domingo, 26 de janeiro de 2020

Velho atleta

me sinto duro feito gelatina
nesta manhã nebulosa que se descortina
atrás da cortina da janela do meu quarto

a dor nos quartos continua ainda
bem que eu me avisei que ia doer
eu devia ter andado jamais correr

essa mania de velho querer ser atleta
não tem simancol faz papel de pateta
já passou a hora de deixar cair a peteca

fica insistindo nesta história de exercício
ginástica pra manter musculatura elástica 
é só olhar no espelho pra ver o estrupício

que restou depois de passado tanto tempo
desde o longínquo dia do meu nascimento
cai na real meu não tem o menor cabimento

põe logo o fraldão cala o bico e se conforma
quer provar que é forte até a hora da morte
no velório vão dizer morreu em plena forma

domingo, 19 de janeiro de 2020

Inteligência irracional

ergui-me em grande júbilo
movido pela crença que fora
finalmente
alcançada a redenção
contra tudo que é mal
contudo
efêmera foi a sensação de felicidade
afinal
ser humano é ser devoto ao irracional
com prerrogativa autoimputada
de plenitude de racionalidade
a macro-história do mundo
a micro-história de cada indivíduo
vivente deste mundo de deus ou ateu
escancaram em nossas caras 
a lição que não sabemos aprender
─ evitar o sofrimento ─
ao contrário
exímios fomentadores de reveses nos apraz
cavar buracos para alojar nossos semelhantes 
buracos em que nós mesmos caímos
amiúde sem qualquer consolo

domingo, 12 de janeiro de 2020

Já vou tarde

ontem me propus que hoje seria diferente
proposta tíbia pra tocar a intangível verdade
ir até as entranhas não basta querer buscar
um eu esfarrapado sequer este viver austero

por que sem ser flor desejar tanto florescer
por que não aceitar tranquilo a obscuridade
da turba ignara seguir sombrio no anonimato
cumprir da vida o rito de passagem a morte

deixar secar a alma abandonar qualquer anseio
dar tempo ao tempo passivo aguardar pelo fim
inevitável sumir de vez no todo sempre enfim

entrar de férias definitivas no eterno nada
terminar com esta farsa que chamo vida
não esperar mais ser possível haver amor

domingo, 5 de janeiro de 2020

Igualdade e liberdade

nós seres ditos humanos
não somos iguais
aparentamos semelhança
mas igualdade jamais
desigualdades sempre
e quiçá cada vez mais
serão interpostas entre nós
o saldo bancário é um bom diferencial
outro a qualidade das sinapses cerebrais

em meio a miríades de ocultas almas vingativas
imbuídas de secretos desejos de tirania
disfarçados em palavras e gestos de virtude
louvores e promessas acobertando intenção de magoar
somos arrastados num redemunho
de vida que quer se superar a si mesma
incessantemente

ardilosamente
engendrada pelos poucos poderosos de fato
uma ilusão de liberdade serve para nos tornar
escravos numa servidão sub-reptícia

ignaros portamos
arreios de ouro
alguns a maioria
de couro
atrelados às carruagens dos donos do poder
e tangidos pelo chicote sutil de seus asseclas