domingo, 27 de dezembro de 2020

Bem-estar

como se cada coisa estivesse tranquila em seu lugar

como se antes da hora aprazada tudo tivesse terminado bem

como se todos tivessem obtido o que quer que tivessem querido

mesmo que uns tivessem perdido contato com os outros e

cada um se recolhesse a uma vida individual

aproveitar o movimento alto da onda para se altear

descobrir o prazer de um estilo mais delicado de vida e

agregar-se à luz passando para o lado vencedor

de súbito sentir-se desnorteado pela paz

achar que o mundo nunca tinha sido tão bom 

domingo, 20 de dezembro de 2020

Falando para as pedra

 vivemos no reinado do medo

onde a todos apetece o podre

e o fruto fatal de um amor ruim

está pronto para no parto ter fim


mas o mundo não é só isso

há também muitas coisas boas

casas velhas ainda não vendidas

com as paredes descascando

a espera da demolição para aí

se erguer um novo edifício alto


um pouco distraído perdendo o pé

das coisas abro outra vez a porta errada

perdido num círculo vicioso de palavras e

por não ter tido nunca vocação pra nada

por nunca ter-me especializado num desejo

por jamais ter tido ponto de partida

usufruo ao menos o consolo de não ter

de estabelecer nenhum ponto de chegada

ficando livre de qualquer tipo de apelo


quero contudo amar meus semelhantes 

desde que os tenha sob meu jugo para

à noite em sonhos vomitar a comida estragada

que comi semiacordado durante mais um longo dia

enquanto o tempo vai passando passando passando

provocando meu natural apodrecimento ao qual

por ser um produto perecível 

como todo ser orgânico estou inevitavelmente sujeito

sem deixar de lembrar que o mundo é grande

e maior o cálido aconchego eterno do inferno

domingo, 13 de dezembro de 2020

É a lama é a lama

as águas
caíram do céu em quantidade impressionante
um novo dilúvio pós-moderno
sem deus ameaçador 
sem arca de noé

a terra 
misturada às águas formou um mar de lama
que desceu encosta abaixo em fúria perversa
vingança pelo desmatamento
vingança pela invasão indevida

as pessoas 
sem um noé que lhes construísse uma arca  
tiveram de arcar com as consequências
perderam tralhas
perderam moradias
perderam vidas

a lama cobriu as tralhas
a lama cobriu as casas
a lama cobriu os corpos
lama que encobre a irresponsabilidade dos responsáveis

as autoridades
sensibilizadas pela magnitude da desgraça 
num gesto humanitário 
autorizaram em caráter excepcional 
para todos os imóveis cadastrados 
destruídos pela enxurrada 
a isenção do pagamento do iptu
no corrente exercício fiscal

os sobreviventes 
agradecidos por tamanha generosidade
resignados com lama até o pescoço
reiniciaram a reconstrução das casas
a partir das montanhas de destroços
bem na mira da próxima enxurrada

domingo, 6 de dezembro de 2020

Um muro

em incessante trabalho soturno sorrateiro 

dia após dia nosso convívio colocou pedra sobre pedra  

erguendo este muro incomensurável 

que hoje segrega nossas vidas


inútil querer transpô-lo ou contorná-lo

tornou-se intransponível  seu fim inalcançável

não há como abrir porta janela vão 

sua dureza resiste todo tipo de ação


companheiro solidário jamais nos abandona

onde quer que juntos estejamos

aí está ele interposto entre nós


na rua em casa

na sala na mesa 

no quarto na cama

 

domingo, 29 de novembro de 2020

Barganha

 o mistério da morte não é maior que o mistério da vida

o ponto de chegada é o ponto de partida

e além desses pontos o nada

ao nascer fui colocado entre esses dois extremos coincidentes

sobrevivente a esmo a cada dia que passa  me reinvento


se por acaso num dado instante desse percurso possa ter 

a certeza intuitiva de que não sou o que meus pensamentos 

têm inventado para a pessoa que eu penso ser

e perceba que tenho caminhado às cegas por caminhos tortos

e se passe que meus passos têm sido passos de um morto

e olhe ao redor e enxergue a mais completa escuridão

e o medo se aposse de mim para ele busco urgente solução


da profundeza do meu terror invento deus como salvador

e no desamparo que me domina ouso realizar uma façanha 

propondo a ele sem o mínimo pudor uma descarada barganha


um ser humano na escuridão torna-se um criador e é

na escuridão das locas que são feitas as grandes trocas


para que não haja possibilidade de nenhuma desavença

proponho trocar minha redenção pela mais abstrusa crença


meu pensamento cego busca a fonte primária mais remota

para agigantar onde nada imagino existir antes força ignota

obediente à lei tão vasta transfigurada pela própria natureza  

milagre da transubstanciação em credo da mais pura incerteza


o milagre da cegueira de dizer sim eu creio

tenho tirado o pão da boca de meu irmão mas eu creio

nunca tenho feito um ato de bondade mas eu creio

sou prepotente vaidoso mesquinho ambicioso mas eu creio


não me importa compreender o inexprimível sentido de salvação 

abandono tudo o que é individual  para me agregar aos salvos

quero me salvar e para isso ofereço minha crença

eis a grande barganha que eu faço

o medo me leva a esse embaraço

domingo, 22 de novembro de 2020

Dear Mr Charles Darwin

perdoa a pobreza do comentário 

acerca do tempo este perdulário 

que não para de passar um segundo

às vezes me deixando errabundo

quem diria que já quase se vão

dois séculos que o senhor então 

um recém-formado naturalista 

em início de brilhante carreira

honrou com duas breves visitas

esta nossa curiosa terra brasileira

sabemos que ficou encantado 

com a natureza tropical do país

seu diário de viagem assim nos diz

da fauna e flora da mata atlântica

que conheceu em algumas localidades

não economizou elogios à variedade 

da bicharada e à exuberância da botânica

esses mesmos relatos falam também o quanto 

a escravidão enraizada fundo na sociedade

o sensibilizou a ponto de provocar ansiedade

manifestação de vergonha e de espanto

sentimento de dor imensa tristeza 

e até aversão pelo país cuja natureza

tanto o impressionou por sua beleza

passados esses anos todos

quero me dirigir ao senhor

usando destes rabiscos precários 

para tecer um breve comentário 

sobre o nível que atingimos de despudor

sabe o que aconteceu com toda aquela mataria

nem imagine uma tremenda de uma desgraça

pensava que o bicho homem não conseguiria

transformou praticamente tudo em fumaça

da mata original restam menos de 10%

falta pouco para atingirmos nosso intento

visto que as coisas vão bem a contento

chegar ao limite máximo de zero por cento

adeus bromélias canelas jacarandás 

orquídeas pequis perobas sucupiras e vinháticos sorumbáticos

bye-bye antas araras beija-flores bichos-preguiça 

capivaras cotias lontras micos-leão-dourados 

onças-pintadas pacas tucanos e veados desesperados

tchau cobras-corais dourados pacus pererecas-verdes 

sapos-cururus e traíras iradas

bem-vindos agrotóxicos aridez desmatamento 

erosão êxodo fome e miséria

o homem chegou trazendo o asfalto o desenvolvimento 

o dióxido o esgoto o monóxido o lixo a poluição 

o progresso a urbaniztruição

quanto à ingrata questão da escravidão 

acredito ter uma boa notícia pra dar

oficialmente ela acabou em maio de 1888

na prática a história é outra a coisa não é biscoito

não se sabe ao certo quando é que vai acabar

o brasileiro negro até hoje rói osso 

chupa carne de pescoço

tem lutado bravamente

para conquistar cidadania condição decente

digna de qualquer ser humano

contudo a conjuntura é parada dura

pois os branquelos no mano a mano

não querem entregar a rapadura

em qualquer indicador social 

os negros levam desvantagem

nas favelas espalhadas pelo país 

negro é maioria 

na mais pura sacanagem

a mortalidade infantil dos negrinhos 

bate fácil a dos branquinhos

sobra pro negro o trabalho mais precário 

ganha menor salário

sente mais o desemprego 

e descarados falam em desapego

a escola do menino negro é mais rara 

menino branco pode pagar escola cara

o negro sofre maior violência social 

todo mundo acha normal

o racismo continua amplo e irrestrito

mas o negro é forte 

até diante da morte 

vai amplificar seu grito

destarte dr darwin 

ilustre pai do evolucionismo

encerro esta missiva um tanto quanto disfórica

ousando lhe fazer uma pergunta retórica

que o senhor pode responder sem prolixidade

bastando apenas um sim ou um não

será que podemos considerar isso tudo evolução


yours sincerely 

domingo, 15 de novembro de 2020

O universo e a mosca na sopa

regime alimentar é mesmo um saco mas

o endocrinologista me encostou na parede

ou sigo à risca a dieta 

ou não vou durar mais muito tempo


outro dia enquanto esperava que a sopa dietética

receitada para meu magro jantar diário esfriasse

me distraí lendo um artigo 

em uma dessas revistas de cultura prêt-à-porter 

que abordava coisas inacreditáveis sobre o universo


fui informado por exemplo que o universo

segundo teorias científicas elaboradíssimas

suportadas por práticas engenhosíssimas 

e caríssimas

tem a bagatela de 15 bilhões de anos


tudo começou com uma baita explosão 

carinhosamente batizada de big bang

antes do começo não tinha nada pois

senão o começo não seria o começo pá


aos exatos 3 minutos de vida 

o universo bambino

quem suporia tal desatino

era uma sopa primordial

de partículas elementares 

a voar por todos os ares

cuja natureza é inimaginável

ao comum dos mortales

na maior das quenturas 

com 1 bilhão de graus 

de temperatura


dali pra frente aquela zorra toda

só fez foi expandir sem demora 

e com a expansão foi se resfriando 

sem chegar quiçá a ficar gripado


surgiram as galáxias as estrelas

os planetas e tantas cositas más

dizem que exatos 5 bilhões de anos atrás

surgiu este nosso mundão velho sem porteira 

ao qual temos dado o melhor de nós

pra mais rápido de novo transformar em poeira

apesar dos alertas de tantos a levantar a voz


ao ler sobre a questão da tal 

sopa superquente primordial

lembrei da sopa dietética que

sobre a mesa esfriava no prato


a contragosto deixei de lado

aquelas lucubrações cosmológicas

tão superinteressantes

e voltei minha atenção

para o lado chão da vida


o raio da sopa não só estava gelada

como em seu seio ainda abrigava

uma mosca desesperada se debatendo

inutilmente ali já quase morrendo

tive um pequeno vacilo humanitário

e pensei em salvar o inseto atrevido

porém decidi deixar de ser otário 

e num gesto muito bem decidido

mandei tudo sopa inseto

meu jantar daquela noite  

pro fundo do esgoto direto 

sem complacência pelo ralo da pia


peguei a revista que falava de astronomia

e rumei pro mcdonald’s perto de casa


retomei a leitura do assunto

a contragosto abandonada há pouco  

praticamente indescritível do big bang

enquanto saboreava um delicioso bigmac


consegui creio ter captado o conceito

fundamental ao que tudo indica

do que é uma estrela gigante vermelha

degustando uma porção gigante de mcfritas


embora um tanto perdido confesso

em meio a tantas ideias abstrusas de

quarks e gluons

matéria e energia escura

anãs brancas e supernovas  

não deixei escapar a super mcoferta de sobremesa

tudo bem regado com 1 litro de coca zero é claro


preocupado com o futuro do universo

daqui a alguns bilhões de anos

se ele vai de fato continuar talvez 

a se expandir para sempre de vez

até atingir um triste fim coitado

completamente escuro e gelado 

exaurido de suas fontes energéticas

quis esmiuçar um pouco mais

por ser considerada estratégica

entre inúmeros cientistas respeitáveis 

na medida do possível

a relação da quantidade de matéria existente

com a chamada densidade de matéria crítica


antes porém abocanhei dois sorvetes mccolosso

que me encheram o bucho até o pescoço

esquecido do estado do meu corpo com seu peso crítico  

que ao menor esforço estupora de cansaço


e assim aprendi um bocado sobre o universo   

comendo graças à mosca na sopa  

um mundo de entulho 

e mandando meu sofrido regime pro espaço

domingo, 8 de novembro de 2020

Amor crepuscular

bem agora que me tornei membro
efetivo do clube da pior idade
fruto passado pronto aos vermes vorazes
vem me acontecer este amor tão elevado

bem a mim que nunca soube de mim
mau amante sempre mal amado  
coração vesgo só vendo o viés do mundo 
vêm amanhecer manhãs radiosas jamais sonhadas

não sei se devo merecer tamanha dádiva
meu tempo talvez fosse de limo e dura terra
jardim coberto de erva daninha e de pedra
transformado em colorido campo de flores

deixo de lado irrelevantes questionamentos
agarro meu quinhão de felicidade tardia 
converto mágoas antigas em jubilosa epifania
e agradeço à vida por estar me dando tanto

domingo, 1 de novembro de 2020

Algo de podre

 enquanto houver

uma criança

abandonada 

ou 

fugida de casa

devido a covardes maus tratos

perambulando pelas ruas

pedindo esmola 

disputando restos de comida nos lixos

com cães e com ratos

cheirando cola ou fumando crack

dormindo nos becos ao relento

enquanto houver 

uma criança

aviltada

explorada

pelo trabalho

pelo tráfico

pelo crime 

pelo sexo

sem acesso decente a

educação

saúde

alimentação

divertimento


então

se poderá parodiar  

as palavras do personagem

da peça imortal 

do vate genial 

e dizer que

há algo de podre no reino deste mundo

domingo, 25 de outubro de 2020

Realidade virtual

encontrar variadas formas de prodígios

é a atitude comum de quem olha a arte

esquecendo amiúde que também há arte

no comum das coisas livres de prodígios


por exemplo o sereno sentimento do ocaso

de mais um dia é um jeito simples de poesia

não obstante possa existir outrossim poesia

no amanhecer que antecede um novo ocaso

é próprio do humano a criação de símbolo

assim tem sido desde milhares de anos

e se tem percebido ao longo desses anos

que mais e mais aumenta o poder do símbolo


busca permanente com tendência de interminável

transporte do que é pelo aparente como o mesmo

mas realidade e faz-de-conta não podem ser o mesmo

embora a vontade de viver virtual seja interminável


todavia até o real mais palpável qual a água

que flui ligeira pelo leito formando este rio

vai modificando no transcorrer do tempo o rio

água agora outra do que foi há pouco água 


prova provada traz a idade em nosso rosto

quando confrontado com um claro espelho

por mais seja adornado pra enganar o espelho

a desintegração vai se enraizando nesse rosto


lembre-se da ilusão de vida que há no sonho

durante o sono amostra do que será a morte

apesar de que na verdadeira morte

seja pouco provável que haja sonho


domingo, 18 de outubro de 2020

Meditação sobre as máguas de um rio num planeta doente

canto um canto de pé quebrado sobre 
as máguas de um rio num planeta doente

o rio que passa pela minha aldeia
que não sei se no passado teve rio mais bonito 
o que sei é que 

o rio que passa pela minha aldeia
hoje é um esgotão a céu aberto
mas já foi muito bonito no passado
e isso não faz muito tempo não
muito bonito se bonito for ter
águas limpas ter peixes ter vida

o rio que passa pela minha aldeia 
nunca teve grandes navios
antigamente 
teve canoas que levaram 
rudes desbravadores ambiciosos
à procura de ouro pedras preciosas 
e seres humanos
para serem caçados e vendidos como escravos
não pensavam em construir um país
ambicionavam riquezas mais fáceis
não tinham noção de nação
contudo acabaram ajudando o início
da permanente construção tumultuada deste país

o rio que passa pela minha aldeia
hoje recebe bastante caca pra navegar
daqui pra lá e de lá pra cá
conseguem ainda navegar nele embarcações
transportando produtos agrícolas diversos 
mas isso acontece bem longe da minha aldeia

o rio que passa pela minha aldeia
muitos sabem qual é
sabem que ele desce da serra
e não vai para o mar 
como a maioria dos rios vai

o rio que passa pela minha aldeia 
é do contra

o rio que passa pela minha aldeia
não quer nem saber das praias do litoral 
ele é mesmo um caipirão inveterado

o rio que passa pela minha aldeia 
pertence a um montão de gente
por isso ele não é nada nada livre 
pois minha aldeia tem milhões de pessoas

o rio que passa pela minha aldeia 
entretanto é muito maltratado pelas pessoas
porque umas estão preocupadas 
com dinheiro e poder
para botar as mãos neles
estão preocupadas 
com a eleição ou 
a reeleição no próximo pleito
executivo ou legislativo
estão preocupadas 
depois de eleitas com as licitações 
fonte inesgotável de corrupção
outras a maioria 
estão preocupadas 
com a sobrevivência 
na dura realidade concreta
da cidade devoradora de gente
ou não estão preocupadas 
com merda nenhuma
e estão se lixando com 
o que acontece com

o rio que passa pela minha aldeia
que está cheio de lixo e de bosta

o rio que passa pela minha aldeia
que está negro de águas oleosas e pesadas 
águas espessas de infâmias 
que arrastam para o fundo pegajoso 
afogando a decência
águas abjetas e barrentas
que dão febre que dão morte 
águas do vício da ganância 
do egoísmo do comodismo 
da ignorância da perda de cidadania 
mas como perder o que não se tem
águas da irresponsabilidade criminosa contra a natureza
e depois de cometer o assassinato 
querem ressuscitar o morto
não vai adiantar coisa nenhuma
vai ficar tudo na mesma
ou pior vai piorar ainda mais
nossa história está aí pra provar
águas malditas que dão morte
corpos putrefatos envenenam estas águas 
águas onde boiam toneladas de lixo
margeadas por toneladas de entulho
testemunho de nossa ingente canalhice
cadê os peixes onde estão os anhembis
não são águas que se beba governador

o rio que passa pela minha aldeia 
quem está ao pé dele
não aguenta o fedor 
que brota de suas águas podrecentes

o rio que passa pela minha aldeia
quem pode com esse cheiro nauseante
desculpem se vomito diante 
de pessoas tão distintas
 
o rio que passa pela minha aldeia
por causa das suas máguas
passa pela minha aldeia feito cadáver

o rio que passa pela minha aldeia
eis a verdade 
fostes vós gente arrogante 
imprevidente
autodenominada de 
seres racionais superiores 
que me forçastes a ficar assim 
deste jeito tão precário

o rio que passa pela minha aldeia
sim a culpa é nossa se tuas águas estão podres
sim a culpa é nossa pai tietê

o rio que passa pela minha aldeia
não choro aqui meu desconsolo 
choro o desconsolo do rio de todos
multidão fervilhante de seres ávidos 
nesta terra escura 
criando morte em forma de água escura 
torpeza da enchente de gente em parte
castigada pelas enchentes de águas podres
vingança do rio pelo extermínio de suas várzeas 
indiferente ao aprofundamento de seu leito 
à eliminação de suas curvas

o rio que passa pela minha aldeia
nada de lamúrias pessoais prezados chefes
quero apenas mostrar a título de exemplo 
as fezes flores presentes em mais um rio 

o rio que passa pela minha aldeia
fezes flores que nenhum gemido poético 
infelizmente conseguirá aplacar 
porque sei muito bem que
meu verso não vence nada
meu verso desafina ao menor sopro 
dos ventos que sopram na marginal
meu verso enrouquece com as espumas 
úmidas fétidas que flutuam no rio seboso
meu verso é ouro falso tesouro que dorme 
no fundo baboso do rio de água vil
meu verso é só uma fraqueza infatigável
que não vale nenhuma lágrima inútil lágrima 
pela morte de um rio apenas só mais um rio
presente dos homens com certeza 
para o bem da natureza
águas profanadas rio despejo 
de mil imundícies do progresso 
nosso infecto anhambi 
presença de morte neste planeta doente

domingo, 11 de outubro de 2020

A grande dor das cousas que não passam

 meus erros que tanto têm sobejado

embora tal não fora meu desejo

pois de viver em paz quisera o ensejo

em minha perdição muito têm tramado


de tudo porém que tenho passado

a grande dor das cousas que não passam

livre de iradas mágoas que devassam 

por não querer em nada ser vingado


é meu claro e sincero sentimento

visto vazio é o peito cheio de vingança

aprendi vivendo esse ensinamento


o próprio horror verter em doce presente

exaltar mal fundadas esperanças

qual pollyanna e seu jogo do contente

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

A propósito

quero cuidar bem do meu amor
meu amor é muito importante
quero ser fiel ao meu amor
integralmente fiel
em ações e pensamentos
de corpo e alma
quero ser companheiro do meu amor
em todos os momentos
de alegria e de tristeza
quero ser atencioso com meu amor
meu amor merece toda a minha atenção
quero ser carinhoso com meu amor
quero ser gentil com meu amor
quero ser educado com meu amor
se eu me aborrecer com meu amor
quero conversar com meu amor e 
deixar tudo esclarecido para poder 
continuar a viver em paz com meu amor
quero respeitar o meu amor
seu espaço seu tempo seu jeito seu ser
ah meu amor como é bom o meu amor
quero continuar a amar muito o meu amor
sei meu amor me ensinou que se eu fizer assim
meu amor vai continuar a fazer igualzinho pra mim
e nossa vida será sempre este mar de rosas sem-fim
até o fim

domingo, 27 de setembro de 2020

Peste

que queres de mim afinal

vim expurgar o ambiente de tua presença

crueldade

já vais tarde

todavia terei ao menos uma morte digna   

tiveste a vida toda para cultivar a dignidade

domingo, 20 de setembro de 2020

Salve-se quem puder

para satisfazer nosso soberano o capital

é preciso incrementar mais o consumo

independente de todo e qualquer insumo


para que isso aconteça

várias ideias vêm à cabeça 

a principal talvez seja a reinvenção do novo


tão logo um novo é reinventado

imediatamente se torna velho

pra ser substituído por outro recém recriado


e em meio a tão angustiante tumulto

ninguém mais é poupado criança moço idoso

desde antes do nascimento até depois do túmulo


segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Demasiado

o humano faz

o ferro  

as máquinas o concreto as megacidades

a ferrugem corroe 

o ferro 

as máquinas o concreto a solidariedade


o humano inventa

o progresso

o dinheiro o poder a riqueza

a ganância corrompe

o progresso

o dinheiro o poder a honradez  


o humano sacramenta

o domínio

o jugo o cabresto

a submissão patrocina

o hábito de ser canhestro


a vida cria

a morte

a morte come

o humano

domingo, 6 de setembro de 2020

Natureza ambígua

 ser um ser humano 

tal qual a natureza

nos fez assim evoluir

embora possa pascer terra fértil 

não é nada fácil


ser um ser pensante

que em tudo 

procura esgravatar

embora possa merecer louvores

acarreta também dissabores


quanto mais entendemos

os mínimos mecanismos da máquina do mundo 

mais estendemos sobre ele nosso domínio   

e por gula luxúria preguiça ódio cobiça avareza vaidade 

menos respeitamos sua integridade

não importando o risco de causar nosso extermínio


quanto mais explicamos

o máximo de fenômenos do universo

com base em elaboradas teorias   

e uso de sofisticadas tecnologias

mais nos damos conta da nossa solidão

e atônitos permanecemos 

diante do fenômeno da nossa criação


segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Pavio curto

 você anda dizendo que

sou um indivíduo intolerante

que me irrito com facilidade

com comportamento bem mal-educado

que perco o controle à toa e que

sou uma pessoa explosiva

pra resumir tudo numa frase

você tem afirmado por aí que 

meu pavio é muito curto


sem desmerecer seu julgamento

permita que apresente meu argumento

pra que você possa entender então

um pouco melhor a situação


faz mais de 70 que estou na estrada

nesse tempo todo de caminhada

como costuma acontecer com muita gente

em inúmeras ocasiões fui coagido 

a engolir toneladas de sapos

a sofrer injustos impropérios 

a ouvir calado cobras e lagartos 

proferidos  sem razão contra mim


evidentemente

durante essa já longa jornada

derrapei em algumas curvas

provocando sobressaltos

mas um fato deve ser reconhecido

em nenhuma dessas ocasiões 

alguém saiu gravemente ferido

se tanto alguns poucos arranhões


não sei quanto tempo ainda 

me resta permanecer na pista

de qualquer forma seja quanto for

uma coisa precisa ficar bem clara

nesta altura do campeonato

acredito que a rigor de fato

posso ousar não tolerar mais 

qualquer atitude insolente 

em relação a minha pessoa e

em pleno gozo de meus direitos

por apresentar razoável longevidade

cidadão na mal dita melhor idade

me manifestar de maneira

intolerante

irritadiça

e até mesmo

descontrolada

explosiva

caso alguma dessas merdas injuriosas 

me sejam endereçadas


vai ver que é por isso que

ultimamente 

por usar amiúde de certa malcriadeza

tenho causado certo tipo de estranheza

quem sabe


mas pode acreditar cara amiga minha paciência 

na verdade é que sempre foi bem grande

a rigor imensa

poderia dizer sem receio de errar

meu pavio não foi feito curto não

meu pavio foi feito mais comprido 

do que a restinga de marambaia

e tem mais

meu saco foi feito maior do que o pão de açúcar

e com um pouco de exagero talvez 

se pudesse imaginar que daria até 

pra eu ficar de braços abertos ao lado dele 

lá no alto do morro do corcovado

domingo, 23 de agosto de 2020

Abacaxis às claras

muita coisa essencial não se compreende

quem sabe porque tenham sido feitas 

para que não sejam compreendidas

não é a ausência de palavras que faz

deixar de existir o que está existindo

as palavras gostam de vir atrás das coisas

tudo que se imaginasse um dia existisse

de alguma forma preexistia a imitação

é a mola mestra que impulsiona a vida

questão fundamental é saber como imitar 

criativamente pois quando a imitação é 

inovadora passa a ser agregadora    

por mais condição que se tenha só 

se pode criar a partir do que existe

acrescentar ao existente algo mais 

a adição imaterial de si mesmo

a ousadia de transformar o rito

eleva uma pessoa à individualidade

mas por pôr em risco o edifício todo mantido 

com o trabalho servil de tantos é combatida

por que uma pessoa teria como ideal 

então a urgência de ser individual

só alguns sentem a danação de procurar 

inventar os próprios passos um a um 

à medida que avançam constituindo o caminho

a maioria acha que domina o processo   

se escondendo em pernicioso isolamento 

confundido com mentirosa liberdade

o desejo de todos é estar na festa a todo

custo nem que seja só por espalhafato e um

modo de se agarrar a isso é ser alguma coisa

que os outros vejam como sendo eles próprios

para não por em perigo 

a cegueira generalizada 

patrocinada pela homogeneização 

e pasteurização global

por que arrogar-se o direito de revolta

e vir depor gaguejando

cada um é testemunha de si próprio 

não adianta esconder a cara

por que não saber exprimir 

que afinal tudo está certo 

miraculosamente certo 

e o mundo é maravilhoso

por que insistir em entender 

que a grande ascensão não passa de 

reles decadência se só quem se metamorfoseou 

em si mesmo pode entender

por que ter escrúpulos 

por que não aproveitar se a vida é tão curta

sentir o delicioso gosto ignóbil 

que um rato sente ao andar pelos esgotos

em última análise tocar para frente

levar adiante protegidos pela mesquinhez

reconhecer que há um inviolável 

pacto de silêncio em vigor

que todo mundo sabe a verdade 

e o jogo é assim mesmo

agir como se não soubesse nada 

essa é a regra básica do jogo

encetar a dura luta muda 

contra a inapelável natureza humana

por que lutar cada um tem o direito de ser o que é 

e dormir tranquilo ou não

não é possível sentir a fome alheia 

com o próprio estômago

embora por ter engolido 

bem mais do que se pode digerir

se possa estar nauseado de ser gente

estar enfastiado querer refúgio e paz

para encontrar paz ter de esquecer os outros

para encontrar refúgio não ter nada a ver com ninguém

depois de tanto querer 

não saber mais o que se quer

só sentir-se ridículo por ter tido a esperança de que

uma coisa que não tem salvação pudesse ser salva

e diante do vexame 

se retirar na ponta dos pés

procurando não fazer barulho

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Palavras e coisas

 manoel de barros poeta maior 

entendedor de tudo sobre o nada

arauto de sábias ignorãnças  

das grandezas do ínfimo 

num de seus inspirados poemas rupestres  

diz sofrer um encantamento poético

ao olhar a garça-ave e a palavra garça

embalado que fica pela comunhão

do corpo níveo da ave 

em seu voo elegante e livre 

sobre as ainda lindezas do pantanal 

com o corpo sônico da palavra

em sua intrínseca beleza letral


eu eduardo poetastro menor 

bisbilhoteiro de nada se tanto 

neste poemículo citadino me atrevo a pisar  

ao avesso as pegadas poéticas de mestre manoel 

pra dizer que sofro um desencanto profundo

ao ver o estado da pomba-ave nesta cidade

e ler a palavra pomba no dicionário

perturbado que fico pela dissonância

entre o corpo físico imundo da ave 

e o corpo sônico harmônico da palavra


ave símbolo da paz e da pureza

na metrópole moderna se metamorfoseou em rato alado

e se imiscui sem cerimônia por todos os lados

domina o espaço de outros pássaros

caminha atrevidamente pelas calçadas e praças

ciscando lixo em busca frenética por alimento 

aboleta-se em árvores postes monumentos telhados 

defecando procriando espalhando piolhos fungos bactérias

dando com sua presença predatória 

à maioria das cidades do mundo 

valiosa cota de contribuição para a degradação 

da qualidade de vida e do meio ambiente urbano

degradação que vem na cola  

ao que se convencionou chamar de progresso 

domingo, 9 de agosto de 2020

Loucura líquida

o teto sem telhas

o chão batido 

confrontam 

a guerra desigual 

da furiosa correnteza

com as paredes sem reboco 


inseto rastejante sem asas 

preso à cadeia volante

teia da ocasião

acato o acidente 

ajoelhado frente ao desastre

bendigo apaziguado a vida

aceito passivo o despejo


mísero resíduo

no espúrio exílio

aguardo paciente

o recuo das águas


minha força 

há de elevar-se

a necessidade 

é mãe da resistência

em outros lugares 

ocorrem 

iguais ou piores combates

domingo, 2 de agosto de 2020

Otimista

firme e forte feito uma gelatina
versejo estes versos pra latrina

no influxo da abundosa poetagem 
dos comunicativos tempos de hoje 

sem nenhuma fixa ideia
aliás sem qualquer ideia 

busco palavras sem nexo 
deixando fluir reflexos

ciente e certo da mercantilista 
banalização da arte capitalista

indiferente procuro ausente 
registrar o oco da mente

esperançoso que o futuro 
será pior que este monturo

aliviado por saber que nada 
sempre dura graças à indesejada

domingo, 26 de julho de 2020

Meu pênis já foi um clitóris

olho meu velho pênis
cansado de sua longa caminhada
repousando sossegado
entre minhas pernas alquebradas
fiel companheiro de tantas jornadas
algumas sexuais
extravagantes às vezes nem tanto as restantes 
a maioria a grande maioria
de natureza puramente urinária

olho meu pênis velho e
penso em acordá-lo para contar
um pouco do que aprendi há pouco
correndo os olhos sem muita atenção
como sói acontecer com tudo
que estudamos ultimamente
por uma dessas páginas da internete
que nos informa quase nada
sobre praticamente tudo

estudos recentes apontam que
no início do desenvolvimento
de todo embrião dentro
do útero materno humano
influenciado pelos hormônios da mãe
o sexo do novo ser em gestação sempre
é direcionado para a forma feminina
desenvolve-se um prenúncio de vagina
com os grandes lábios e mais acima
os pequenos lábios que em seu ápice
abrigam o clitóris em início de formação

se o embrião for contemplado
com o par xx de cromossomos sexuais
aquele prenúncio vaginal continua
seu desenvolvimento normal se transformando
no órgão sexual feminino a vagina

se porém a ele for destinado
para fazer par com o cromossomo x
o cromossomo y
duas glândulas de nome gônadas
vulgarmente denominadas de bolas do saco
são formadas
essas glândulas produzem o hormônio masculino
chamado de testosterona que
faz a situação mudar completamente de figura
os grandes lábios se fundem envolvendo as gônadas
para formar o saco escrotal e
o clitóris se desenvolve mais e mais
dando origem ao pênis
o órgão sexual masculino

a dar-se crédito nessas considerações que
segundo afirmam os especialistas
são baseadas em observações
de cunho científico fidedigno
podemos então concluir
todo pênis que se preze foi clitóris um dia

não sei se acordo o meu pra lhe contar
essa história deveras tão interessante
melhor talvez fosse não perturbá-lo e
deixar o velho continuar repousando sossegado
francamente
eu não saberia avaliar como
meu provecto companheiro
que anda meio ranzinza e rabugento ultimamente
reagiria diante dos fatos revelados

domingo, 19 de julho de 2020

Circadiano

a terra
sangra
sob o arado civilizatório
se contorcendo em dores
nas garras de predadores

outrossim
sementes humanadas
brotam do nada
como se fossem capim
gerando zilhões de bocas
ávidas por consumismo
independente da renda

todavia
para não ser um bandalho
trabalhar é preciso
e para conquistar o trabalho
ralar é preciso
a menos que alguém
ralou ou rale para ti

antigamente antes
dos tempos idos
nome pesava bastante
na balança da herança
nos tempos corridos
da concretude virtual
o que conta
é dinheiro de plástico
no faz de conta da conta

por seu turno
o fogo amigo de florestas e matas
colabora valiosamente
para o desenvolvimento
do meio ambiente

enquanto
o sopro do vento
dissipa
a fumaça aliada
do efeito estufante

e a água da chuva
lava
a sujeira
das obras precárias
nas comunidades ignoradas
pela grana destinada
a bolsos perdulários

diligente
 a morte
cava
valas
abrigo da vida eterna

entrementes
a noite
fecunda
o clarão do sol
destinado
à escuridão
na nova noite

domingo, 12 de julho de 2020

Quiproquó

tomei um banho gelado
lavei bem as partes pudendas
com sabonete glicerinado
mas não adiantou nada
continuo impregnado
desta pasmosa pobreza de pensamentos estéreis
fardo pesado em minhas entranhas
escuras profundezas do passado
que me causam um grande cansaço
resultante de inquietante amargura
por ter sido alvo de escárnio grotesco
chego quase a sentir asco
tecido por malignas mentes dementes
ao menos esse é meu ponto de vista
bem merecido segundo meus inimigos
todavia
enquanto o futuro vem suponho
trazendo seus flutuantes enigmas
com poucas rosas muitos espinhos
eu ser mesquinho que por mais insista
não consigo cultivar um rosto amigo
nem apreender a beleza do riso espontâneo
desfaço do olhar desprezo pelo semelhante
e tento superar a mim mesmo
nem que fosse num derradeiro gesto
e almejo a condição sublime do alcance 
da generosidade das grandes almas
voltando as costas para meu egoísmo
mas essa réstia de vontade de bondade
não dura mais que um fiapo de segundo
recordo os tempos para trás
especulo os tempos para frente
um calafrio percorre minha espinha
e bem depressa deixo na saudade
minha intenção de bons propósitos
o máximo de boa aventurança
que sou capaz de imaginar atingir 
com o uso de máscaras melhores
é viver em plena indiferença

domingo, 5 de julho de 2020

Pedra de toque

para se medir o grau de insanidade de uma pessoa
há um método infalível companheiro numa boa
de guru indiano com quem fui me aconselhar
pouco a pouco porém acabei por o abandonar
afinal tudo aquilo era mesmo muito complicado
então decidi me desmedir de um modo descarado
e cada dia que passa passo mais dos limites
sem dúvida sem conseguir saciar meus apetites
sigo assim meu caminho deste jeito horripilante
que apesar de tudo me faz continuar a ir adiante
embora concorde seja esta conduta inaceitável
nela sou assaz ditoso minha vida é agradável
e dela não pretendo assumir posição insurgente

certa vez ia eu por um rio que cria navegável
ali deslizavam cisnes negros de maneira amigável
quando a barcaça que me transportava começou
a balançar devido a ondas enormes e naufragou
soube depois ter sido obra de terríveis vendavais
saídos do fundo da água e extravagantes demais
quem me contou foram uns peixes de olhar estranho
tinham os olhos arregalados bigode cabelo castanho
estampavam nas faces rosadas risos sardônicos
e agitavam os carnudos rabos imaginei irônicos

dali fui assistir apesar de meu feitio antissocial
a um imprevisto entretanto bem-vindo funeral
em que foram proferidos intermináveis discursos
à beira da tumba desfiando todo o maravilhoso percurso
da vida exemplar do morto sem nenhuma negligência
de suas excelsas qualidades durante tardia existência
coroada com a demora em ir praquele buraco escuro
até as coroas começavam a murchar meu corpo a ficar duro
devido ao frio reinante e no ar já se sentiam putrefatos odores
um pouco mais o defunto ressuscitaria causando dissabores
fato que os oradores não percebiam provocando mal-estar geral

depois do enterro enfadonho o que me ocorreu foi quase um sonho
nesta vida tão dura nunca pensei viver ventura de tal envergadura
se é que assim posso ter a ousadia de chamar
melhor do que comer cereja direto no pomar
para a qual abri meio por inteiro meu coração combalido
fazendo o raio luminoso no cristal em sete cores fendido
fenômeno físico há muito conhecido naturalmente
me enamorar nesta idade não passava pela mente
ficar aqui cheio de cuidados com minha aparência
aos beijos e abraços pelas esquinas uma indecência

não tive força pra controlar e deixei desencadear
aqueles instintos carnais que são bons demais
reprimidos desde a mais tenra idade por vaidade
como se assim pudéssemos coibir os nossos erros
esforço inútil nem a fogo nem a ferro nem aos berros
eles somem e não me venham torcendo o nariz
que eu cá tenho uma tromba que não é de petiz
pra chegar até aqui fiz incontáveis malabarismos
tive de desenvolver destreza com os algarismos
 vi o zé erguer para em seguida arrefecer ora vamos
vocês sabem o que digo vocês também são do ramo

não era uma mulher qualquer era uma mulher
com agá maiúsculo digna das maiores homenagens
por ela desci do pedestal despi todas as roupagens
abandonei meu barco ao sabor do vento
nem percebi como passava rápido o tempo
quando dei por mim tinha me convertido

num perdido completo sem chance de remédio
e feliz imensamente feliz vacinado contra o tédio
esquecido daquele período amargamente vivido
do qual para ser franco bem pouco me orgulho
pra falar a verdade dele o que sinto é engulho
que procurei esquecer e passei a viver benquerido

domingo, 28 de junho de 2020

Parole parole parole

palavras mal ditas
seu excessivo sal estupora a pressão do sangue
são palavras condenadas
fazem a gente ficar exangue

palavras bem ditas
açucaradas detonam a glicemia
são palavras perigosas
precisam ter absorção cuidadosa   

palavras não ditas
têm o sabor da neutralidade do nada
são palavras salvas pelo silêncio
merecem salva de palmas

domingo, 21 de junho de 2020

Três graus kelvin

superei a fase de me achar invulnerável
conheci com a idade o poder do destino
ciente do livre-arbítrio respeito o acaso
passado é aprendizado porém irreversível

vendo meu rosto estampado no espelho
constato obviedade banal como é fugaz
a vida de uma pessoa mesmo se gravados
forem seus feitos em qualquer epitáfio

o tempo é invenção oriunda do movimento
envolvidos por ele preferimos amealhar ouro
em lugar de fraternidade na frieza do universo

graças à luz é que projetamos nossa sombra
independente de qual tenha sido nossa jornada
ao final todos nos transformamos em cadáver

domingo, 14 de junho de 2020

O inimigo

também eu já tive juventude
passada feito um vendaval
hoje se acaso olho no espelho
ocorre só em momento raro
constato de fato o estrago feito
tanto nem trovão seria capaz
presto só sobra desse jeito
daquele fruto passado bagaço
das horas finadas outras ainda abortarão
de três em três meses muda a estação
prosseguem os atos escusos as obscuras
abordagens sobre as quais joguemos pá
de cal cordiais inundadas de más notícias
as mentes mentem quando dizem sem-terra
invadem cemitério reivindicando sepulturas
minimamente decentes em lugar de crateras
no asfalto da megacidade sempre nasce flor
de plástico made in china indistinta ela anseia
tomar banho de sol estendida sossegada na areia
se não de praia da baixada pelo menos no chão
do planalto central para poder manter o vigor
pois até ela precisa de algum tipo de alimento
interessante a gente não perceber a agonia
diligentemente cultivada há tanto tempo
quase dá pra desconfiar da presença de traidor
sutilmente infiltrado por nosso melhor inimigo
nós mesmos responsáveis diretos pela anemia
nutrida de fraternidade da santa humanidade

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Pandemônio

os cadáveres
em sacos plásticos
empilhados em câmaras frigoríficas
instaladas a título de necrotério suplementar
especializado naquele tipo de pandemônio
do lado de fora do edifício do nosocômio
pacientes aguardavam o sepultamento coletivo
nas valas recém-abertas pelas retroescavadeiras
no terreno improvisado em cemitério
na periferia pobre da megametrópole
enquanto sob o manto protetor do poder
que lhe foi investido democraticamente
pelo povo pelo voto virtual
depositado inconsequentemente
em uma urna eletrônica
a maior parte a parte suja familiar 
limpava os cofres do erário 
se livrando das dívidas
com membros e sequazes tendo
nas almas obscuras ódio
sangue nas mãos opressoras
gordos de corpo vazios de mentes
do que mais careciam era vontade de equidade
o que de melhor produziam era disfarçada corrupção 
cujo indisfarçável fedor empestava o meio ambiente
a tal ponto que o inferno
rindo a bandeiras despregadas
defecava sobre a cabeça da esperança
de dias menos piores que cabisbaixa
aceitava aquela imundice sem pestanejo
no palácio crepuscular como coisa oficial
a bandeira no meio do pau
indicava nojo normal
por cinquenta mil dias
homenagem aos vivos
no novo pandemônio

domingo, 31 de maio de 2020

Nossos nós

estes nós
que o tempo aflito
não desata
engastam nas costas
sem prazo
este arreio
que cala os ódios no peito

pensos contratos
enganos tantos
armadilhas dispostas
em cada palmo
da vasteza do mundo

perdidos
buscamos guarida
encontramos amiúde
morada sem beiral
paredes sem prumo
abrigo assombrado
para aí ficarmos
na espera do nada

domingo, 24 de maio de 2020

Otimista de menos

todo esse horror ao meu redor
me dá calafrios
que percorrem a espinha
da nuca ao rabo
porejando suor no rego dos glúteos
olho para trás
morada das sombras do passado
para mim tempo de amarguras
não sinto saudade
olho para frente
onde dizem vive a esperança de tempos melhores
procuro me imbuir de bons propósitos
porém sou arrastado pela inquietude
vejo o mar de lodo se agigantando adiante
não consigo ter a ingenuidade de enxergar diferente
talvez devesse usar máscaras melhores
deixo de lado por instantes o escárnio
e faço um esforço para minhas entranhas estéreis
ruminarem toda essa pasmosa pobreza
todavia o fardo é demasiado pesado
cai sobre mim um grande cansaço
meu consolo é que um dia tudo isso perece

domingo, 17 de maio de 2020

Nós outros

no restaurante por quilo
frente a frente à mesa
eu e você tranquilos
comendo a sobremesa
remexemos
em nossos celulares
com ares 
aparentemente
ausentes

se alguém olhasse
pra nós por instantes
eventualmente
talvez pensasse
que somos um casal normal
indiferente um para o outro

estaria porém pensando mal
pois cada um entretanto
estaria telefonando pro outro
para perguntar quem afinal
iria pagar aquela conta

domingo, 10 de maio de 2020

Milongas

a vida é feita de movimento
dança dos corpos no espaço
que se constitui dos corpos
e do vazio existente entre eles

o movimento possibilitou que o
homem inventasse a ideia de tempo
tempo que semelhante ao vento
passa levando o pó da estrada

eu que penso ainda estar vivo
sendo um corpo feito de pó vou
levado pelo irreversível tempo
com meus acertos e contratempos

domingo, 3 de maio de 2020

Cercilho

a linha ascendente do gráfico
acompanha a montanha
de mortos insepultos
alguém me chama do escuro do poço
respondo o melhor que posso
voz rouca em meio à tosse oca
espera mais um pouco
logo mais também estou chegando
o sol é fraco para arder a bruxa que anda solta
e caminha sobre as águas de um mar cinzento
açodando manadas indóceis
à procura de vida vazia
sejam quais forem as consequências
enquanto mentes privilegiadas 
emanam halos de gasogênio
que exsudam conflitantes prognósticos agônicos
não tão piores quanto os que amiúde açodam
as costas de quem as tem largas
propícias ao açoite
de dia e de noite
o onipresente invocado evanesce
a tal ponto que respirar se torna implausível
o corpo frio é testemunha indefectível
de que a linfa humana apodrece

domingo, 26 de abril de 2020

O estranho

a maioria de nós somos pessoas desamigas
podemos até falar a mesma língua mas não
nos entendemos via de regra nossa relação é
meramente formal para relatar nossos triunfos
alcançados e o quanto merecemos conquistar
afortunados temos casa raramente dita um lar
com nosso próprio umbigo costumamos sonhar
os semelhantes tratamos como se estrangeiros
a certa distância com educação em caso ideal
eu mesmo sou um bom exemplo dessa patifaria
eu que se tanto vou deixar coisa pior por biografia

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Mudança de forma

desde então
não quis mais nada
fui apenas cinza fresca
de início
misturada à terra antiga
desde tempos
coberta de mato pobre talvez urtiga
de vez em quando
cheirando o molhado vindo
a reboque de passageira chuva
num fim de tarde
de um verão sem data
outras vezes
de madrugada
baixo um céu de luz escassa
arrepiada
por brisa quase nervosa
de rumo incerto

domingo, 12 de abril de 2020

O bicho pega e come

o anoitecer vai se achegando suavemente no apartamento
pela porta da varanda  espalhando penumbra no ambiente
logo mais tarde graves acontecimentos estarão presentes
nos pesadelos invasores de cada dormente pensamento
íncubos e súcubos vindos de vários cantos do universo
em prosa e verso apontarão o perigo antigo que prestes
miserável estou para cair se é que na verdade já não cai
velhas histórias repetidas não é de hoje desde priscas
eras por incrível que possa parecer antes até do tempo
que havia reis rainhas e corriola com baita mordomia
guerras claro havia entretanto um dia vão acabar com
o fim do mundo era o destino de variados comércios
ilegais há muito viabilizados por terra por mar e ar
com a falta generalizada de pudor o fedor se espalha
por todos os recantos do país do carnaval onde floresce
sem precisar de adubo podridão por favor apague a luz
o último que sair para escalar montes desbravar vales
ao retornar corre o risco de dar de cara nos muros que
servem pra isolar a parte nobre da periferia onde adormece
dentro de um dos milhares de barracos da favela maristela
doméstica desempregada avança na madrugada lentamente
no terreiro de chão batido culminando o ritual o pai de
santo seminu tira a pistola pra fora e pum outra bala
perdida dorme alojada pra sempre na cabeça de criança
outra nem tão inocente acorda no além nova lambança
da vida a última fim dos sonhos de se tornar famoso
traficante favas contadas pra esticar as pernas
em cima de uma cama dura de aço inoxidável
em concorrido recinto público onde as palmas
por mais fortes sejam não desperta do sono
profundo a pessoa aí enviada pra ver se morreu
de fato neste caso de quê ou se não teve pequeno
engano outra vez me pega pela mão por gentileza
e me leva pra tua casa
me sinto deveras cansado
quero cair numa cama macia
caso ainda tenhas disponibilidade
podemos tornar ao assunto de início
abortado ontem ao deitar brincar
de papai e mamãe embora de dia
durante a semana não tenho hábito sabes
bem como é essa história acredito
se recusares tudo bem não te tiro a razão
sei perfeitamente penso eu acho que verdadeira
é tua motivação de acordo com que os filósofos
pré-pitagóricos ensinam quem sabe

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Mesquinhez infinda

dentro do infinito
um espaço restrito
nosso universo quase sem fim
do big bang até um num sei quando
todo ele formado por particulares
partículas em movimento eterno
particularizado pelo nome de tempo
num campo de energia
aparentemente parecendo nada
fonte e sumidouro das referidas partículas

muito menos que um pum de pulga anã
perdido nessa incomensurável imensidão
fadado quiçá há mais completa universal solidão
gravita um montículo de terra
cercado por água e por ar
denominado de planeta terra

é aí ou melhor aqui que eu demoro
gravitando solidariamente com ela
repleto de inúteis expectativas
num corre-corre incessante
num lufa-lufa extenuante
boçalizado por banalidades
acompanhado de ansiedade
com meus graves problemas
os mais recentes e os antigos
pois olhando pro meu umbigo
é assim que eu os considero

quem discordar desta merda
que castigue a primeira pedra
quanto a mim chega de lero-lero
por ora ficar em casa é o que quero

quando todo esse pandemônio acalmar
caso consiga do maldito bicho escapar
retomarei minha rotina pleno de patifarias
como sempre metido em mesquinharias

domingo, 29 de março de 2020

Mau cheiro da memória

erro e acerto são conceitos
em que me aterro com desacerto
procurando entender a lógica
embutida nestes preceitos

posso aceitar a ideia precária
pra me ajudar na conduta diária
que erro se prejudico a mim ou a meu
semelhante sendo acerto o seu contrário

afirma o gasto clichê que
errar é próprio do humano
perdoar é um ato supimpa
vindo de cima dito divino

vai daí que pra fazer jus à raça
devo prejudicar a mim e a todos
a todo instante fonte de desgraça
me achando esperto os outros tolos

cabe aqui creio uma consideração
visando amenizar da vida a tensão
sem banalizar a conduta pobre
muito menos aquela que é nobre

apesar de todas minhas cagadas
vou tocar pra frente na estrada
evitando chafurdar no lodaçal
de tudo quanto causo de mal

visto que uma tal atitude
como sói acontecer amiúde
em nada contribuiria
pro caminho da alegria

erros que tenho cometido
moderem meu ser atrevido
para que possa ser amanhã
uma pessoa menos malsã

e toda vez que sentir feder
o mau cheiro da memória
vou relevar sem esquecer
que é parte da minha história

domingo, 22 de março de 2020

Vaidade tudo vaidade

não há sabão bastante pra lavar toda esta imensa sujeira
que entretém o noticiário diário sobre esta fina gentalha
que translucidamente não larga do poder nem a porrada

isso não é coisa passageira é inerente à humana natureza
ser amiga fervorosa até os ossos da vaidade e da riqueza
porque aquilo que conta é a grana pois com ela tudo tá bacana
quanto ao povão na precisão que tome no redondinho quietinho
isso ninguém há de contestar nem criança em idade pré-escolar
se alguém pretender fazê-lo vai parecer que está fora do ar

por exemplo quando fico aqui dando panca de lúcido
jogando fora palavras inúteis pela brisa mal arrastadas
bocó acho que sei o que se passa com a desgraça alheia
escondido em falsa compaixão que o coração aligeira
nítido no duro tudo aceito e no conforto me esgueiro

domingo, 15 de março de 2020

Mera quimera

desocupado devagar divago
olho ao redor com visão cansada
e o que meu olhar enxerga
não consegue me dar alegria

na frente a sinistra concreta muralha
formada por tantos outros edifícios iguais
se exibe pela janela do apartamento apertado
disputando cada palmo de solo ou mais

no alto a nesga de céu empalidecido
pela fumaça que paira permanente
sobre nossas cabeças duras
cancerando nossos precários pulmões

embaixo a massa viscosa de veículos
cercada pelo formigueiro humano
entulha as ruas cobertas de detritos todos
tentando encontrar espaço para locomoção 

e penso talvez este estado de espírito pessimista 
deva ser próprio da velhice
tendo alcançado provecta idade
tendo a encarar tudo com rabugice

todavia como acreditar que a ampliação do
conhecimento alcançado em todos os cantos
escarafunchados pela espécie humana é um bem
se ele nos proporciona em grosso esse tipo de vida

e me vem o desejo de gritar em alto brado
assim não dá mais a terra chora suas perdas
é preciso urgente acabar com tal loucura
estamos todos indo pro fundo do abismo

porém me calo não digo nada bobagem
pretender mudar o mundo com vazias
palavras quem me dera eu ridículo vendo a
vida escoar mal dando conta das minhas dores

domingo, 8 de março de 2020

Matadouro

um boi a mais nesta longa estrada
sigo dentre bilhões de outros bois
sabendo aonde vai dar a estrada
melhor não ligar se ajeita depois

por ela já passaram tantas rodas
muito antes de meus cabelos brancos
de agora e continuarão a passar novas rodas
seria bom se o mundo terminasse em barranco

entrementes um dia é sempre diferente
do outro aquilo que nossos avós faziam
antigamente por certo era bem diferente
de como se vive hoje só o fim é igual diriam

domingo, 1 de março de 2020

Manhã sem ar

prisioneiro nesta carcomida carcaça de mim
dou uma parada no caminho aqui pelo meio
do lixo não reciclável recolho bola de cristal
com a óbvia intenção de saber qual meu fim

encerrado neste nojento curral de chão batido
limitado espaço a gado a espera de ser abatido
plausivelmente dentre o grupo dos não inocentes
tenho como companheiras inseparáveis moscas

não adianta mandar sacerdote trazendo extrema-unção
de antemão adianto não vou me fingir de arrependido
justamente eu que fui cem por cento do tempo enganado
como mais um ilustre viageiro bocó em busca do eldorado

em vista disso a partir de agora vou parar de andar de carro
andarei de bicicleta pelo corredor de ônibus cuspindo catarro

me imiscuo na multidão passo por outro vilão sem dificuldade
porque deveras sou arrogante me faço de completo ignorante
das desditas sofridas por mim e todos os meus semelhantes
deste nosso bando de humilhados espalhados pela cidade

pena não aceitar como sugestão de pena punhal
cravado no peito muito menos pedrada na cara
dou preferência a revólver com bala encontrada
tenazes nos bagos não por favor não acho legal

ter um fim decente como merecem alimárias quaisquer
tais pombas piolhentas pululando a metrópole é a meta
ou também por exemplo os restos de melancias na feira
enfim como todo vivente dependente de oxigênio quer

considero que seja justo talvez ter ao menos esse direito
razão pela qual o digo com transparência quase perfeita

enquanto isso permaneço nesta casa assombrada
embora fique num beco sem saída
aqui o terror não tem entrada
apenas de vez em quando o bem pelo mal é superado

se um ou outro transeunte passante diante da porta
exprimisse olhares incompreensivos em cara torta
devido à ausência de luz do crepúsculo ao amanhecer
se visse o preço do quilovate hora iria compreender

já estou acostumado sequer me sentiria surpreendido
caso numa noite dessas uma daquelas bem escura
a morte viesse à minha procura
e ao nascer do sol fosse encontrado no chão estendido

nem alegre nem triste sem piedade ou dó
rijo e só

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Lucubração cosmogônica

fico feliz em pensar o universo
lugar onde viajo como passageiro
em pequeno planeta nominado terra

um dia desses qualquer minha passagem
perderá a validade terei de me escafeder
abandonar a posição privilegiada e me
transformar em mísera massa misturada
à terra da terra de volta de onde partiu
sabe-se lá quando dando tantas e boas
voltas suaves e outras bastante tortuosas

creio não haver precisão de pensar
uma força formadora e mantenedora
dele como um todo organizado
regido por ente supremo sempre
em tudo presente divino regente
das esferas em magnífica harmonia
posso imaginar seja ele um contínuo
descontínuo contido em si mesmo sem
fronteira com o dentro contendo o fora

aceito numa boa que ele seja formado por
matéria e energia em permanente interação
num estado desordenadamente organizado
digamos uma bagunça em busca de ordem
atingida em alguns pontos à custa de sacrifícios
ou uma arrumação querendo sempre virar zona
pois é o caos o estado desejado de todas as coisas

se teve um início é razoável que tenha um término
para poder quiçá recomeçar outra vez por que não
do mesmo jeito ou de outro modo qualquer não sei
eterna dualidade corpúsculo onda no espaço infinito
em que o tempo nasce como conceito consequente
do movimento percebido como um ato consciente

amanhã quem sabe passe a considerar tais
ideias de maneira diversa dependendo do
que a ciência venha a me ensinar
ou seja levado a encarar a situação
sob o prisma de outra mística mais
tradicional com deuses anjos espíritos
ou graças a alguma nova doença mental
atinja uma condição melhor que a atual
e surte definitivamente de vez talvez

por ora penso essas coisas assim
e me dou por satisfeito com isso
fico feliz mas fico ainda mais feliz
quando não penso em nada disso
e fico só em casa vendo tevê

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Logorreia

enquanto aumenta vindo de lá o vozerio
os sinos deixam de ser escutados
por alguém que se interesse em descobrir
por que o ministro corrupto foi condecorado
talvez seja o motivo de tanta algazarra
porém no frigir dos ovos vai-se viver
tanto quanto possível isolado no silêncio

despenca de maduro o fruto do pé de pica
pras moças casadoiras desmaiar de vontade
só as de douradas sandálias serão escolhidas
de braçadas largas nada morre na areia da praia
graças à sucessão de eventos funestos seu sucesso
acabou espantando aves de arribação estacionadas
nas árvores da praça da pequena cidade na calada
da noite fria o lobisomem uivava de dor na coluna
o mordomo do ministro corrupto sussurrou ao ouvido
da faxineira ele não é meu dono e se quedou na copa
num canto ouvindo a música do silêncio

mudo
fora nas ruas da cidade os automóveis
pensam os pedestres como seres invisíveis
multidões de múltiplas etnias se oferecendo
cheias de ademanes ao atropelamento diário
particularmente no hemisfério sul do cérebro
da mosca se ouvia zumbir as asas tamanho o silêncio

das tagarelas foram fechadas as respectivas tramelas
motivo pelo qual se acredita afogaram-se de balde
como agem cisnes negros em noite sem lua
mesmo que não haja nuvens no céu
trens chegam e partem daquela importante estação
de bocas fechadas não sai mosquito da dengue
quase sempre atrasados sem apito nem de outro tipo
com todas as rodas mal lubrificadas soem ranger
dentes no dia do juízo afinal inútil melhor silêncio

geral e arquibancada vazias fecham-se as cortinas
taciturnas saem as torcidas do espetáculo
o que explica por que espero me porei a bailar
louco neste infinito salão feito
uma estátua em absoluto silêncio

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Letra morta

se diz por aí que a morte
representa uma passagem
desta para outra vida
acho isso uma bobagem

digo aqui que a morte
pra quem ainda duvida
é mesmo o fim da picada
a partir dali é o nada

quem fez até ali fez
quem não fez perdeu a vez
não adianta ficar agoniado

se acaso eu estiver errado
prometo cumprir um acordo
venho avisar depois de morto

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Happy birthday

interessante
a gente fazer anos
durante muitos e muitos anos
preocupante
entrementes
durante todos esses muitos anos
o que os anos fazem com a gente

domingo, 26 de janeiro de 2020

Velho atleta

me sinto duro feito gelatina
nesta manhã nebulosa que se descortina
atrás da cortina da janela do meu quarto

a dor nos quartos continua ainda
bem que eu me avisei que ia doer
eu devia ter andado jamais correr

essa mania de velho querer ser atleta
não tem simancol faz papel de pateta
já passou a hora de deixar cair a peteca

fica insistindo nesta história de exercício
ginástica pra manter musculatura elástica 
é só olhar no espelho pra ver o estrupício

que restou depois de passado tanto tempo
desde o longínquo dia do meu nascimento
cai na real meu não tem o menor cabimento

põe logo o fraldão cala o bico e se conforma
quer provar que é forte até a hora da morte
no velório vão dizer morreu em plena forma

domingo, 19 de janeiro de 2020

Inteligência irracional

ergui-me em grande júbilo
movido pela crença que fora
finalmente
alcançada a redenção
contra tudo que é mal
contudo
efêmera foi a sensação de felicidade
afinal
ser humano é ser devoto ao irracional
com prerrogativa autoimputada
de plenitude de racionalidade
a macro-história do mundo
a micro-história de cada indivíduo
vivente deste mundo de deus ou ateu
escancaram em nossas caras 
a lição que não sabemos aprender
─ evitar o sofrimento ─
ao contrário
exímios fomentadores de reveses nos apraz
cavar buracos para alojar nossos semelhantes 
buracos em que nós mesmos caímos
amiúde sem qualquer consolo

domingo, 12 de janeiro de 2020

Já vou tarde

ontem me propus que hoje seria diferente
proposta tíbia pra tocar a intangível verdade
ir até as entranhas não basta querer buscar
um eu esfarrapado sequer este viver austero

por que sem ser flor desejar tanto florescer
por que não aceitar tranquilo a obscuridade
da turba ignara seguir sombrio no anonimato
cumprir da vida o rito de passagem a morte

deixar secar a alma abandonar qualquer anseio
dar tempo ao tempo passivo aguardar pelo fim
inevitável sumir de vez no todo sempre enfim

entrar de férias definitivas no eterno nada
terminar com esta farsa que chamo vida
não esperar mais ser possível haver amor

domingo, 5 de janeiro de 2020

Igualdade e liberdade

nós seres ditos humanos
não somos iguais
aparentamos semelhança
mas igualdade jamais
desigualdades sempre
e quiçá cada vez mais
serão interpostas entre nós
o saldo bancário é um bom diferencial
outro a qualidade das sinapses cerebrais

em meio a miríades de ocultas almas vingativas
imbuídas de secretos desejos de tirania
disfarçados em palavras e gestos de virtude
louvores e promessas acobertando intenção de magoar
somos arrastados num redemunho
de vida que quer se superar a si mesma
incessantemente

ardilosamente
engendrada pelos poucos poderosos de fato
uma ilusão de liberdade serve para nos tornar
escravos numa servidão sub-reptícia

ignaros portamos
arreios de ouro
alguns a maioria
de couro
atrelados às carruagens dos donos do poder
e tangidos pelo chicote sutil de seus asseclas