domingo, 30 de novembro de 2014

POESIA... AFINAL PRA QUÊ?

Com a palavra o editor:
— Por ora não, por favor!
Poesia, nem pensar!
Não adianta enviar.
Aceite conselho sincero,
procure mudar de gênero,
biografia, autoajuda, romance,
talvez tenha maior chance.
Não julgue sermos uns brutos,
quem comanda é o mercado,
e para esse tipo de produto,
não tem jeito, fica tudo encalhado.
Exceção rara,
só se for autor muito consagrado.

O poeta tal desdita não abala.
Persevera em labor tão adverso,
voz das entranhas não se cala,
confia no valor do fazer versos.
Ignora da poesia a morte decretada
segundo o juízo do crítico badalado.
Segue arrancando do âmago da alma
amor, prazer, tristeza, dor, revolta, calma
para colocar em palavras ritmadas
ao dispor do coração da humanidade,
irrefreável impulso herança de remota antiguidade.


(do livro “Poesia... Afinal pra quê?”)

sábado, 22 de novembro de 2014

A Raposa e as Uvas

     A Raposa caminhava por um caminho que costeava a encosta de um morro, ainda inacessível, na época em que aconteceu este acontecimento, ao tráfego de diligência, embora houvesse forte tráfico de influência dos poderosos locais junto às autoridades constitucionalmente constituídas para mudar essa situação e transformar (o caminho) em rota comercial passível de possível exploração comercial, transformado (o morro), graças à diligência de laboriosas mãos de inúmeros trabalhadores braçais obrigados a trabalhar praticamente de graça, sem achar a mínima graça e jamais ouvir sequer um simples obrigado do prepotente patrão, serviçais que eram, do proprietário da terra, num magnífico parreiral de uvas cabernet sauvignon.
     O dia estava nublado, mas para a Raposa era como se estivesse um ensolarado dia radiante com os raios solares refletindo em cada grãozinho de areia do caminho. A Raposa era uma otimista. Olhava tudo pelo lado bom. Encarava tudo pelo lado positivo das coisas. Era uma assídua leitora de livros de auto-ajuda. Não por precisão, mas por convicção. Vivia feliz. Muito feliz. Mas, especialmente, naquela tarde, aliás, não só naquela, mas em todas as demais tardes, não só tardes, mas manhãs e noites também, que lhe pareciam todas esplendorosas, vinha satisfeita com a vida, não só com a vida, mas também com o estômago, e em paz com sua consciência raposável. Acabara de comer (literalmente) várias galinhas de um galinheiro nas cercanias pulando a cerca. Fartara-se sem sentir qualquer falta moral, pois, aprendera com seus pais, que por sua vez também tinham aprendido com seus pais (deles) etc., que as galinhas foram feitas por Deus para serem comidas, particularmente, pelas raposas e ela, apenas dava continuidade a tal privilégio histórico, mantendo assim uma espécie de tradição da sua espécie. Assobiava alegremente uma ária de Verdi quando, de repente, pôs tento em alguns cachos de uva do parreiral e pensou de si para si:
     — Oh! Como a mãe-natureza é maravilhosa. Vejam – pensou esse verbo nos seus respectivos: modo, tempo, número e pessoa, com um sentido genérico, indefinido, sem se dirigir [mentalmente] a ninguém especificamente – que belas uvas. Estão maduras (enquanto ela assim pensava, continuava assobiar a ária de Verdi). Uma sobremesazinha até que vai cair bem agora, depois de tanta galinha. E uva, dizem, é digestivo. Vou aproveitar a oportunidade e provar alguns cachos.
Porém, o otimismo da Raposa, talvez, perturbasse psicologicamente de alguma forma ainda desconhecida seu raciocínio e daí turvasse sua visão, pois as uvas não estavam de forma alguma maduras, as uvas estavam verdes. E bem verdes. Vendo uma escada deixada ali à beira do caminho, sempre movida pelo seu inseparável espírito otimista, exclamou (dela para ela mesma, uma vez que estava sozinha):
     — Louvada seja a boa alma que providencialmente deixou esta escada aqui à beira do caminho, certamente, para facilitar minha vida permitindo, assim, que eu apanhe as uvas sem necessidade de ter que dar aqueles pulos ridículos para tentar, inutilmente, apanhá-las, conforme sucedeu com minha ancestral protagonista de outra versão bem mais antiga desta fábula.
Puxou a escada para junto de um dos pés de uva; subiu; colheu alguns cachos; desceu; e passou a desfrutar da fruta fruto de sua colheita. Enquanto mastigava os bagos colhidos franzia a testa, fechava os olhos, de onde escorriam grossas lágrimas, cerrava os lábios, crispava a face e, em face daquela situação, pensava:
     — Ah! Como estão deliciosas — motivada por seu permanente otimismo, sem levar em conta o sabor acerbo da fruta verde.
     Degustado o acepipe, sob o ponto de vista otimista dela, é claro, recolocou a escada no lugar à beira do caminho, pois além de otimista era uma raposa ordeira, e retomou seu caminho. Mal deu alguns poucos passos, uma cólica fenomenal transpassou-lhe as tripas fulminando-a. Virou almoço de urubu.



(do livro “Contos Medonhos”)

sábado, 15 de novembro de 2014

OS DOIS SONHOS DE JOSÉ

Era uma vez um marceneiro de nome José. Ele vivia numa cidadezinha bem longe lá no meio do mundo. Tinha uma esposa que gostava muito dele e dois filhos que eram muito bonzinhos. A família morava numa casa pequena, mas bem construída e era casa própria. Tinham comprado com financiamento e já estava paga. José tinha sua marcenaria ao lado da casa. Não era uma marcenaria grande, mas era bem montada e tinha uma boa freguesia. A família vivia com simplicidade, sem luxo, mas era uma vida decente e em paz.
Uma noite, José teve um sonho muito estranho. Quando ele acordou contou para a esposa o sonho. Tinha sonhado com um tesouro escondido embaixo de uma grande pedra redonda à beira de um rio caudaloso.
Ele disse à esposa que ia sair em busca do tesouro sonhado. Quando ele o encontrasse ficaria rico.
A esposa ponderou que ele não devia fazer aquilo. Eles viviam bem. Uma vida modesta, mas eram felizes.
José não deu ouvidos à esposa. No mesmo dia fechou a marcenaria. Nem acabou as encomendas em andamento. Seus clientes ficaram na mão. Vendeu suas máquinas e ferramentas por um preço bem baixo para vender rápido. Deixou um pouco de dinheiro com a esposa. Guardou para si o restante do dinheiro numa carteira. Numa mala, arrumou objetos pessoais, uma pá e uma picareta para cavar, e saiu pelo mundo afora a procura da grande pedra redonda à beira de um rio caudaloso embaixo da qual encontraria o grande tesouro.
Andou. Andou. E andou. Perguntou pra um. Perguntou pra outro. Onde ficava a tal a pedra? Ninguém sabia. Alguns pensavam que aquele sujeito fosse lelé da cuca. Mas só pensavam não diziam nada.
Depois de ter percorrido muitos e muitos quilômetros; passado muitos e muitos lugares sem encontrar a grande pedra; seu dinheiro já praticamente no fim, caminhava ele desanimado por uma estrada deserta, quando cruzou com um homem muito estranho que vinha pela mesma estrada, mas em sentido contrário.
Era bem alto e magro. A cara era azulada. Os olhos fundos. O nariz curvado parecia um bico de gavião. A boca enorme, banguela, os dentes restantes bem amarelos. Talvez ele tivesse caído e batido de cara no chão porque na testa apareciam dois galos um tanto pontudos, um de cada lado da testa. Andava no chão duro pedregoso sem calçado. E os pés eram bem esquisitos. Davam a impressão de não ser pés humanos. Pareciam deformados como se fossem cascos. Usava uma capa preta que cobria todo o corpo; na parte traseira era gozado, a capa ficava meio levantada.
Sem que José nada falasse o estranho desconhecido lhe dirigiu a palavra dizendo que sabia onde ficava a pedra redonda que ele procurava e passou a explicar detalhadamente para José o caminho para chegar até lá. Terminou suas explicações não disse mais uma palavra e continuou sua marcha. José meio apalermado com o ocorrido se virou para dirigir a palavra ao homem e ficou apalermado inteiro. Ele tinha desaparecido.
José ficou em dúvida se acataria ou não a orientação do estranho. Concluiu que valia a pena arriscar e seguiu pelo caminho indicado. Andou certo tempo e encontrou um grande rio caudaloso. Ficou animado. Caminhou pela margem do rio mais um pouco e de repente seu coração disparou. Avistou a grande pedra redonda.
Correu em sua direção e começou a cavar. Cavou, cavou, cavou. Em toda a volta. Uma vala bem funda. Cavou mais. Mais fundo. Mais fundo. E nada de tesouro. Cavou até alta noite quando exausto não tendo mais forças desmaiou de sono.
Teve então outro sonho. No sonho aparecia uma árvore enorme, alta, com um tronco bem grosso. Numa parte do tronco tinha um buraco e lá dentro um mapa do esconderijo de um grande tesouro.
José acordou sobressaltado com o sol batendo em sua cara. Passou a recordar o sonho. Lembrou que bem do lado de sua antiga marcenaria tinha uma árvore igualzinha a do sonho. Afobado arrumou suas tralhas e partiu rapidamente para casa.
Chegou em casa ao entardecer. A esposa e os filhos o receberam com muita alegria. Todos estavam ansiosos com a sorte dele. A esposa também estava preocupada porque o dinheiro tinha acabado, só restava um pouco de mantimento, e ela não saberia como fazer para alimentar os filhos. Ainda bem que o marido tinha voltado a tempo trazendo o tesouro.
José não quis perder tempo com explicações supérfluas para a mulher. Descarregou a bagagem e sem mais delongas rumou para a antiga marcenaria. Ao lado lá estava a magnífica árvore tal qual a do sonho. E numa parte do tronco o buraco. Meteu a mão no buraco e apalpou um pedaço de papel. Seu coração disparou ainda mais forte do que quando avistou a enorme pedra redonda. Apesar da pouca luz do entardecer foi capaz de ler o que estava escrito. Para sua surpresa não era um mapa. Era um bilhete:
José, você tinha um bom trabalho, não ganhava fortunas, mas era um trabalho honesto que permitia a você e a sua família viver bem. Motivado por um sonho de ambição abandonou tudo o que já tinha conseguido com sacrifício e partiu para realizar seu desejo de mais conquista. Seu sonho ambicioso virou pó. A felicidade estava bem junto de você, em suas mãos, e você deixou que ela escapasse entre os dedos. Agora se você quiser voltar a sua vidinha simples de antigamente terá de recomeçar do zero. Boa sorte!



(do livro “54 histórias que minha avó contava na kombi”)

sábado, 8 de novembro de 2014

A pintura de Ismael Nery sob o olhar poético de Murilo Mendes

O poeta Murilo Mendes (Juiz de Fora, MG, 1901 – Lisboa, 1975) conheceu o pintor Ismael Nery (Belém, PA, 1900 – Rio de Janeiro, 1934) em 1921. Imediatamente tornaram-se grandes amigos. A amizade entre os dois artistas perdurou intata e intensa até o instante final da vida do pintor. Murilo foi um fervoroso admirador de Ismael. Assim, podemos afirmar que ninguém melhor do que esse poeta para revelar literariamente esse pintor. E isso, acreditamos, foi feito no poema:

“Saudação a Ismael Nery”

Acima dos cubos verdes e das esferas azuis
um Ente magnético sopra o espírito da vida.
Depois de fixar os contornos dos corpos
transpõe a região que nasceu sob o signo do amor
e reúne num abraço as partes desconhecidas do mundo.
Apelo dos ritmos movendo as figuras humanas,
solicitação das matérias do sonho, espírito que nunca descansa.

Ele pensa desligado do tempo,
as formas futuras dormem nos seus olhos.
Recebe diretamente do Espírito
a visão instantânea das coisas, ó vertigem!
penetra o sentido das ideias, das cores, a tonalidade da Criação,
olho do mundo,
zona livre de corrupção, música que não para nunca,
forma e transparência. (3)
           
Poema pertencente ao bloco nomeado de “A Cabeça Decotada”, composto de dois poemas (o outro é Mapa), do primeiro livro de poesias de Murilo Mendes intitulado Poemas composto entre 1925 e 1929. Nesse poema uma persona lírica, em terceira pessoa, saúda o pintor Ismael Nery poetizando o processo criativo e a postura metafísica do artista plástico. O poema tem uma estrutura irregular em duas estrofes: a primeira com sete versos, a segunda com oito. Rima ausente – versos brancos, métrica não uniforme – versos livres, procedimento criativo poético coerente com o momento modernista de composição do poema que se abre com um verso criador de um espaço pictórico geometrizado e colorido: cubos verdes, esferas azuis, contraposto a um verso de natureza mística: Ente magnético, espírito da vida. Volta ao plano físico pela indicação de um dos aspectos da técnica criativa do pintor que faz os esboços das suas figuras humanas fixando os contornos dos corpos, seguida de nova fuga para o etéreo, região do signo do amor, partes desconhecidas do mundo. Retorno ao concreto com as figuras humanas movendo-se ritmicamente, mas que se desvanecem pela solicitação das matérias do sonho. A persona lírica termina a primeira estrofe apontando para o infatigável labor intelectual do pintor, espírito que nunca descansa.
Na segunda estrofe mais detalhes do ato criativo e da conduta metafísica do pintor. Ele procura abstrair-se do inexorável transcorrer do tempo, recebendo, sem intermediários, num instante vertiginoso, de um ente superior, a visão do mundo em formas que, adormecidas nos seus olhos, são despertadas dentro do tom do ato criativo, com as cores e os conteúdos que lhes são os mais pertinentes, num incorruptível espaço-tempo em moto-perpétuo, aliando forma e transparência, novamente confronto do material com o imaterial.
O advérbio de lugar Acima que abre o poema define um plano espiritual colocado em posição mais elevada do que a do plano material (mundano), metaforizado em cubos e esferas. Esses dois planos vão, então, do início ao fim do poema se antepondo e se imbricando. Um Ente magnético do plano mais elevado viabiliza – soprando o espírito da vida – o ato criativo do artista, colocado no plano material. Ele adquire então a competência necessária para criar artisticamente passando a agir no plano material, mas em estreita interligação com o plano espiritual – fixa contornos de corpos, transpõe região do amor, reúne partes desconhecidas do mundo, pensa atemporalmente formas, recebe visão do Espírito, penetra o sentido de cores e ideias – sendo ao final, recompensado do seu esforço pela realização da obra que tem seu componente material na forma e seu componente espiritual na transparência.
O poema, assim, em seu nível textual profundo constitui-se de uma oposição entre o espiritual e o material. Tal oposição pode gerar uma relação conflituosa (do verbo latino confligo, ere – bater, lutar, (mas também – juntar, unir)), certamente não isenta de tensão, que não vai ocasionar, entretanto, ruptura, ao contrário, vai tender à harmonização, à complementaridade. Há na verdade uma conciliação de contrários a partir de um processo dialético artístico pelo qual é atingida a síntese, isto é, realiza-se a obra.                      
Se agora, afrouxarmos um pouco o fio condutor da nossa análise do poema, mantida até aqui tanto quanto possível, limitados que somos por parca competência, dentro daquilo que entendemos como o conteúdo imanente do poema, e deixarmos que ela se contamine por algum biografismo podemos afirmar que o poema mantém estreita relação de fidelidade com a vida e a obra do pintor. A influência cubista que Ismael sofreu em sua pintura reflete-se nos cubos (e esferas). A marca surrealista na solicitação das matérias do sonho. E a presença quase que obrigatória da figura humana, nos quadros, aquarelas e desenhos que o pintor realizou, no fixar contornos dos corpos e no ritmos movendo figuras humanas. O próprio Murilo Mendes escreveu entre 1948 e 1949 vários artigos sobre Ismael Nery resumidos e reunidos em livro homenageando os cinquenta anos da morte do pintor (4). Aí podemos ler:

“O problema para os pintores mais jovens não é evidentemente ultrapassar Picasso (quando poucos na verdade poderiam atingi-lo), mas sim recolher sua lição, e tomar um caminho diverso. Foi o que fez Ismael Nery.” (p. 105)

“Ismael era um partidário da absorção das correntes de ideias que vão surgindo no transcurso dos tempos; não se poderia mostrar indiferente a uma teoria que vinha ampliar a zona de conhecimento, produzindo ressonâncias particulares no plano da arte. Não era um surrealista ortodoxo, mas tirou partido da doutrina.” (108)

            “Conforme acentuei, seu [de Ismael Nery] estudo predileto era o da figura humana.”(p. 106)

“Ismael Nery um artista interessado em exprimir a unidade da vida humana através de suas múltiplas manifestações. /... / procurou sempre extrair o eterno do transitório //... / nunca ter chegado à desumanização total; empregava muitas vezes a deformação – processo abstrato que remonta a vários séculos - mas demonstrando sempre respeito pela figura humana.” (108)

Ainda nessa mesma obra (op. cit. (4)), Murilo faz reverberar em prosa, mais de vinte anos depois da composição do poema, o conteúdo de alguns trechos de seus versos – um Ente magnético; Recebe diretamente do Espírito; espírito que nunca descansa; música que não para nunca –:

“Chamem a isto poder mediúnico, poder magnético, o que quiserem. //... / cumpre-me dizer que estou convencido de que ele [Ismael] era iluminado pelo Espírito Santo. (p. 95)
Pintava rapidamente e apagava logo; debaixo dos quadros que deixou, existem outros, pois, quando não apagava, pintava por cima. Tantas ideias e sugestões lhe vinham à cabeça que não tinha paciência para pousar a mão num trabalho lento: o intelectual sufocou o artesão. Desenhava com espantosa facilidade //... /”  (p. 95)

A percuciência intelectual associada ao afogadilho artesanal do pintor também não passaram desapercebidos a  Mário de Andrade que em artigo (5) datado de 1928 incluído na mesma obra em homenagem aos cinquenta anos da morte do artista afirma:

“//... / Ismael Nery pesquisa, assimilando todos os outros para ser mesmo ele só e o que é melhor, para ser quanto mais alto possa ser. E a contradição da rapidez com que pinta, no fundo ainda explica o indivíduo que pintando se limita a copiar uma criação já toda feita no espírito, toda completada no pensamento e que se fica por acabar na realização é porque não satisfez e não interessa mais o artista. “(p. 60)   

Para Murilo Mendes, Ismael Nery era um ser de extraordinário dinamismo e de “uma prodigiosa compreensão das formas plásticas” às quais impregnava de uma “sensualidade universal” após passarem pelo “batismo de sua visão”, mantendo simultaneamente contato estreito “com o plano intemporal”, por meio de sua religiosidade (era católico ardoroso), rompendo os limites do mundo físico e penetrando no mundo metafísico. A arte de Ismael Nery poderia ser colocada na equação: “sensibilidade micrométrica + visão intemporal dos acontecimentos”. (6) Essa intemporalidade – revelada no verso: Ele pensa desligado do tempo – era o ponto central da doutrina desenvolvida por Ismael, que Murilo nomeara de essencialismo. Em linhas gerais, essa doutrina propugnava que, para superar os aspectos trágicos de suas vidas, os seres humanos deveriam abstrair-se da noção de tempo. Todo o mal que aflige o homem moderno resultaria do fato de que ele fundamenta seu espírito na ideia de tempo e “o tempo traz no seu bojo a corrupção e a destruição.” Com a intemporalidade conquistar-se-ia o definitivo, o permanente, inatacáveis, incorruptíveis pelo tempo –  conceito que nos permite compreender a passagem do poema: zona livre de corrupção – sendo o catolicismo o caminho que levaria a essa conquista.   
Murilo Mendes nesse poema epidítico a Ismael Nery mantém-se fiel ao sentido geral de sua poética que é o de recusa às formas banais, presença de um senso muito vivo de modernidade, criação que amplia o real com ideias tomadas da fantasia potencializando as imagens cotidianas e recompondo

“os mil estilhaços da sua imaginação em um vitral desmesurado de crente surrealista.” (7)

E num sentido mais particular sua

“capacidade de apreensão visionária da realidade, aliada ao seu espírito inventivo, encontrou nas obras de pintores clássicos e contemporâneos um campo fértil para alimentar a sua poesia” (8)  

fato que o poema ora em estudo vem confirmar motivando-nos a endossar as palavras de João Alexandre Barbosa (citadas em Silva), quando da análise do poema “Joan Miró”, em homenagem que Murilo Mendes prestou ao famoso  pintor (surrealista) catalão, do livro Tempo Espanhol de 1959: 

“Procurando ajustar a palavra a uma ambiência de cunho visual por ele experimentada, Murilo Mendes busca a substituição do pictórico pelo linguístico a partir da metáfora.” (9)

O que evidencia a

“tendência do poeta a fazer-se ressonância em verso, da arte de outrem, captando-lhe a lição essencial para sua poesia”. (10)

Propomo-nos agora, numa atitude quiçá paradoxal (senão coisa pior), depois de termos procurado esmiuçar o poema para compreendê-lo e justificá-lo, enfrentar um obstáculo que poderá, talvez, dependendo da conclusão a que consigamos chegar, desarticular ou até mesmo invalidar toda a análise que até aqui empreendemos – encontrar uma resposta satisfatória para a questão: é possível por meio da poesia descrever uma pintura? Ou em outros termos, até que ponto podemos validar o conceito horaciano, embora deslocado de seu contexto poético original, ut pictura poesis?
Se dermos crédito ao filósofo iluminista alemão do século XVIII (LESSING, 1998), rigorosamente, a resposta seria: NÃO. A impossibilidade da transposição de uma forma de arte à outra residiria no fato de que a poesia usa como veículo expressivo e receptivo a linguagem verbal que é baseada em signos arbitrários, cujas imagens sonoras e sons articulados na fala organizam-se sequencialmente ou linearmente tendo como suporte o tempo sendo um meio adequado para descrever ações, enquanto que a pintura usa como veículo expressivo a linguagem das artes plásticas baseada em signos naturais cujas formas e cores organizam-se como um todo – recepcionado visualmente praticamente de uma só vez – tendo como suporte o espaço sendo um meio adequado para descrever corpos. A pintura pode imitar ações apenas alusivamente por meio de corpos e a poesia pode expor corpos apenas alusivamente por meio de ações, mas sempre que uma forma de arte invade indevidamente o território da outra resulta numa perda de qualidade da arte invasora. Segundo Lessing (quando da invasão da poesia ao campo da pintura):

“Enumerar ao leitor pouco a pouco muitas partes ou coisas que ele necessariamente deve ver de uma vez na natureza se elas devem construir um todo e querer que ele faça por meio disso uma imagem do todo: isso implica uma invasão do poeta no âmbito do pintor, sendo que o poeta desperdiça nisso muita imaginação a troco de nada.” (11)
           
Para outro filósofo, mais próximo de nós (FOUCAULT, 1999) a conclusão é idêntica à de Lessing. Pode-se ler em Foucault:

“Mas a relação da linguagem com a pintura é uma relação infinita. Não que a palavra seja imperfeita e esteja, em face do visível, num déficit que em vão se esforçaria por recuperar. São irredutíveis uma ao outro (grifo nosso): por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem.” (12)

Para Foucault há uma perda dupla: da parte do emissor – o poeta é incapaz de emitir por palavras tudo aquilo que vê na pintura; e da parte do receptor – o leitor é incapaz de reproduzir a imagem original do quadro lendo o texto. Todos perderiam: o poeta, o leitor e a arte: a poesia e a pintura. O resultado seria de frustração.
Uma solução, de validade restrita, para esse embate que buscasse confirmar a qualidade do nosso poema como expressão verbal passível de ser considerada representante de outro tipo de linguagem artística, aqui arte visual, seria apelar para a afirmação de que Saudação a Ismael Nery não aborda nenhuma pintura específica, mas é um poema que trata do processo criativo e da postura metafísica do pintor. Seu referente não é um corpo, um quadro, uma pintura, que como há pouco foi discutido deve ter como suporte o espaço, mas uma ação – o procedimento técnico do artista, sua inspiração, sua conduta moral – que tem como suporte o tempo [ainda que ele almeje a intemporalidade], e como tal, perfeitamente passível de ser poetizada. Murilo Mendes em Saudação a Ismael Nery metaforiza em versos o processo criativo pictórico e a postura metafísica de seu querido amigo após ter sido tocado sensivelmente como poeta pelo ato criativo e pela conduta moral do pintor.
E se o poema tratasse de uma pintura específica? O resultado seria necessariamente negativo? Só diante de uma situação concreta uma resposta palpável poderia ser tentada. Se enveredássemos por um caminho especulativo, poderíamos começar por abrandar o rigor da “intraduzibilidade” de uma forma de arte em outra, sendo menos rigorosos com a estanqueidade das linguagens artísticas. E se, por mero cabotinismo literário, priorizássemos nosso foco na linguagem verbal, poderíamos dizer que, embora os signos verbais, no ato de produção da língua, seguem-se linearmente um ao outro, fato que lhes dá uma marca inequívoca de temporalidade, a eles, por serem signos arbitrários, não lhes podemos negar a faculdade de descrever um corpo, por mais maçante ou estapafúrdia seja a sintaxe apresentada. Tudo, ou quase tudo, dependerá da capacidade criativa do autor. Como disse o poeta querido: Penetra surdamente no reino das palavras/ Lá estão os poemas que esperam ser escritos. O resto, bem, o resto fica por conta da nossa imaginação de leitores. É aí que deveremos encontrar o naco gostoso da graça que nos cabe.               

Notas
Mendes, Murilo. Poesia. [org.} Maria Lúcia Aragão. Rio de Janeiro: Agir, pp. 28-29,1983.
Mendes, Murilo. “Recordação de Ismael Nery” em: Ismael Nery 50 anos depois. São Paulo, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 1984.
Andrade, Mário de. “Ismael Nery”  op. cit., 1984.
Araújo, Laís Corrêa de. Murilo Mendes. Petrópolis: Vozes, pp. 182 –183, 1972.
Bosi, Alfredo. “Tendências contemporâneas” em: História sucinta da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 43ª ed., pp. 446-447, 2003.
Silva, Francis Paulina Lopes da. “A obsessão pelas Artes Plásticas” em: Murilo Mendes; Orfeu transubstanciado: ensaio. Viçosa: UFV, p. 109, 2000.
Silva, Francis P.L. op. cit. p. 114.
Silva, Francis P.L. op. cit. p. 115.
Lessing, G.E. op. cit. p. 211.
Foucault, Michel. “Las Meninas” em: As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 8ª ed., p. 12, 1999.

Bibliografia

ANDRADE, Mário de. Ismael Nery 50 anos depois. São Paulo, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 1984.
ARAÚJO, Laís Corrêa de. Murilo Mendes. Petrópolis: Vozes, 1972.
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 41ª ed., 2003.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo; Martins Fontes,  8ª ed., 1999.
LESSING, G.E. Laocoonte ou sobre as fronteiras da Pintura e da Poesia. Com esclarecimentos ocasionais sobre diferentes pontos da história da arte antiga. Introdução, tradução e notas de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 1998.
MENDES, Murilo. Poesia. [org.] Maria Lúcia Aragão. Rio de Janeiro: Agir, 1983.
_______________ Ismael Nery 50 anos depois. São Paulo, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 1984.
SILVA, Francis Paulina Lopes da. Murilo Mendes; Orfeu transubstanciado: ensaio. Viçosa: UFV, 2000.

(do livro “Ensaios Desnecessários” – inédito)

sábado, 1 de novembro de 2014

SER ANTISSOCIAL

Uns com os outros, os seres humanos, em sua esmagadora maioria, são bem pouco amistosos. Cruzam-se diariamente pelas ruas ignorando-se mutuamente. Enfrentam-se durante horas a fio em infindáveis filas para as mais variadas finalidades sem nem ao menos trocar um olhar. Encontram-se no elevador do edifício em que moram ou trabalham e mal e mal murmuram entre si algumas sílabas acerca das condições meteorológicas.  Se fossem mais civilizados sem dúvida observariam com mais atenção a Natureza e, por exemplo, imitariam os cães que, numa inequívoca demonstração de elevada sociabilidade, sempre que se encontram, mesmo pela primeira vez, cheiram, uns aos outros, o rabo.

(em “Crônicas Anacrônicas – Grotesca Filosofia Mediocridade Sublime" (inédito))