domingo, 30 de agosto de 2015

O AVÔ E O NETINHO

Era uma vez um velhinho, tão velho que seus olhos quase não enxergavam mais, seus ouvidos quase não ouviam mais e suas mãos e seus joelhos tremiam de tão fracos que eram por causa da velhice.
O velhinho era viúvo. Sua esposa tinha morrido há alguns anos. Como ele não tinha muito dinheiro, morava com seu único filho e a nora, a esposa do filho, numa casa simples. O casal tinha um filhinho pequeno de quatro anos de idade, uma criança esperta, muito observadora. O netinho era a grande alegria na vida do velhinho. E eles se davam muito bem. O netinho adorava o avô e o avô adorava o netinho.
Havia, porém, um problema, além de outros problemas.  
Na hora do jantar, quando a família sentava à mesa, era com grande dificuldade que o velhinho conseguia segurar a colher para tomar a sopa. Sempre deixava escorrer da boca e derramava na toalha.
O filho e a nora sentiam nojo ao ver isso. E a mulher reclamava porque a toalha ficava suja.
Assim ficou resolvido que o velho avô não iria mais sentar-se à mesa com eles; ele iria sentar-se atrás do fogão. Davam-lhe a sopa numa tigela de barro, e o velho ali sozinho olhava com grande tristeza para a mesa e seus olhos enchiam-se de lágrimas.
Certa vez, suas mãos trêmulas não conseguiram segurar nem mesmo a tigela, que caiu no chão, espatifando-se.
A nora repreendeu-o duramente; ele suspirou, mas não disse nada. Então ela comprou uma tigela de madeira muito barata e grosseira e ele passou a tomar nela sua sopa.
Um dia, ao jantar, quando o casal estava sentado à mesa e o avô atrás do fogão, todos ali reunidos tomando sopa, o netinho, que já tinha tomado sua sopa antes, brincava ao lado, juntava pedaços de madeira no chão.
— Que está fazendo, meu filhinho? — perguntou-lhe o pai.
— Estou fazendo uma tigela de madeira, — respondeu o menino — para dar de comer a mamãe e ao papai quando eu for grande.
Então os pais olharam um para o outro silenciosamente, depois romperam em pranto. Levantaram-se e foram buscar o velho, instalando-o à mesa; e daí por diante serviram-no sempre na mesa com eles, nunca mais se importando que ele deixasse a sopa escorrer da boca e cair na toalha.

(do livro “54 histórias que minha avó contava na kombi”)
http://www.asabeca.com.br/detalhes.php?sid=29032015151549&prod=6201&friurl=_-54-HISTORIAS-QUE-MINHA-AVO-CONTAVA-NA-KOMBI-_&kb=1073#.VeL1iPlVikp

domingo, 23 de agosto de 2015

O viajante imaginário

                O Livro do desassossego (PESSOA, 2005) foi atribuído por Fernando Pessoa ao ajudante de guarda-livros Bernardo Soares, uma personalidade literária ou um seu semi-heterônimo, de acordo com as palavras do próprio poeta, em carta ao amigo João Gaspar Simões, datada de 28 de julho de 1932. Diz o poeta: “É um semi-heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afetividade.”. O Livro, assim como grande parte da obra de Fernando Pessoa, só se arranjou em livro após a morte do poeta. Constitui-se num amontoado fragmentário de pensamentos, grande parte sem data, escritos em prosa ao longo de mais de duas décadas (1910-1935) da vida do poeta (Fernando Pessoa). Nele, o autor (Bernardo Soares) ora resgata seu passado ora comenta seu cotidiano com seus insignificantes incidentes e, com freqüência, discorre sobre questões filosóficas e psicológicas, todo ele impregnado por um absoluto cepticismo, por um extremo negativismo. Admitiu mais do que um arranjo dos fragmentos, em função do critério classificatório adotado pelo organizador do texto, mas, independente da disposição adotada, alguns grandes temas, inerentes a toda obra pessoana, podem ser identificados: a busca frustrada de uma identidade, as agruras do amor, o sofrimento e a alegria da criação literária, o isolamento, a oposição entre o real e o imaginário.   
              Dentro do conjunto temático que trata da oposição entre o real e o imaginário um tema particular, o tema da viagem (MERQUIOR, 1989:30), pode ser destacado. Não viagem real, concreta, mas viagem imaginária, não-viagem, com conotação de sonho. A transmutação do real em simbólico pela imaginação.
              Confessa Bernardo Soares numa passagem do Livro: “Foi por um crepúsculo de vago outono que eu parti para essa viagem que nunca fiz” (LD, op. cit., p. 480, grifo meu). Mais ainda: “Eu não parti de um porto conhecido. Nem hoje sei que porto era, porque ainda nunca lá estive. Também, igualmente, o propósito ritual da minha viagem era ir em demanda de portos inexistentes – portos que fossem apenas o entrar-para-portos; enseadas esquecidas de rios, estreitos entre cidades irrepreensivelmente irreais  (idem). E continua: “Eu parti? Eu não vos juraria que parti. Encontrei-me em outras partes, vi outros portos, passei por cidades que não eram aquela, ainda que nem aquela nem essas fossem cidades algumas.” (idem). Caracterizado o espaço, que é o “não-espaço”, o autor fala do tempo, que é o “não-tempo” (a “não-viagem”, pelo “não-espaço”, no “não-tempo”): “Viajei. Julgo inútil explicar-vos que não levei nem meses, nem dias, nem outra quantidade qualquer de qualquer medida de tempo a viajar. Viajei no tempo, é certo, mas não do lado de cá do tempo, onde contamos por horas, dias e meses; foi do outro lado do tempo que eu viajei, onde o tempo se não conta por medida. Decorre, mas sem que seja possível medi-lo.” (idem, p. 409).
            A explicação para esse comportamento, podemos, talvez, encontrá-la, por exemplo, no fragmento (Fr.) 92 do Livro (op. cit., p. 120 e seg.):”Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior. ... Nunca pretendi ser senão um sonhador. ... Nunca desejei senão o que nem podia imaginar. ... A minha mania de criar um mundo falso acompanha-me ainda, e só na minha morte me abandonará ... alinho na minha imaginação, confortavelmente, como quem no inverno se aquece a uma lareira, figuras que habitam, e são constantes e vivas, na minha vida interior. Tenho um mundo de amigos dentro de mim, com vidas próprias, reais, definidas e imperfeitas.
              Para bem sonhar, para construir alicerces sólidos para o edifício dos sonhos, Bernardo recomenda que se adote atitude de desprezo pela vida “vivida”, concreta, real, e que se enalteça a vida “sonhada”, idealizada, imaginária. Deve-se assumir atitude de completa passividade, concentrar todo esforço na ausência de esforço, entregar-se a si próprio, deixar-se possuir por si próprio, fugir de todas as provocações materiais. Não agir: ser agido; não viver: ser vivido (LD, op. cit., p. 439-441).
            O repúdio de Soares pela viagem de fato e a adoção da viagem imaginária, a não-viagem, como ideal a seguir, podem ser compreendidos pelo desejo fortemente acentuado de dar primazia ao sonho em detrimento da realidade, ou em outras palavras, pela supremacia da imaginação criadora em relação às impressões colhidas do mundo exterior. Para tanto, é necessário operacionalizar um mecanismo de abstração permanente da percepção. Por força dessa capacidade de abstração, pode-se viajar no interior da viagem criada pela imaginação, quando, então, “o real se esquece de si mesmo para se deixar apreender numa forma sem formas.” (COELHO, 1987a). Viajar de fato é completamente inútil, pois para ver, basta imaginar. Ter que se deslocar para sentir revela fraqueza extrema de imaginação. O anseio de viajar não é outra coisa senão falta de fantasia. Essa primazia do sonho sobre a realidade é uma das idéias-chave contidas no Livro e expõe um dos vários Pessoas, aqui sob a máscara de Soares, encarnando uma postura literária decadentista (LIND, 1983).
            Na passagem do século XIX para o século XX, generaliza-se uma crise entre artistas e intelectuais em decorrência do comportamento da burguesia (então, plenamente instalada nos poderes constituídos da sociedade): sua frouxidão moral, sua incapacidade de encontrar meios para resolver o problema das desigualdades sociais mais e mais acentuadas e sua indiferença em relação às artes. Muitos pensadores, num movimento de oposição ao racionalismo positivista reinante, tentam encontrar saídas para essa crise pelas vias da intuição, da fé ou da arte. Instaura-se a descrença na ciência e o ceticismo invade os espíritos sensíveis. Esse movimento, que teve por fulcro a França, recebeu o nome de Decadentismo.
            O Decadentismo foi uma tentativa de reação, impregnada de um subjetivismo extremado, à falência da extremada “ideologia objetivista” do Positivismo que pretendeu atribuir à ciência o supremo poder de conseguir: dar explicação totalizante ao fenômeno da vida, destruindo as superstições religiosas; e estabelecer entre os seres humanos um convívio mais harmonioso. O Decadentismo contempla “um estado de ânimo de confusa perplexidade, um sentimento de crise existencial (que só se aprofundou no transcorrer do século XX e persiste até os dias atuais) atormentada por trágicas experiências de guerras, ditaduras, revoluções e também por descobertas científicas devastadoras (energia nuclear, e.g.)”. O desenvolvimento da psicanálise desvela uma nova dimensão do espírito humano: o inconsciente, com sua força obscura opondo instinto à racionalidade. O conceito de tempo deixa de ser apenas o de uma medida do transcorrer dos fatos e ganha dimensões subjetiva e psíquica. A irracionalidade, a animalidade do comportamento humano é posta às claras. Essas visões de mundo provocam nas artes, particularmente na literatura, verdadeira revolução, modificando radicalmente o entendimento, tanto no que diz respeito à forma quanto, ao conteúdo, do que é uma obra de arte.
               O artista decadentista considera que é impossível conhecer a verdadeira realidade das coisas pela experiência concreta, pela ação, pela razão, pela ciência; admite que a revelação do desconhecido, a revelação do mistério do mundo se dá pela intuição irracional e imediata. O artista decadentista acredita que a obra nasce não do intelecto, mas da profundidade do inconsciente do artista; daí, ser o sonho matéria-prima de escolha natural para alimentar o ato criativo. O artista decadentista rejeita a ação e evade-se para o mundo da imaginação; desiludido de tudo deixa-se dominar por pessimismo crônico e por tédio sem limite. O artista decadentista, porém, tem em alta conta a experiência estética; considera-a como detentora de valor absoluto e por meio dela busca o culto pleno da beleza com liberdade material e espiritual, fato que dá ao movimento tom aristocrático, em oposição à vulgaridade do mundo burguês.
   Bernardo Soares assume-se, plenamente, decadentista: “Sou ruínas de edifícios que nunca fora mais do que essas ruínas” (Fr. 61, p.95). “Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que há.” (Fr. 62, p.95). “O cansaço de todas as ilusões e de tudo que há nas ilusões” (Fr. 68, p. 100). “Penso se tudo na vida não será a degeneração de tudo.” (Fr. 86, p. 115). “Quando acabará isto tudo, estas ruas onde arrasto a minha miséria, e estes degraus onde encolho o meu frio e sinto as mãos da noite por entre os meus farrapos?” (Fr. 88, p. 117). “Há metáforas que são mais reais do que a gente que anda na rua.” (Fr. 157, p. 172). “Mais vale escrever do que ousar viver, ainda que viver não seja mais do que comprar bananas ao sol” (Fr. 170, p. 183). “Somos morte. Isto, que consideramos vida, é o sono da vida real, a morte do que verdadeiramente somos.” (Fr. 178, p. 189). “Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o sonho e o que a vida fez de mim” (Fr. 204, p. 210). “A ruína da influência aristocrática criou uma atmosfera de brutalidade e de indiferença pelas artes, onde uma sensibilidade fina não tem refúgio. Dói mais, cada vez mais, o contacto da alma com a vida. O esforço é cada vez mais doloroso, porque são cada vez mais odiosas as condições exteriores do esforço.” (Fr. 249, p. 244). “Não achei razão nem lógica senão a um cepticismo que nem sequer buscava uma lógica para se defender.” (Fr. 251, p. 246). “Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em todas as outras fés.” (Fr. 306, p. 289). “A energia para lutar nasceu morta connosco, porque nós nascemos sem o entusiasmo da luta.” (Fr. 306, p. 290). “Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes.” (Fr. 313, p. 294). “Todos aqueles acasos infelizes da nossa vida, em que fomos, ou ridículos, ou reles, ou atrasados, consideremo-los, à luz da nossa serenidade íntima, como incómodos de viagem. Neste mundo, viajantes, volentes ou involentes, entre nada e nada ou entre tudo e tudo, somos sempre passageiros, que não devem dar demasiado vulto aos percalços do percurso, às contundências da trajectória. (Fr. 455, p. 401).
  Este viajante decadentista é a antítese do intelectual futurista seguidor das idéias de Marinetti: antinomia passado-futuro; anti-esteticismo (o culto do feio); dessacralização da arte (quebra das fronteiras entre arte e vida); dinamismo; movimento; ação; força; violência; radicalização de posições; na literatura, a linguagem refletindo os novos tempos de domínio da máquina, do movimento, da velocidade, abrindo-se ao visual, ao acústico, subvertendo a sintaxe tradicional.
  A relação do ser humano com um mundo modificado pela indústria, pela máquina, pela velocidade, pelas facilidades de comunicação e transporte modifica-se radicalmente. No modernismo, movimento de vanguarda, instaurado nos primeiros anos do século XX, o qual, dentre outros tantos ismos, engloba o futurismo, o primado é a vivência, o imediato, a visão dinâmica para exprimir a força e a totalidade incoerente do real. O anseio deve ser uma atitude enérgica, vibrante, cheia de admiração pela vida, pela matéria e pela força.
   Em Portugal, tal qual ocorre com outras vanguardas europeias, o modernismo, e de modo particular, o futurismo, rompe com a tradição, e de modo especialmente agressivo com o saudosismo. “No entanto – o que é uma diferença significativa – o modernismo português revela uma dupla tendência: se por um lado se abre às novas estéticas, mantém por outro lado uma linha que poderemos chamar decadentista (grifo meu).” (GERSÃO). Desse ponto de vista singular, a hiperexcitação da vida moderna futurista voltada para o otimismo, para o dinamismo, para a ação, criando um mundo frenético, vibrante, deslumbrante tem uma outra face, a da decadência. A uma vida intensa e progressista conjugam-se aspectos característicos de decadência. A volúpia, o progressismo da vida moderna acaba gerando no ser humano uma doença: o mal de toda esta complexidade de viver. “Deste modo, para Pessoa, a arte moderna deve cultivar serenamente o sentimento decadente ...” (GERSÃO, op. cit.).
    De acordo com ROCHA (1992), Bernardo Soares, decadentista de carteirinha, apresenta, ao afirmar de modo mais insistente sentimentos e estados de tédio, cansaço, desassossego, sono pacificador, repulsa da quotidianidade da vida, e evasão pelo sonho, um sintoma de inadaptação ao real que força a uma retirada decadente para o solipsismo. O Livro do desassossego representaria a busca do autor em exprimir “diaristicamente” seu egocentrismo. Esse centralismo autobiográfico traz a marca inerente de uma produção narcísica. Bernardo Soares, recolhido solitário em seu modesto quarto na Baixa lisboeta, entrega-se de corpo e alma à sua escrita e constrói o livro da solidão perfeita, sideral, sem remédio, o diário da total incomunicação (COELHO, 1987b, citando Eduardo Lourenço). Mas, embora Bernardo insista em seu isolamento cheio de tédio e de indiferença ao mundo real, seu olhar ávido capta tudo, sua mente arguta filtra tudo e sua pena célere tudo registra. “Assim, a cidade (Lisboa), enquanto espaço activo e exterior de uma tríade (Eu-quarto-cidade), entra pela janela entreaberta e se transforma no motor, estímulo e tema constante duma obra – por contágio metonímico, por um processo de propagação em que as ondas acabam, em última análise, por refluir no espaço acanhado e infinito, vazio e total do Eu.” (BARRENTO, 1987).
  Para Leyla Perrone-Moisés, na introdução do Livro do Desassossego (PESSOA, 1986): “Bernardo Soares descrê da razão, da ciência e busca valores que possam regenerar esse mundo que ele considera em decadência ... tende para um ceticismo e uma abdicação radicais. Não acredita nem em Deus nem no Homem ... Aristocrático, esteta, olha de cima e de longe as agitações sociais e políticas. Repudia “a atmosfera de brutalidade e de indiferença pelas artes” que a sociedade burguesa criou. Rejeita a violência das guerras e revoluções:“Dói-me na inteligência que alguém julgue que altera alguma coisa agitando-se.” Diz ainda a professora que: “Como em tantos poemas de Pessoa “ele mesmo” ou de Álvaro de Campos, Bernardo Soares se vê como Rei sem reino” (op. cit., p. 18). Eduardo Prado Coelho (1984) denomina essa disposição de “sintaxe do sem”: sofrer sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem raciocínio, “como a possessão por um demônio negativo, um embruxamento por coisa nenhuma. e, então, podemos completar: viajar sem viajar. Bernardo Soares é um viajante imaginário.
  Mas, afinal, o que isso tudo poderia, eventualmente, significar? Talvez, isso tudo signifique, na verdade, só fingimento. A arte suprema de fingir. No latim, vamos encontrar o verbo transitivo fingo, is, ĕre, finxi, fictum, cujo significado primitivo é o de modelar, modelar em barro, esculpir uma forma, figurar, reproduzir os traços; seu campo semântico amplia-se depois e ganha os significados, também, de: representar, criar, inventar, imaginar, compor (uma obra literária), dissimular, fingir. Do radical do supino fictum deriva fictio, onis (s.f.), a ação de fingir, a ficção, a criação imaginária; fictum, i (s.n.), a mentira; e fictum (adv.), falsamente, fingidamente.
  Fernando Pessoa leva ao paroxismo o fingimento. Fingit omnia. Finge a obra, condição que podemos considerar normal, óbvia até, em qualquer ato criativo literário ficcional, mas finge ainda mais. Finge, também, explicitamente, o criador da obra. Finge duplamente. É um fingidor de 2º grau.  Esse duplo fingir reforça o conceito de que um dos principais caracteres da literatura é ser eminentemente ficcional. Porém, este duplo fingir não resolve (pretenderia, porventura, o poeta fazê-lo?) a aporia para a eterna, e talvez inconciliável, questão da não veracidade dos sentimentos do poeta (autor), como pessoa física, diante dos argumentos do poema (obra), uma vez que: “O poeta é um fingidor (e) finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que (contudo) deveras sente”. O autor é uma persona que não deve ser confundida com a pessoa do autor, pessoa essa, porém, que sempre acaba deixando algum traço genético naquela persona. 
  Fernando Pessoa finge-se Bernardo Soares, um fingidor de viagens. O fingido viajante Bernardo, metaforizado de autor real, realiza imaginárias viagens que poderiam ser assumidas como metáforas do concreto fazer poético. Fernando, sob a máscara de Bernardo, foge da realidade (concreta) e cria, pelo fingimento, pela ficção, pela literatura, outras realidades (imaginárias). Ao Fernando, quiçá, possamos atribuir-lhe um pensamento (paródico do popularizado pensamento do ilustre filósofo seiscentista): Fingo ergo sum.        



BIBLIOGRAFIA

BARRENTO, João (1987) – “Figuras da modernidade na poesia urbana: de Baudelaire a Pessoa” in: O espinho de Sócrates – expressionismo e modernismo. Lisboa, Editorial Presença, pp. 85-101.
COELHO, Eduardo Prado (1987a) – “Pessoa: o viajante do inverso” in: A noite do mundo. Lisboa, RN-CM.
______________________ (1987b) – “Pessoa, o sorriso e o desastre” in: A noite do mundo. Lisboa, RN-CM.
______________________ (1984) – “Pessoa: lógica do desassossego” in: A mecânica dos fluidos – literatura, cinema, teoria. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, pp. 21-46.
GERSÃO, Teolinda – “Para o estudo do futurismo literário em Portugal” in: Portugal futurista. 2ª. edição facsimilada. Lisboa, Contexto Editora.
LIND, Georg Rudolf (1983) – “O Livro do Desassossego – um breviário do decadentismo” in: Persona 8, março, Porto, Centro de Estudos Pessoanos, pp. 21-27.
MERQUIOR, José Guilherme (1989) – “O lugar de Fernando Pessoa na poesia moderna” in: Colóquio Letras, mar-abril.
PESSOA, Fernando (2005) – Livro do desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Org. por Richard Zenith. São Paulo: Companhia das Letras, 2ª. ed.
________________ (1986) – Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Seleção e introdução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo, Brasiliense, p. 19.
ROCHA, Clara (1992). Máscaras de Narciso. Estudos sobre a literatura autobiográfica em Portugal. Coimbra, SN.

(em “Ensaios Desnecessários” – inédito) 



quarta-feira, 19 de agosto de 2015

SINOPSE (NOVO LIVRO)


A protagonista da história por fatalidade, ainda jovem, colocada à beira do túmulo, decide confessar à filha, na época ainda uma criança, por meio de cartas a serem resgatadas quando a menina atingisse a maioridade, um segredo atormentador sobre seu comportamento conjugal, cujo afloramento poria fim talvez a tantas especulações feitas desde então envolvendo sua melhor amiga e o esposo desta, isso, é claro, a dar-se crédito à fidedignidade dos documentos revelados.

No livro "A confissão de Sancha"

domingo, 16 de agosto de 2015

META FÍSICA DO AMOR

          Mas afinal o que é vida plena de amor? Cheia de amor? E quando eu ficar cheio do amor? Porque tem hora que a gente fica cheio. É! De saco cheio. De tudo e de todos. E aí como é que fica? Amar ao próximo como a si mesmo! E se eu estiver de bode, do jeito que nem eu me aguento? E se o próximo ficar viscosamente próximo?
Vou ter de pensar melhor no assunto...

(em “Crônicas Anacrônicas – Grotesca Filosofia Mediocridade Sublime (inédito)) 

domingo, 9 de agosto de 2015

NA FILA DO HOSPITAL PÚBLICO

Na fila do hospital público
uma pequenina pinta preta
aparecida na panturrilha direita
de um dos milhões de modestos cidadãos
que abundam pela vastidão de nossa terra
enquanto aguardava sua vez de ser talvez examinada
por algum eventual médico plantonista
provavelmente
por não ter nada melhor para fazer
por mera distração ou por puro exibicionismo
resolveu mostrar seus dotes de metamorfismo
e virar um voraz cancro pustulento
que comeu as duas pernas os braços o tronco e a cabeça
do mencionado humilde compatriota
paciente
a espera da chamada do seu número de senha


(do livro “Poesia... Afinal pra quê?”)

domingo, 2 de agosto de 2015

Manuel e Maria

Manuel era sambista e morava no morro num barracão sem numero. Para o Manuel de nada adiantava a paisagem ao longe, a beleza da baía, a linha do horizonte, pois o mais distante que o olhar do Manuel conseguia alcançar não por opção, mas por necessidade era o beco escuro por construção não por natureza, escuro mesmo em dia claro na hora de sol a pino. Uma noite bebendo no bar do Bira conheceu Maria. Não a Maria da Graça. Nem a Maria Adelaide. Nem a Maria das Neves. Muito menos a Maria Cândida. Era a Maria Elvira, prostituta sifilítica, dermatite em todos os dedos dos pés e das mãos, dentes em petição de miséria.
Manuel nessa noite bebeu, cantou, dançou. Não se sabe se a alegria do Manuel era alegria de fato ou se era alegria disfarçando melancolia, alegria de desespero. Mas o fato é que Manuel nessa noite bebeu, cantou e dançou. Dançou primeiro em sentido denotativo, depois em conotativo, graças à Maria Elvira.
Maria Elvira além de puta era também filha-da-puta. Quando acabou a bebedeira no bar do Bira na subida do morro num trecho propício pro ato aproveitando o estado zambeta do sambista provocado pelo abuso etílico, sem nem piedade (ele nem pôde dar ), bem no mi-ocárdio, com uma -cada certeira, sol-apou o -caio desifeliz; privou-o de sentidos e de inteligência (ele si fodeu) só pra roubar os últimos deiz real do bolso do desgraçado.
Maria Elvira com a ajuda do namorado, que era coveiro do cemitério central, cavou com as unhas compridas, com os dentes podres, uma cova funda, funda o suficiente pra acolher o corpo do morto. Depois atiraram o defunto lá dentro e jogaram terra por cima.
Manuel lá de dentro do fundo da treva do chão da cova ouvia ao longe a vozinha sumida da Maria Elvira dizer pro coveiro que ela fazia tudo que ele quisesse, dizer insistentemente que ela fazia tudo que ele quisesse porque ele era o único amor da vida dela. Como ele nada dissesse a mulher queixava-se do silêncio do amante dizendo que ele já não gostava mais dela.
Manuel, aborrecido com aquela lengalenga, decidiu aceitar o castigo imerecido, não por fraqueza, mas por comodismo no tormento mais fundo do fundo da cova, pois se sentia cansado e como já estava deitado dentro da noite sem cor virou de lado e foi adormecendo nos braços do seu anjo da guarda sorrindo sem medo da chegada afinal da indesejada das gentes sussurrando em seu ouvido direito que a vida talvez não valia a pena a dor de ser vivida.


(do livro “Contos Medonhos”)