O poeta
Murilo Mendes (Juiz de Fora, MG, 1901 – Lisboa, 1975) conheceu o pintor Ismael
Nery (Belém, PA, 1900 – Rio de Janeiro, 1934) em 1921. Imediatamente
tornaram-se grandes amigos. A amizade entre os dois artistas perdurou intata e
intensa até o instante final da vida do pintor. Murilo foi um fervoroso
admirador de Ismael. Assim, podemos afirmar que ninguém melhor do que esse
poeta para revelar literariamente esse pintor. E isso, acreditamos, foi feito
no poema:
“Saudação a
Ismael Nery”
Acima dos cubos verdes e das esferas azuis
um Ente magnético sopra o espírito da vida.
Depois de fixar os contornos dos corpos
transpõe a região que nasceu sob o signo do amor
e reúne num abraço as partes desconhecidas do mundo.
Apelo dos ritmos movendo as figuras humanas,
solicitação das matérias do sonho, espírito que nunca
descansa.
Ele pensa desligado do tempo,
as formas futuras dormem nos seus olhos.
Recebe diretamente do Espírito
a visão instantânea das coisas, ó vertigem!
penetra o sentido das ideias, das cores, a tonalidade
da Criação,
olho do mundo,
zona livre de corrupção, música que não para nunca,
forma e transparência. (3)
Poema
pertencente ao bloco nomeado de “A Cabeça Decotada”, composto de dois poemas (o
outro é Mapa), do primeiro livro de
poesias de Murilo Mendes intitulado Poemas
composto entre 1925 e 1929. Nesse poema uma persona lírica, em terceira pessoa, saúda o pintor Ismael Nery
poetizando o processo criativo e a postura metafísica do artista plástico. O
poema tem uma estrutura irregular em duas estrofes: a primeira com sete versos,
a segunda com oito. Rima ausente – versos brancos, métrica não uniforme –
versos livres, procedimento criativo poético coerente com o momento modernista de
composição do poema que se abre com um verso criador de um espaço pictórico
geometrizado e colorido: cubos verdes,
esferas azuis, contraposto a um verso
de natureza mística: Ente magnético, espírito da vida. Volta ao plano físico
pela indicação de um dos aspectos da técnica criativa do pintor que faz os
esboços das suas figuras humanas fixando os
contornos dos corpos, seguida de nova fuga para o etéreo, região do signo do amor, partes
desconhecidas do mundo. Retorno ao concreto com as figuras humanas movendo-se ritmicamente,
mas que se desvanecem pela solicitação
das matérias do sonho. A persona lírica
termina a primeira estrofe apontando para o infatigável labor intelectual do
pintor, espírito que nunca descansa.
Na
segunda estrofe mais detalhes do ato criativo e da conduta metafísica do
pintor. Ele procura abstrair-se do inexorável transcorrer do tempo, recebendo,
sem intermediários, num instante vertiginoso, de um ente superior, a visão do
mundo em formas que, adormecidas nos seus
olhos, são despertadas dentro do tom do ato criativo, com as cores e os
conteúdos que lhes são os mais pertinentes, num incorruptível espaço-tempo em
moto-perpétuo, aliando forma e
transparência, novamente confronto do material com o imaterial.
O
advérbio de lugar Acima que abre o
poema define um plano espiritual colocado em posição mais elevada do que a do
plano material (mundano), metaforizado em cubos e esferas. Esses dois planos
vão, então, do início ao fim do poema se antepondo e se imbricando. Um Ente magnético do plano mais elevado
viabiliza – soprando o espírito da vida –
o ato criativo do artista, colocado no plano material. Ele adquire então a
competência necessária para criar artisticamente passando a agir no plano
material, mas em estreita interligação com o plano espiritual – fixa contornos de corpos, transpõe região do
amor, reúne partes desconhecidas do mundo, pensa atemporalmente formas, recebe
visão do Espírito, penetra o sentido de cores e ideias – sendo ao final,
recompensado do seu esforço pela realização da obra que tem seu componente
material na forma e seu componente
espiritual na transparência.
O
poema, assim, em seu nível textual profundo constitui-se de uma oposição entre
o espiritual e o material. Tal oposição pode gerar uma relação conflituosa (do verbo
latino confligo, ere – bater, lutar,
(mas também – juntar, unir)), certamente não isenta de tensão, que não vai
ocasionar, entretanto, ruptura, ao contrário, vai tender à harmonização, à
complementaridade. Há na verdade uma conciliação de contrários a partir de um
processo dialético artístico pelo qual é atingida a síntese, isto é, realiza-se
a obra.
Se
agora, afrouxarmos um pouco o fio condutor da nossa análise do poema, mantida
até aqui tanto quanto possível, limitados que somos por parca competência,
dentro daquilo que entendemos como o conteúdo imanente do poema, e deixarmos
que ela se contamine por algum biografismo podemos afirmar que o poema mantém
estreita relação de fidelidade com a vida e a obra do pintor. A influência cubista
que Ismael sofreu em sua pintura reflete-se nos cubos (e esferas). A
marca surrealista na solicitação das
matérias do sonho. E a presença quase que obrigatória da figura humana, nos
quadros, aquarelas e desenhos que o pintor realizou, no fixar contornos dos corpos e no ritmos
movendo figuras humanas. O próprio Murilo Mendes escreveu entre 1948 e 1949
vários artigos sobre Ismael Nery resumidos e reunidos em livro homenageando os
cinquenta anos da morte do pintor (4). Aí podemos ler:
“O problema para os pintores mais jovens não é evidentemente ultrapassar
Picasso (quando poucos na verdade poderiam atingi-lo), mas sim recolher sua
lição, e tomar um caminho diverso. Foi o que fez Ismael Nery.” (p. 105)
“Ismael era um partidário da absorção das correntes de ideias que vão
surgindo no transcurso dos tempos; não se poderia mostrar indiferente a uma
teoria que vinha ampliar a zona de conhecimento, produzindo ressonâncias
particulares no plano da arte. Não era um surrealista ortodoxo, mas tirou
partido da doutrina.” (108)
“Conforme acentuei, seu [de
Ismael Nery] estudo predileto era o da figura humana.”(p. 106)
“Ismael Nery um artista interessado em exprimir a unidade da vida humana
através de suas múltiplas manifestações. /... / procurou sempre extrair o eterno
do transitório //... / nunca ter chegado à desumanização total; empregava
muitas vezes a deformação – processo abstrato que remonta a vários séculos -
mas demonstrando sempre respeito pela figura humana.” (108)
Ainda
nessa mesma obra (op. cit. (4)), Murilo
faz reverberar em prosa, mais de vinte anos depois da composição do poema, o
conteúdo de alguns trechos de seus versos – um
Ente magnético; Recebe diretamente do Espírito; espírito que nunca descansa;
música que não para nunca –:
“Chamem a isto poder mediúnico, poder magnético, o que quiserem. //... /
cumpre-me dizer que estou convencido de que ele [Ismael] era iluminado pelo
Espírito Santo. (p. 95)
Pintava rapidamente e apagava logo; debaixo dos
quadros que deixou, existem outros, pois, quando não apagava, pintava por cima.
Tantas ideias e sugestões lhe vinham à cabeça que não tinha paciência para
pousar a mão num trabalho lento: o intelectual sufocou o artesão. Desenhava com
espantosa facilidade //... /” (p. 95)
A
percuciência intelectual associada ao afogadilho artesanal do pintor também não
passaram desapercebidos a Mário de
Andrade que em artigo (5) datado de 1928 incluído na mesma obra em homenagem
aos cinquenta anos da morte do artista afirma:
“//... / Ismael Nery pesquisa, assimilando todos os outros para ser mesmo
ele só e o que é melhor, para ser quanto mais alto possa ser. E a contradição
da rapidez com que pinta, no fundo ainda explica o indivíduo que pintando se
limita a copiar uma criação já toda feita no espírito, toda completada no pensamento
e que se fica por acabar na realização é porque não satisfez e não interessa
mais o artista. “(p. 60)
Para
Murilo Mendes, Ismael Nery era um ser de extraordinário dinamismo e de “uma
prodigiosa compreensão das formas plásticas” às quais impregnava de uma
“sensualidade universal” após passarem pelo “batismo de sua visão”, mantendo
simultaneamente contato estreito “com o plano intemporal”, por meio de sua
religiosidade (era católico ardoroso), rompendo os limites do mundo físico e
penetrando no mundo metafísico. A arte de Ismael Nery poderia ser colocada na
equação: “sensibilidade micrométrica + visão intemporal dos acontecimentos”.
(6) Essa intemporalidade – revelada no verso: Ele pensa desligado do tempo – era o ponto central da doutrina desenvolvida
por Ismael, que Murilo nomeara de essencialismo.
Em linhas gerais, essa doutrina propugnava que, para superar os aspectos
trágicos de suas vidas, os seres humanos deveriam abstrair-se da noção de
tempo. Todo o mal que aflige o homem moderno resultaria do fato de que ele
fundamenta seu espírito na ideia de tempo e “o tempo traz no seu bojo a
corrupção e a destruição.” Com a intemporalidade conquistar-se-ia o definitivo,
o permanente, inatacáveis, incorruptíveis pelo tempo – conceito que nos permite compreender a
passagem do poema: zona livre de
corrupção – sendo o catolicismo o caminho que levaria a essa
conquista.
Murilo
Mendes nesse poema epidítico a Ismael Nery mantém-se fiel ao sentido geral de
sua poética que é o de recusa às formas banais, presença de um senso muito vivo
de modernidade, criação que amplia o real com ideias tomadas da fantasia
potencializando as imagens cotidianas e recompondo
“os mil estilhaços da sua imaginação em um vitral desmesurado de crente
surrealista.” (7)
E num
sentido mais particular sua
“capacidade de apreensão visionária da realidade, aliada ao seu espírito
inventivo, encontrou nas obras de pintores clássicos e contemporâneos um campo
fértil para alimentar a sua poesia” (8)
fato que o
poema ora em estudo vem confirmar motivando-nos a endossar as palavras de João
Alexandre Barbosa (citadas em Silva), quando da análise do poema “Joan Miró”,
em homenagem que Murilo Mendes prestou ao famoso pintor (surrealista) catalão, do livro Tempo Espanhol de 1959:
“Procurando ajustar a palavra a uma ambiência de cunho visual por ele
experimentada, Murilo Mendes busca a substituição do pictórico pelo linguístico
a partir da metáfora.” (9)
O que evidencia a
“tendência do poeta a fazer-se ressonância em verso, da arte de outrem,
captando-lhe a lição essencial para sua poesia”. (10)
Propomo-nos agora, numa
atitude quiçá paradoxal (senão coisa pior), depois de termos procurado esmiuçar
o poema para compreendê-lo e justificá-lo, enfrentar um obstáculo que poderá,
talvez, dependendo da conclusão a que consigamos chegar, desarticular ou até
mesmo invalidar toda a análise que até aqui empreendemos – encontrar uma
resposta satisfatória para a questão: é possível por meio da poesia descrever
uma pintura? Ou em outros termos, até que ponto podemos validar o conceito
horaciano, embora deslocado de seu contexto poético original, ut pictura poesis?
Se dermos crédito ao
filósofo iluminista alemão do século XVIII (LESSING, 1998), rigorosamente, a
resposta seria: NÃO. A impossibilidade da transposição de uma forma de arte à
outra residiria no fato de que a poesia usa como veículo expressivo e receptivo
a linguagem verbal que é baseada em signos arbitrários, cujas imagens sonoras e
sons articulados na fala organizam-se sequencialmente ou linearmente tendo como
suporte o tempo sendo um meio adequado para descrever ações,
enquanto que a pintura usa como veículo expressivo a linguagem das artes
plásticas baseada em signos naturais cujas formas e cores organizam-se como um
todo – recepcionado visualmente praticamente de uma só vez – tendo como suporte
o espaço sendo um meio adequado para descrever corpos. A pintura
pode imitar ações apenas alusivamente por meio de corpos e a poesia pode expor
corpos apenas alusivamente por meio de ações, mas sempre que uma forma de arte
invade indevidamente o território da outra resulta numa perda de qualidade da
arte invasora. Segundo Lessing (quando da invasão da poesia ao campo da
pintura):
“Enumerar ao leitor pouco a pouco muitas partes ou coisas que ele
necessariamente deve ver de uma vez na natureza se elas devem construir um todo
e querer que ele faça por meio disso uma imagem do todo: isso implica uma
invasão do poeta no âmbito do pintor, sendo que o poeta desperdiça nisso muita
imaginação a troco de nada.” (11)
Para
outro filósofo, mais próximo de nós (FOUCAULT, 1999) a conclusão é idêntica à
de Lessing. Pode-se ler em Foucault:
“Mas a relação da linguagem com a pintura é uma relação infinita. Não que
a palavra seja imperfeita e esteja, em face do visível, num déficit que em vão
se esforçaria por recuperar. São irredutíveis uma ao outro (grifo
nosso): por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no
que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas,
comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos
descortinam, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem.” (12)
Para Foucault há uma
perda dupla: da parte do emissor – o poeta é incapaz de emitir por palavras
tudo aquilo que vê na pintura; e da parte do receptor – o leitor é incapaz de
reproduzir a imagem original do quadro lendo o texto. Todos perderiam: o poeta,
o leitor e a arte: a poesia e a pintura. O resultado seria de frustração.
Uma solução, de validade
restrita, para esse embate que buscasse confirmar a qualidade do nosso poema
como expressão verbal passível de ser considerada representante de outro tipo
de linguagem artística, aqui arte visual, seria apelar para a afirmação de que Saudação a Ismael Nery não aborda
nenhuma pintura específica, mas é um poema que trata do processo criativo e da
postura metafísica do pintor. Seu referente não é um corpo, um quadro,
uma pintura, que como há pouco foi discutido deve ter como suporte o espaço,
mas uma ação – o procedimento técnico do artista, sua inspiração, sua
conduta moral – que tem como suporte o tempo [ainda que ele almeje a
intemporalidade], e como tal, perfeitamente passível de ser poetizada. Murilo
Mendes em Saudação a Ismael Nery
metaforiza em versos o processo criativo pictórico e a postura metafísica de
seu querido amigo após ter sido tocado sensivelmente como poeta pelo ato
criativo e pela conduta moral do pintor.
E se o poema tratasse de
uma pintura específica? O resultado seria necessariamente negativo? Só diante
de uma situação concreta uma resposta palpável poderia ser tentada. Se
enveredássemos por um caminho especulativo, poderíamos começar por abrandar o
rigor da “intraduzibilidade” de uma forma de arte em outra, sendo menos
rigorosos com a estanqueidade das linguagens artísticas. E se, por mero
cabotinismo literário, priorizássemos nosso foco na linguagem verbal,
poderíamos dizer que, embora os signos verbais, no ato de produção da língua,
seguem-se linearmente um ao outro, fato que lhes dá uma marca inequívoca de
temporalidade, a eles, por serem signos arbitrários, não lhes podemos negar a
faculdade de descrever um corpo, por mais maçante ou estapafúrdia seja a
sintaxe apresentada. Tudo, ou quase tudo, dependerá da capacidade criativa do
autor. Como disse o poeta querido: Penetra
surdamente no reino das palavras/ Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
O resto, bem, o resto fica por conta da nossa imaginação de leitores. É aí que
deveremos encontrar o naco gostoso da graça que nos cabe.
Notas
Mendes, Murilo. Poesia. [org.} Maria Lúcia Aragão. Rio
de Janeiro: Agir, pp. 28-29,1983.
Mendes, Murilo.
“Recordação de Ismael Nery” em: Ismael Nery 50 anos depois. São Paulo,
Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 1984.
Andrade, Mário
de. “Ismael Nery” op. cit., 1984.
Araújo, Laís
Corrêa de. Murilo Mendes. Petrópolis:
Vozes, pp. 182 –183, 1972.
Bosi, Alfredo.
“Tendências contemporâneas” em: História
sucinta da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 43ª ed.,
pp. 446-447, 2003.
Silva, Francis
Paulina Lopes da. “A obsessão pelas Artes Plásticas” em: Murilo Mendes; Orfeu transubstanciado: ensaio. Viçosa: UFV, p. 109,
2000.
Silva, Francis
P.L. op. cit. p. 114.
Silva, Francis
P.L. op. cit. p. 115.
Lessing, G.E. op. cit. p. 211.
Foucault,
Michel. “Las Meninas” em: As palavras e
as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma Tannus
Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 8ª ed., p. 12, 1999.
Bibliografia
ANDRADE, Mário de. Ismael Nery 50 anos depois. São Paulo,
Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 1984.
ARAÚJO, Laís Corrêa de. Murilo Mendes. Petrópolis: Vozes, 1972.
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 41ª
ed., 2003.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das
ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo; Martins
Fontes, 8ª ed., 1999.
LESSING, G.E. Laocoonte ou sobre as fronteiras da Pintura e da Poesia. Com
esclarecimentos ocasionais sobre diferentes pontos da história da arte antiga. Introdução,
tradução e notas de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 1998.
MENDES, Murilo. Poesia. [org.] Maria Lúcia Aragão. Rio de Janeiro: Agir, 1983.
_______________ Ismael Nery 50 anos depois. São Paulo, Museu de Arte Contemporânea
da Universidade de São Paulo, 1984.
SILVA, Francis Paulina Lopes da. Murilo Mendes; Orfeu transubstanciado:
ensaio. Viçosa: UFV, 2000.
(do livro “Ensaios Desnecessários” –
inédito)