, em 1839, quando ainda frequentava a Escola
Militar de Engenharia, assassinado pelos próprios servos, na sua propriedade
rural, foi o acontecimento mais importante de sua juventude ( Conradi, 1988:
7), e, num ensaio, Freud (1959: 299 – 318) apontou Dostoéviski como vítima de
neurose histérica decorrência de sentimento de culpa diante do assassinato, por
ter inconscientemente desejado a morte do pai, através do mecanismo de complexo
de Édipo não resolvido na infância, e até acentuado posteriormente, pelo
relacionamento afetivo insatisfatório entre pai e filho. Este sentimento de
culpa seria a raiz de desejos de autopunição narcisista, que permearam pela
vida do escritor, como por exemplo, sua conduta patológica compulsiva diante do
jogo, que o arruinou, e a sua família,
financeira e moralmente, durante várias décadas de sua vida. Esse complexo
criminoso, o sentimento de culpa, a necessidade de punição pela falta cometida
e a expiação da pena como forma de atingir o perdão estão presentes nas obras
mais importantes do escritor.
Os
anos finais da vida de Dostoiévski foram de tranquila respeitabilidade
burguesa, tendo como artista conquistado a fama e o sucesso, porém, na maior
parte de sua vida sentiu duramente na pele aquilo que aconselhara a um jovem
poeta, que o procurara em busca de orientação artística: “ Para escrever bem é
preciso sofrer, sofrer.”.
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(em "Ensaios Desnecessários" - inédito)