domingo, 31 de maio de 2020

Nossos nós

estes nós
que o tempo aflito
não desata
engastam nas costas
sem prazo
este arreio
que cala os ódios no peito

pensos contratos
enganos tantos
armadilhas dispostas
em cada palmo
da vasteza do mundo

perdidos
buscamos guarida
encontramos amiúde
morada sem beiral
paredes sem prumo
abrigo assombrado
para aí ficarmos
na espera do nada

domingo, 24 de maio de 2020

Otimista de menos

todo esse horror ao meu redor
me dá calafrios
que percorrem a espinha
da nuca ao rabo
porejando suor no rego dos glúteos
olho para trás
morada das sombras do passado
para mim tempo de amarguras
não sinto saudade
olho para frente
onde dizem vive a esperança de tempos melhores
procuro me imbuir de bons propósitos
porém sou arrastado pela inquietude
vejo o mar de lodo se agigantando adiante
não consigo ter a ingenuidade de enxergar diferente
talvez devesse usar máscaras melhores
deixo de lado por instantes o escárnio
e faço um esforço para minhas entranhas estéreis
ruminarem toda essa pasmosa pobreza
todavia o fardo é demasiado pesado
cai sobre mim um grande cansaço
meu consolo é que um dia tudo isso perece

domingo, 17 de maio de 2020

Nós outros

no restaurante por quilo
frente a frente à mesa
eu e você tranquilos
comendo a sobremesa
remexemos
em nossos celulares
com ares 
aparentemente
ausentes

se alguém olhasse
pra nós por instantes
eventualmente
talvez pensasse
que somos um casal normal
indiferente um para o outro

estaria porém pensando mal
pois cada um entretanto
estaria telefonando pro outro
para perguntar quem afinal
iria pagar aquela conta

domingo, 10 de maio de 2020

Milongas

a vida é feita de movimento
dança dos corpos no espaço
que se constitui dos corpos
e do vazio existente entre eles

o movimento possibilitou que o
homem inventasse a ideia de tempo
tempo que semelhante ao vento
passa levando o pó da estrada

eu que penso ainda estar vivo
sendo um corpo feito de pó vou
levado pelo irreversível tempo
com meus acertos e contratempos

domingo, 3 de maio de 2020

Cercilho

a linha ascendente do gráfico
acompanha a montanha
de mortos insepultos
alguém me chama do escuro do poço
respondo o melhor que posso
voz rouca em meio à tosse oca
espera mais um pouco
logo mais também estou chegando
o sol é fraco para arder a bruxa que anda solta
e caminha sobre as águas de um mar cinzento
açodando manadas indóceis
à procura de vida vazia
sejam quais forem as consequências
enquanto mentes privilegiadas 
emanam halos de gasogênio
que exsudam conflitantes prognósticos agônicos
não tão piores quanto os que amiúde açodam
as costas de quem as tem largas
propícias ao açoite
de dia e de noite
o onipresente invocado evanesce
a tal ponto que respirar se torna implausível
o corpo frio é testemunha indefectível
de que a linfa humana apodrece