domingo, 28 de abril de 2024

Ronda

por que querer perpetuar o cerne  

do ser acima da podridão da carne

conforma de vez com o passar ligeiro

vive alheio entorpecido por inteiro


pesados dias passados fiquem sem forra

engole grato rango ralo à base de borra

à noite sono com açoite de dia vem a dívida

o certo acerto de contas sem deixar dúvida


engano pretender felicidade à força

melhor solitário em lugar de otário

todavia gozo maior não há que gozar junto

porém essência perene ausência de bom assunto 


triunfo mundano passageiro trunfo

ficção de valor vale menos que arroto

enquanto o tempo escorre pro esgoto

destino o dia de corpo duro e carne fria


embora preferível mau hálito que sem hálito

e sentir medo serve pra exercitar os pelos

mesmo no fausto uma hora se fica exausto

aí se cai no abandono entrega pra novo dono

domingo, 21 de abril de 2024

Robomano

doravante vou procurar deixar de lado

o que os crédulos chamam de pessimismo

sairei da fossa e farei as pazes com o mundo

digo isso com bom esforço de boa vontade


doravante passarei a considerar que 

o ser humano é por natureza uma criatura de paz

ocorrem guerras permanentes ao longo dos séculos

pela necessidade de manutenção da paz


doravante passarei a considerar que

o ser humano é por natureza uma criatura fraterna

ocorre a exploração de um semelhante pelo outro porque

fraternidade não pode ser confundida com igualdade 


doravante passarei a considerar que

o ser humano é por natureza uma criatura criativa

ocorre a destruição da natureza pela criatividade porque

o ser humano quer o ser humano robotizado

terça-feira, 9 de abril de 2024

E depois...

tudo foi esquecido

nada ficou retido

a pobreza e o poder

o vazio e o vivido

a sombra e o suor

a solicitude e a solidão

nem sequer vestígio

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Prece

Deus protege meus semelhantes de minha bondade

porque com Teu poder de onisciência

bem sabes ela tem sempre segundas intenções 


Deus protege meus semelhantes de minha maldade

com Teu poder de onipresença onde eles estiverem 

porque bem sabes o mal que lhes posso fazer


Deus, com Tua infinita bondade,

protege de mim este Teu semelhante

mortal semelhante a meus semelhantes

porque bem sabes da nossa perversidade  

domingo, 17 de março de 2024

Inventário

 antes tantos exercícios de caligrafia

para escrever tantas linhas tortas 

e deixar tantos rastros de desencontros

e sem ter aonde ir chegar a lugar nenhum


mas eis que tão somente de repente

porque num pisco d’olhos tudo pode mudar

ponto particular dum piso pedroso de morais candentes

um ponto de exclamação em despretensiosa interrogação:

“Shall we dance?”

e daí  

Fiat lux!


depois tanto bem partilhado

em harmonioso conjuminar

valiosa dádiva da vida

a riqueza de um amor eterno 

até quando o eterno durar 


domingo, 10 de março de 2024

Reviravoltas da vida

 vivia minha vida sossegado

medíocre porém mansamente

até ser lançado a seu lado


você veio feito uma torrente

tudo que tocava estremecia

arrasava o que tinha na frente


tipo de gente assim bravia

transforma o florido em deserto

de feliz passei a pessoa que sofria


querendo distância estando perto

se necessário comeria cascalho

me abrigaria a céu descoberto


enfrentaria inverno sem agasalho

pra voltar a meu sossego antigo

ainda que na fronte o frio orvalho


mas longe desta forma de perigo

ter no peito renovadas esperanças

e até encarar outro tipo de inimigo


é preciso força pra promover mudanças

buscar energia em diversas fontes

não sucumbir ao peso das lembranças


deixar o vale fundo escalar os montes

ser ousado ir à procura de nova vida

desejar a amplitude de novos horizontes


tendo presente a natureza do real tesouro

não as vaidades mundanas enganosas

poeira que cobre falsos passageiros louros


ter olhos pra ver a beleza das rosas

qualquer que seja o dia

mesmo nas horas espinhosas


dessa maneira meu cérebro rugia

enquanto o corpo esquartejado

chafurdava numa viscosa agonia


ânsia de corrigir os erros do passado

pra não ver a vida inteira em ruínas

ter meu tempo todo em vão evaporado

domingo, 3 de março de 2024

Revelação

na hora você não teve escrúpulo para pensar no mal que me fazia 

agora chora 

vem com esta fala mansa 

que morre de amor por mim 

que não conhece ninguém como eu 

que necessita de meu ombro amigo 

basta 

essa conversa já passa do limite 

minha mágoa é profunda 

minha decepção irreversível 

minhas melhores inimigas, inimigos, inimigues etc.

seriam incapazes 

talvez

de tal atitude 

de tamanha ingratidão 

sua crueldade revelou 

seu verdadeiro caráter

seu mau caratismo 


domingo, 18 de fevereiro de 2024

Alta crítica

 de repente

bem em minha frente

me reaparece aquela figura fantasmal

vindo do fundo da catacumba infernal

e começa a cuspir na minha cara velha arenga malhada 

que eu pensava estivesse livre dela junto com a de cuja 


covarde, cagão, 

traste, imprestável, 

estrupício, inútil

pulha, isso mesmo, um pulha


eu, num primeiro momento, 

fiquei paralisado diante do espectro aterrorizante

depois, pouco a pouco fui recuperando o parco domínio

que, até em sã consciência, mantenho sobre mim

e reagi de mim para mim


Você tem razão, sou um pulha sim, 

mas  minha pilha está chegando ao fim

e para o bem geral não sou do tipo recarregável 

e Você o que foi a vida toda?

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Regresso

 

saúdo a todos vocês com grande estima e agradeço comovido por esta recepção tão carinhosa nem imaginam como me fazem feliz afinal esta é a minha querida terra a gente foge gira por todos os cantos em busca de um novo espaço outros horizontes e eu também girei e embora tenha retornado ainda giro como todo mundo gira solidários ao mundo que gira na solidão infinda do universo perdido a procura de um destino oco não há homem nem mulher que não tenha girado um dia podem contestar se quiserem mas é assim que eu penso por mais profundas sejam as raízes no íntimo somos eternamente nômades estamos aqui de passagem

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Quem sabe um dia

por mesquinhez não dás o que quero

negas alegando que não te fui sincero

pacientemente espero passar o tempo

quem sabe depois decidas jogar limpo


este comportamento sempre tão avaro

é a razão de tua vida assim infausta

absurda talvez encontres momento raro

de vir a mim em busca de perdão exausta

domingo, 28 de janeiro de 2024

Profissão desocupado

 na falta de coisa pior a fazer me encolho em mim mesmo 

recolho meus pedaços de lagarto largado ao léu mutilado e colo com goma arábica 

a cada passo dado em descompasso com o mundo mais e mais pulverizado 

sem perceber dispo minha vergonha 

máscara da minha falta de caráter e busco ser aprendiz de qualquer coisa 

penso num incerto ofício que não seja difícil mas não é nada fácil 

soldado guarda-costas frente a frente com o trabalho músico maestro carregador de piano entregador de pizza artista de circo bispo faquir peregrino 

mas não tenho mais idade pra nada disso

e na verdade eu nasci mesmo foi pra ser desocupado

e já estou aposentado

domingo, 21 de janeiro de 2024

Pro beleléu

mandatário o mercado

sob a tutela do capital

grande valor tem o mal

quem ficar fora tá ferrado


rodam as estações no tempo inexorável

rola pela inóspita encosta da ética

ribanceira abaixo a moralidade

ronda o pressentimento que deve piorar


murcha mais uma árida primavera

passa a gotejar o suor

sob o sol escaldante

de outro verão sufocante


cobertos de pedras pontudas os caminhos

orlados por espessa erva daninha

conduzem a profundo precipício

vastidão do tripúdio ao estropício


surpreendida a alma por gélido sopro

arfa um instante depois imóvel se cala

braço invisível na voragem põe o corpo

matéria perecível do sentir não sabe a fala


mesmo quem quer se soltar da terrível teia

tendida sobre a cabeça se esgarça vacilante

entre recusar ou assentir em ceder a veia

para vampiros sugar o sangue pulsante 


chegam aos confins do mundo

os ares mais insalubres

todo recanto tem um canto imundo

a situação é cada vez mais lúgubre


pela fresta do ralo da pia

furtivamente circulam baratas ao léu 

indiferentes à lua cheia

brilhando alta no céu


no chega pra lá alegres ainda que breve

todos caminhamos certeiro pro beleléu

como se fora antes hora de festa

até o raiar do dia rindo à beça

domingo, 14 de janeiro de 2024

Priápico

estas rosas são inúteis para uma mulher perspicaz e íntegra como ela 

mulheres assim apreciam flores sim porém quando vêm de amores perfeitos 

e você meu caro só porque tem carro caro mas é pobre de espírito 

pensa apenas em prazeres rasteiros egoístas irracionais 

mesmo se mandasse um rosal mesmo se mandasse um jardim seria inútil 

uma pena não digo isso por mim digo por você 

porque aqueles lábios carnudos vermelhos sempre úmidos sensuais 

jamais seriam mordidos por bocas como a sua 

eles anseiam outras volúpias fora do alcance deste seu mundo mesquinho


domingo, 7 de janeiro de 2024

Pra dissolver maus rumores

 serei eu que sou assim um miserável

é o que vivo a indagar a meus fechos ecleres 

por que trazer à tona o que envenena

insistindo em mostrar coisas infernais

pondo o dedo na ferida que gangrena

esquecendo de sentimentos fraternais


alguém dirá que isso tem nome

ele é um pobre infeliz deserdado

ingrato cospe no prato que come

ao menor elogio fica logo afogueado

o que falta aí é um pouco de aragem

cultivar um tema ameno que inebria

falar de amor fazer favor ou uma viagem


gostei da ideia 

embarco nessa

boa à beça 

eu e a medeia

simbora pra miami

eu no vácuo de um tornado

medeia surfando um tsunami