Luísa de Brito Carvalho é a
principal personagem feminina do romance O
primo Basílio (3), de Eça de Queirós (1845-1900), publicado em 1878.
Custódia Macário Montalegre, baronesa de Rabaçal, é uma das principais personagens
femininas dos romances Eusébio Macário
(4) e A corja (4), de Camilo Castelo
Branco (1825-1890), publicados respectivamente em 1879 e 1890. O objetivo deste
nosso trabalho é realizar uma análise comparativa sucinta da vida dessas duas
mulheres para tentar inferir o que possivelmente pretenderam os autores com a
criação dessas personagens.
Luísa, aos vinte e cinco anos,
casada há três com Jorge Carvalho, engenheiro de minas, funcionário público,
está vivendo sob um manto de placidez seu papel de dona de casa, “alegre como um passarinho, como um
passarinho amiga do ninho e das carícias do macho, [...] serzinho louro e meigo
[dando àquela] casa um encanto sério.”
Esse aparente equilíbrio conjugal será rompido com a chegada a Lisboa, espaço
das ações do romance, de Basílio de Brito, primo de Luisa e seu ex-namorado.
Luísa deixa-se seduzir pelo primo libertino e tem com ele um fulminante
relacionamento amoroso de cinco semanas, aproveitando-se da ausência de Jorge
que viajara a trabalho. Juliana, a azeda criada quarentona de Luísa, ao
conseguir apossar-se de algumas cartas trocadas pelos amantes, passa a
extorquir a patroa, cuja vida transforma-se num martírio. O bom, honesto,
solícito Sebastião, amigo de infância de Jorge, e vizinho, livra Luísa das garras
da infame criada, reavendo as cartas e, de lambuja, despachando a diaba para as
catacumbas do inferno, ao aviar uma síncope mortal ao coração doentio da pobre
mulher, resultado das ameaças de prisão e degredo pelo furto das cartas. A paz
pode, novamente, reinar naquele lar. Porém, chega de Paris, uma outra carta
comprometedora enviada por Basílio a prima-amante, descoberta por Jorge. O
marido traído “sombrio, infeliz, sentindo
a vida estragada” vai tirar satisfações com a esposa infiel. Luísa, ao
receber de Jorge a carta de Basílio, sofre uma convulsão, desmaia e, após breve
agonia, morre.
Custódia é “uma rapariga pimpona, de muito seio e braços grossos, roliços, [...] na
flor da mocidade [...] cheia de desejos animais [...e que queria] gozar era agora”. Provinciana, vive com
o boticário Eusébio Macário, seu pai, e José Macário, o Fístula, exímio
fadista, seu irmão, em Basto, proximidades do Porto. A essa pequena cidade
chega um dia Bento Pereira Montalegre, já feito comendador, homem rude de
origem humilde enriquecido em negócios no Brasil. Vem visitar Felícia, sua
irmã, “que de pastora de ovelhas passara
a ser ovelha gafada de pastor”, ou seja, amante do padre Justino. Bento ao
conhecer Custódia, que “saíra fora ao
terreiro a cumprimentar o comendador, sem acanhamento. Tinha prática de tratar
com a brasileirada fina dos arredores”, transborda de lubricidade. Passa a
arquitetar “planos desonestos,
abrasileirados [...] a respeito de Custódia. Pensava em dar-lhe luxo de
princesa [...] cetins, diamantes, caleche; tudo, excepto a mão de esposo.”
Ela lhe resiste. Não gostava de gordos e o comendador era gordo. A paixão
inflama-se no peito do comendador, agora agraciado com o título de barão, barão
de Rabaçal. Ele, ao deparar-se impotente diante do despotismo virginal de
Custódia, acaba cedendo e a desposa. Custódia é agora a baronesa de Rabaçal.
Mudam para o Porto. Baronesa, procura dar-se ares de nobre em seu novo status social, embora as más línguas
digam que não podiam atinar como aquela “boticária,
pantafaçuda, trapalhona, que mostrava as pernas nos lavadouros, que, quando
batia as palmas, parecia uma lavadeira a bater a roupa” houvera caído nas
graças do barão, que, por sua vez, também, não passava de um bruto, um estúpido
endinheirado. Entre rega-bofes, bailes, teatros e trampolinagens o tempo vai
passando até que entra em
cena Bartolucci “um
sujeito bem apessoado, muito apresentável, com reputação de conde pobre”
barítono italiano de uma companhia lírica de passagem pelo Porto: “o amor indiscreto [cega] a baronesa e [desvaira] o barítono.” O barão, roído pelos
ciúmes e bem aconselhado por seus pares, todos muito experientes em temas
cornígeros, numa “rubidez apopléctica”,
aos berros, põe a baronesa no olho da rua. Ela, antes de sair, espertamente
“[abre] as gavetinhas dum toucador,
[e embolsa] as jóias, colares, broches,
pulseiras, arrecadas, anéis que faiscavam os seus brilhantes facetados [no
valor de “doze contos fortes”, ou
melhor, “doze contos e seiscentos e
cinqüenta mil-réis fortes” de acordo com a precisa contabilidade mesquinha
do barão] [... e] com o pescoço muito
aconchegado numa platina preta” vai-se embora viver “às escâncaras” com seu amado barítono. “São destinos”...
Luísa vive quatro grandes momentos
cronologicamente encadeados. O primeiro é de aparente equilíbrio quando ela
desfruta a paz ociosa de um lar burguês como dona de casa, cuidando do
maridinho, implicando com a criada, fazendo crochê, recebendo os amigos e lendo
muitos romances românticos [... começou a
ler toda interessada. Era a “Dama das camélias”. Lia muitos romances ...
entusiasmara-se por Walter Scott ... agora era o moderno ... Paris ... suas
sentimentalidades ... Havia uma semana que se interessava por Margarida
Gautier; o seu amor infeliz dava-lhe uma
melancolia enevoada ...] . O
segundo é o das emoções arrebatadoras quando ela se deixa seduzir por Basílio e
parte para o relacionamento adúltero conflituoso ora pretendendo frouxamente
resisti-lo ora se atirando a ele com sofreguidão [Estou pasmada... como em tão pouco tempo te apossaste do meu coração...
meu adorado Basílio... tinha vontade de te dizer adeus para sempre, mas não
posso... agora sou tua... te pertenço corpo e alma ...]. O terceiro é o seu
calvário quando ela passa a sofrer extorsão de Juliana que a subjuga sob as
ameaças de revelar a Jorge as cartas comprometedoras; ela vai então cedendo
humilhantemente às exigências da criada [Estou
perdida!... Tudo descoberto! ... o furor de Jorge, o espanto dos seus amigos, a
indignação de uns, o escárnio dos outros ...]. O quarto é o de sua expiação
final quando após breve prenúncio de que sua vida poderia retornar ao
equilíbrio inicial com a recuperação das cartas e a morte da criada a peripécia
da chegada da carta de Basílio e sua descoberta por Jorge põe tudo a perder e provoca-lhe
a morte.
Custódia, também, vive quatro grandes momentos, cronologicamente
encadeados. No primeiro ela é uma jovem provinciana despachada e alegre morando
modestamente com o pai boticário bom de lábia e o irmão fadista desocupado. No
segundo ela se transforma numa baronesa cafona vivendo luxuosamente numa grande
cidade com o marido rude e endinheirado sempre a seu pé mantendo olho vivo em
sua conduta marital e lhe enchendo de porradas à menor suspeita de desvio da
fidelidade conjugal. No terceiro ela encontra o amor de sua vida, Bartolucci, o
barítono, apaixona-se, é correspondida e, mesmo sob o jugo ferrenho do barão,
dá livre vazão a sua libido, mergulhando num amor adúltero com o cantor “conde”
pobre. Os adulterinos entreveros ocorrem no idílico cenário da quinta do
Carvalhido afetuosamente cognominada de “a
chácara das brincadeiras” antítese do Paraíso,
o sórdido e claustrofóbico ninho de amor de Luísa. No quarto ela é expulsa de
casa pelo cretino barão corno – revelada a marafa com a ativa participação
maledicente de frei Justino – enfrenta corajosamente a situação, embolsa suas
jóias, que valem uma pequena fortuna, e vai viver feliz com o amante.
Luísa é mulher frágil e volúvel. Antes de seu casamento com Jorge, quando
ainda namorava Basílio, ao receber a carta em que o primo lhe comunica sua
intenção de romper o relacionamento – desmaia. Ao ser afrontada por Juliana com
as cartas comprometedoras – desmaia. Ao receber de Jorge a carta que Basílio
lhe enviara de Paris, cai sobre os joelhos e fica estirada no
tapete. Ao ver rompido seu namoro juvenil com Basílio sofre um curto
período, mas logo esquece, até repudia aquele amor. A princípio Jorge não lhe
agrada, mas sente por ele uma dependência confortável que lhe dá segurança. Com
o tempo passa a adorá-lo, mas na primeira ausência maior do marido a trabalho,
deixa-se seduzir pelo primo que passa a ser seu “adorado Basílio”. O
adultério lhe dá orgulho, sensação de superioridade, aumento da auto-estima,
repete literalmente, e também embevecida, [talvez sem o perceber, quiçá
porque nessas circunstâncias expressar-se desta forma seja mesmo um topos, um lugar-comum] as palavras de
Emma Bovary: “Tenho um amante! Longe do amante anseia vê-lo, junto dele
sente ligeiros laivos morais por estar traindo o marido. Precisa da ajuda
financeira do amante para comprar as cartas em posse da criada, mas recusa essa
ajuda. Pede para a amiga devassa promover um encontro com o banqueiro, que lhe
propiciaria o dinheiro necessário para a compra das cartas, mediante, é óbvio,
a concessão de certas facilidades sexuais, mas na hora “do vamos ver” tem uma
crise histérica. Partido o amante escreve-lhe a carta, que selará seu destino
fatal, solicitando a ajuda financeira, que antes rejeitara. Por tudo isso,
temos que dar razão ao velho bruxo do Cosme Velho quando escreveu (5): “[Luísa]
é antes um títere do que uma pessoa moral.” Títere do marido burguês, títere do
amante libertino, títere da criada recalcada. Diríamos, pessoa de moral frouxa,
caráter fraco, pusilânime, lírica, sonhadora, um ser despreparado para
enfrentar a realidade da vida.
Custódia é mulher forte e determinada. Embora jovem, provinciana, não tem
nada de boba, não se deixa seduzir pelas investidas do Bento e impõe-lhe o
casório, ainda que isso estivesse fora dos planos iniciais do comendador (homem
de negócios bem sucedido, viajado e, certamente, experiente nos assuntos
mundanos), como a saída para ele aplacar o fogaréu de sua paixão. Quanto a
influência de leituras perniciosa é “...
iniciada na literatura dissolvente ... conhecia ditos das novelas, e andava a
ler a tradução dos “Mistérios de Paris”, [mas nem por isso perdera] a alegria, o estômago e as noites regaladas,
bem dormidas de papo acima ... tinha
um interesse palpitante pelo príncipe Rodolfo, mas adormecia antes da peripécia
... com o braço decaído para baixo ... como a procurar no tabuado a brochura
caída ...”. Não gosta de gordos e o barão é gordo, mas ainda assim lhe
concede a mão diante da perspectiva de transformar-se em baronesa e ir viver
luxuosamente numa cidade grande. Tendo gostado da figura de um cantor lírico, o
baixo Del-Aste, durante um jantar com o marido e a cunhada não tem papas na
língua e gaba a figura do baixo com pertinácia: “- O baixo é uma linda figura, não é? E o barão, com ímpeto, enfiado: - Você mi párece quê baba por ele! Quê
caipórismo! – Gosto, pois então! Isso que faz? – Quê faz isso, hem? – replicou
o marido, e cascou-lhe os bofetões, sem mais nem menos.” Embora o barão
seja um bruto e, vai daqui vai dali, lhe pregue uns bofetões, aconselha o
irmão, o Fístula: “mano não há remédio
trata de te divertir que é o que eu faço.”. Ao ver-se expulsa do lar, não
se abala, enfrenta a situação, espertamente se apossa das jóias que,
transformadas em dinheiro, lhe garantirão um bom pecúlio. Ao ser recriminada
pelo pai pela sua atitude insensata, diz que estava farta do Bento, sente-se
aliviada, feliz. Diante dos argumentos da boa Maria de Nazaré de que devia
entrar para um convento por uns tempos (procedimento comum na época para redimir
mulheres desencaminhadas), até o barão se aclamar e tudo voltar ao normal,
exclama: “ – Convento! Credo! Nem de
rastos!” e vai viver abertamente com o amado na casa da “chácara das brincadeiras”. Depois sai
para a Itália, terra de Bartolucci. É mulher resoluta, de caráter forte,
pragmática, dá vazão a seus desejos e enfrenta com objetividade as
conseqüências dos seus atos. Poderíamos dizer que é pessoa preparada para
encarar a realidade da vida.
A vida de Luísa é movida pelo binômio sonho – ócio que a conduz
para um desfecho trágico com sanção negativa: Luísa é castigada com a pena
máxima – a morte. Eça, com seu realismo-naturalismo, cria uma patética heroína
romântica.
A tese do autor parece ser a de que uma educação precária advinda de
perniciosas leituras românticas inculcadas na cabecinha oca da jovem, associada
a uma vida de ócio num ambiente burguês seriam as responsáveis pela formação de
uma mulher sentimental, de pouco senso moral, sem firmeza de caráter, com
personalidade covarde, cheia de medo, incapaz de superar as armadilhas armadas
pela vida e suscetível até de criar armadilhas para si própria. A vida é uma
luta permanente entre o bem e o mal e para que o bem possa vencer é preciso
disciplina moral, energia, qualidades que advêm de uma boa educação e do
trabalho. Luísa identifica-se com as heroínas românticas dos romances que lê e
sua ociosidade burguesa lhe propicia a oportunidade para enveredar pelo caminho
do mal sendo sua queda inevitável. Almeja quiçá o autor que a leitora do seu
romance faça uma leitura suficientemente distanciada da “realidade ficcional”
da história, desenvolva um adequado espírito crítico sobre todo o enredo e suas
conseqüências, e, então, evite cair nos mesmos erros da heroína. É romance com
fins didáticos, educacionais, de formação, com perspectivas morais, imbuído de
ideologia com pretensão de apontar falhas na sociedade e possíveis meios de
corrigi-las.
A vida de Custódia, por sua vez, é movida pelo binômio prazer - dinheiro, mola mestra do mundo, que a conduz para um desfecho alegre com
sanção positiva: Custódia sai de sua pobre vidinha provinciana, ganha o título
vitalício de baronesa, livra-se do estúpido marido, embolsa um bom dinheiro e
vai para a Itália com o homem que ama e que também a ama. Se lembrarmos que o romance
se passa em meados do século XIX no seio de uma sociedade muito conservadora (“no tempo dos Cabrais em Portugal) somos forçados a concluir que Custódia
é uma mulher que está muito adiante de sua época, mulher que só começará a se
desenvolver de maneira representativa, na segunda metade do século XX. O
ultra-romântico Camilo cria, com um jocoso realismo, uma mulher revolucionária,
cem anos à frente do seu tempo.
O autor lançando mão de uma paródia satírica sugere com intencionalidade
manifesta uma crítica ferrenha à escola realista-naturalista com suas
pretensões cientificistas, experimentalistas e quejandos, que busca associar
mecanicamente, quase com ingenuidade, ciência e literatura, para consertar os
males da sociedade. Camilo parece estar a nos dizer, com humor, graça, ironia,
que o mundo é mau, não tem jeito, e o que temos a fazer é nos adaptarmos a ele.
Não tem a pretensão de corrigir nada, o mundo é um grande bordel, não é
passível de salvação, ele é assim mesmo, sempre foi assim e sempre assim será.
Notas
- Queirós,
Eça de. O primo Basílio. 15ª
ed., São Paulo: Ática, 1994.
- Castelo
Branco, Camilo. Eusébio Macário/ A
corja. Porto: Edições Caixotim, 2003.
- Assis,
Machado de. “Eça de Queirós: O primo
Basílio” em: Crítica. Obra
Completa vol. III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, p. 905, 2004.
(em “Ensaios
Desnecessários” – inédito)