domingo, 31 de dezembro de 2017

Entranhas

desapega da superfície
verniz opaco desgastado
abandona o falso aparente
máscara de mil faces colada à cara

adentra as entranhas
poço escuro
chega ao fundo
âmago amargo

invade as entranhas
perscruta as entranhas
remexe as entranhas
estranhas as entranhas?

bamburra as entranhas
separa a ganga
elimina o estéril
colhe o ouro tão raro

domingo, 24 de dezembro de 2017

Drama caipira

não da imortal tragédia clássica
em remoto tempo
nas longínquas terras tebanas acontecida
tratam estes versos mas
sim de perecível comédia caipira
em tempos atuais
nas vizinhas terras taubateanas imaginado
porém aqui trama semelhante
àquela distante segue adiante

nos primeiros capítulos da novela
o antigo chefe qual laio a história revela
perdeu o posto de comando esse último
abatido ao cruzar perigoso desfiladeiro
por abandono de cargo o primeiro
nada tem ele a reclamar que fique claro
coube ao infeliz final merecido
o oráculo para ele foi cumprido
todos reverenciam agora
o novo chefe empossado

entretanto para se saber o desfecho deste drama
é preciso acompanhar o prosseguimento da trama
mais dia menos dia deverão ser revelados
os destinos do édipo tupiniquim
e da moderna nada casta jocasta enfim

domingo, 17 de dezembro de 2017

De re metallica

há dias como metal líquido
fluindo ligeiro que preenchem
todo o molde das horas sem falhas

outros como metal amolecido
ao fogo dos fatos que forjam
em persistente tarefa a passagem do tempo

e há aqueles como duro metal
submetido ao incessante frio martelar dos ponteiros
que se vão encruando a ponto de querer arrebentar

domingo, 10 de dezembro de 2017

Corpo

pele
sobre a carne
carne
sobre o osso
osso
fosso de mim
estrutura dura
cerne do soma

cérebro
novelo convulso
caos pastoso de nervos
desordem de anseios
fonte de prazer e dor
poço de ideias
estrutura mole
cerne do sema

soma com sema
corpo vivo
pasto de vermes

soma sem sema
corpo morto
antepasto de vermes

domingo, 3 de dezembro de 2017

Clichê

ao amor não cabe medida
é coisa incontível incontida
já ensinou o poeta maior que amor
é ferida que corrói curando salva matando

amor que é amor faz gemer sem causar dor
e extravasa e reprime e solta e abafa o grito
dá a vitória sempre ao perdedor
ignora os limites do infinito

amor tem horror a preconceitos preceitos conceitos
amor que é amor é pra ser aceito de qualquer jeito
só recomenda nunca se deixar de lembrar
viver sem amar é viver para salgar o mar

domingo, 26 de novembro de 2017

Cartema ao poeta Manoel

Estimado bardo:
Muito me orgulha
que nossa querida língua
conte com tão insigne figura
como a sua
poeta criador
de tantos e tão belos poemas
que servem para engrandecê-la ainda mais
como expressão da cultura do nosso povo.

Embora de certa forma
constrangido pelo pudor
sou compelido pela vaidade
a confessar-lhe que
ouso ter veleidades poéticas.
O que trocando em miúdos significa dizer que
rabisco meus versinhos.
E completo a confissão lhe informando que
sua poesia é um de meus paradigmas.
Ah! caro Maneco (perdoe se abuso da intimidade)
como eu gostaria de fazer poesia igual a sua.
Há momentos em que chego até a
sentir inveja de você.

Ninguém é capaz de falar
tudo do nada
com tão
sábias ignorãças
como você.
Quisera eu saber a seu modo
“apalpar as intimidades do mundo
usar palavras que ainda não tenham idioma
repetir repetir até ficar diferente
descobrir que as coisas que não têm nome
são mais pronunciadas por crianças
aprender a escrever o cheiro das árvores
entender que poesia é voar fora da asa
errar bem o nosso idioma
fazer o nada aparecer
ser lido pelas pedras
ter palavras que sirvam na boca dos passarinhos
não gostar de palavra acostumada
parecer com nada parecido
não servir mais pra pessoa
estar em eternidades.”

Então eu leio e leio de novo
depois releio e releio de novo
os seus versos
pra ver se fica dentro de mim
pelo menos algum resquício
que sirva de chama inspiradora
mas qual o quê tudo o que sobra é nada!
Vai ver que sou muito duro de molejo
não tenho jeito pro negócio.
Mas também tem uma coisa sou um cara turrão
não desisto fácil não.

Fiquei sabendo um dia desses
assistindo um documentário na televisão
que você
além de exímio criador de versos
é também um excelente criador de gado.

Tive então uma ideia que
talvez pudesse me ajudar
a achar minha inspiração.

Decidi que devia comer carne de boi
criado em suas terras.
Rodei os açougues aqui da capital
até que por fim
encontrei o que queria.
Comprei logo a peça inteira
levei para casa e pedi pra cozinheira
ir preparando ao longo da semana
das mais diversas maneiras
crua fatiada bem fininho
moída pra fazer bolinho
frita
assada
ensopada
tudo com os mais apetitosos temperos
pra minimizar qualquer chance de erro
e passei a comer sua carne Manoel
todos os dias
no almoço e
no jantar.

Apesar dos meus esforços
ainda que possa parecer ignorãça
de minha parte
até agora
infelizmente
nada.
Não consegui escrever sequer
um poemelho
que fosse
uma estrofe
que prestasse
um verso
que chegasse aos pés dos seus.
Mas não tem importância.
Ainda não estou pensando em desistir.
Vou continuar tentando.
Lendo seus livros e
comendo sua carne.
Para minha sorte e alegria
as duas coisas são de primeira!

domingo, 19 de novembro de 2017

Briga de foice

o poeta
esgravata
o poema
desbarata
o poeta
cata
o poema
desacata
o poeta
aparata
o poema
achata
o poeta
contata
o poema
delata
o poeta
relata
o poema
maltrata
o poeta
trata
o poema
arrebata
o poeta
reata
o poema
empata
o poeta
resgata
o poema
destrata
o poeta
aquilata
o poema
enlata
o poeta
arremata
o poema
sucata
o poeta
formata
o poema
mata
o poeta

domingo, 12 de novembro de 2017

Boa lição de vida

embora a tivesse conhecido apenas há pouco
ambos em idade avançada ela mais que eu acredito
me presenteou com uma boa lição de vida
possibilitou que estivesse junto dela naquele leito
num momento tão importante de sua vida
no primeiro instante de sua morte

domingo, 5 de novembro de 2017

Beleza pura

prometo de hoje em diante
não ser mais pessimista
este sujeito mal-humorado
implicante que em tudo vê defeito
vou deixar a ironia de lado
e enxergar o lado bom da vida
vou olhar este vasto mundo
imundo
com olhos de brandura meigos de ternura
vou achar tudo beleza pura

quando eu encontrar um bando
de crianças famélicas
sujas maltrapilhas abandonadas
mendigando pela cidade
vou achar uma beleza
e pensar em contrapartida
“mas também tem um montão
de criança bem tratada bem alimentada
que frequenta escola cara e usa roupa de grife”

quando eu passar por uma
das centenas de favelas que pululam
aos quatro cantos desta magnífica metrópole
com seus milhares de barracos ao estilo gaudí
paredes feitas de madeira velha e pedaços de papelão
piso de terra batida teto de restos de lona plástica
amontoados uns sobre os outros
em tremenda promiscuidade
fedor de cocô no ar exalando
de esgoto que escorre aberto ao céu
vou achar uma beleza
e pensar em contrapartida
“mas também tem um montão
de gente que mora em casa de alvenaria
com todo saneamento básico
sobrado geminado uns
sobrado semi-isolado outros
alguns em
sobrado isolado dos dois lados
ou apartamento bem montado
tem gente até que mora
bem acima do inferno do rés do chão
lá no alto quase dentro do céu
em cobertura milionária
de não sei quantos mil metros quadrados”

quando eu andar distraído desavisado
por rua deserta ou mesmo movimentada
e aí ter a oportunidade de ser abordado
por um ou mais laboriosos cidadãos
a pé de carro ou de motocicleta
sem muita noção de boa educação
com um baita revólver na mão
apontado bem para o meio da minha cabeça
solicitando que eu entregue minha carteira
vai ser legal à beça
vou achar uma beleza
e pensar em contrapartida
“até que tive uma baita de uma sorte
poderia ter sido levada também a vida
por bala mancomunada com a morte
porém foi levado apenas o dinheiro
fruto do trabalho de um mês inteiro”

quando eu caminhar ao longo das margens
dos rios córregos ribeirões que cortam o
sagrado solo desta imensa capital do estado
e encontrar principalmente depois de boa chuvarada
flutuando sobre as águas escuras cheirando à bosta
milhares de garrafas plásticas de embalagem
e densa espuma de algum produto tóxico
competindo pra ver quem é que consegue
cobrir mais área de superfície
vou achar uma beleza
e pensar em contrapartida
“o ser humano é mesmo genial
primeiro faz água pura cristalina cheia de vida
virar um líquido fétido podre morto
depois usando o poder de sua tecnologia
volta a transformar
uma verdadeira merda fluida
de novo em prometida água potável
própria pra se beber ou ao menos se lavar”

quando eu me encontrar perdido
no meio da multidão que invade
shopping centers supermercados
parques clubes jardins
restaurantes bares lanchonetes
teatros cinemas casas de shows
consultórios ambulatórios hospitais
ônibus trens aviões
nos fins de semana
nos meios de semana
nos inícios de semana
vou achar uma beleza
e pensar em contrapartida
“já imaginou se não tivesse todo esse povaréu
como seria triste nossa vida
quão terrível nossa solidão
ia faltar tanto calor humano”

quando eu me pegar preso
num destes puta congestionamentos
do caótico trânsito urbano de veículos
de manhã indo para o trabalho
de noite voltando pra casa
durante o dia rodando daqui pra lá de lá pra cá
ou nos fins de semana e nas vésperas de feriados
indo pro litoral pra enfrentar nas padarias
fila pra comprar leite pão e cigarro
pegar micose na areia da praia
ingerir uns coliformes fecais a mais
ao tomar agradável banho de mar
vou achar uma beleza
e pensar em contrapartida
“pelo menos quando eu chegar vou poder relaxar
beber uma cervejinha assistindo ao meu time jogar
se a esposa se lembrou de botar pra gelar
se as crianças tiverem ido mais cedo pra cama
se a sogra não resolveu dar as caras pra aporrinhar”

é por essas e por outras que doravante
posso até jurar por deus se quiserem
conforme prometi acima
não serei mais pessimista
nem menos

domingo, 29 de outubro de 2017

Amor sublime amor

o amor que conta
definitivamente não é o primeiro
que deve estar sepultado nas catacumbas da memória
o amor que conta
definitivamente é o último
que deve estar vivo ativo operante
se o primeiro resistir
e conseguir ser único
valerá como último

domingo, 22 de outubro de 2017

domingo, 15 de outubro de 2017

A verdade nua e crua

a verdade nua e crua
ser de mentira
representação grotesca do nada
nada vezes nada noves fora zero
ficção desfigurada do vazio do vácuo
blefe da vida
perdição pelas trilhas de campos estéreis
ofertório de sorrisos subservientes com insegura prepotência
compaixão regada a lágrimas semissecas
engodo do destino
qualquer ponto de vista leva a igual perspectiva
vice-versa com mesmo sentido
mentira de ser
a crua e nua verdade

domingo, 1 de outubro de 2017

Alea jacta est

o dado foi dado
ao que tudo indica
pra ser jogado
prova disso foi dada
pelo bravo general que
segundo dados não confirmados
depois de ter dado
pra alguns de seus soldados
demonstrando que valentia
e vontade de dar o rabo
podem conviver lado a lado
ao atravessar o rubicão
deixou nos anais da história
a frase famosa
alea jacta est
pra assinalar de maneira metafórica
sua decisão heroica que
lhe traria em primeira instância
momentos de glória mas que
lhe tiraria a vida em seguida
na ponta de punhal traidor

desde então até os dias de hoje
pra prestar homenagem talvez
a tão ilustre figura histórica
nas casas de jogo do mundo todo
funcionando na legalidade
ou na clandestinidade
a receita continua sendo adotada
porém de forma menos figurada
ao dar via de regra por meio de
um início alentador
a falsa sensação de vitória
para acabar logo depois
com a raça do mísero jogador

domingo, 17 de setembro de 2017

A dor não é doença


a dor não é doença a dor é sinal de doença

a dor doe sem dor pior

a dor não é para ser adorada a dor é para ser respeitada

a dor não é para ser ignorada a dor é para ser aplacada

a dor almeja nossa salvação a dor é uma bênção

uma bênção dolorida que quer tudo bem são

domingo, 3 de setembro de 2017

domingo, 27 de agosto de 2017

Antes agora


tomo-te tua boca de seda

sobre minha áspera boca

e quisera ter-te tomado bem antes

muito antes do agora tempo fugidio

e só pude tomar-te agora tão tarde

mas tomo antes agora do que nunca


tomo-te teu corpo de amante

sobre meu letárgico corpo

e quisera ter-te tomado bem antes

antes mesmo do início sempre

e só pude tomar-te agora tão tarde

mas tomo isso agora é o que importa


toma-me cola tua pele na minha

crava tuas mãos em meus músculos

faze meu corpo teu corpo

respira por mim meu sopro

alimenta meu ser com o leite

de tuas entranhas


toma-me ordena-me viver

faze-me rochedo imenso a teu lado

e deglute minha rude carnadura

antes que ela se faça dura agonia

e se desfaça em morte escura

agora que a vida se derrama encantada sobre nós

domingo, 20 de agosto de 2017

A perdição de Adão


em verdade em verdade

vos digo amigos

a perdição de adão

foi a imprudência

de ter comido

atrás da árvore da ciência

achando que era escondido

homem é mesmo trouxa

a pera de eva

que a mulher leva

guardada entre as coxas

domingo, 13 de agosto de 2017

Arremate


era uma casa modesta mas certa

vê-la transformada em mansão

um filho audacioso cobiça

o pai pródigo enguiça

o filho ouriça

o pai pródigo se afasta

o filho gosta

o pai pródigo some

o filho assume

o pai pródigo avaliza

o filho atomiza

o pai pródigo propicia

o filho dissocia

o pai pródigo invoca

o filho provoca

o pai pródigo apavora

o filho arvora

o pai pródigo volta

o filho desgosta

o pai pródigo ajeita

o filho desfeita

o pai pródigo desencrava

o filho aconchava

o pai pródigo luta

o filho oculta

o pai pródigo cala

o filho engala

o pai pródigo disponibiliza

o filho desincompatibiliza

o pai pródigo se escafede

o filho excede

o pai pródigo lamenta

o filho arrebenta

o pai pródigo deplora

o filho ignora

o pai pródigo cambaleia

o filho alardeia

o pai pródigo murcha

o filho incha

o pai pródigo morre

o filho recorre

o pai pródigo apodrece

o filho esquece

ali antes havia valores talvez

de importância desprovidos

daí deixou de haver o havido

nada daquilo vigorou mais

novos valores valeram depois

a casa modesta no prejuízo

frustrada futura mansão

levada a juízo
 
foi arrematada em leilão

domingo, 6 de agosto de 2017

Mercadores modernos da fé


usam boa lábia e língua afiada

uma desgastada retórica bitolada



empregam todos os meios de comunicação

ondas de rádio ao vivo e a cores na televisão



ludibriam a sofrida gente simplória

com aparência humilde a rigor finória



apregoam a extirpação de todo sofrimento

mediante extorsão de dízimo em pagamento



vendem fórmulas de felicidade

em templos pululados pela cidade



mercadejam sem pejo com a religião

usufruindo da boa-fé da população



acumulam fortunas escandalosas

passando por pessoas respeitosas



são os mercadores modernos da fé

pastores pés de bode fedendo a chulé

domingo, 30 de julho de 2017

A treva


em sua loca

funda toca

estreita pouca

a treva quieta

ali parada

ar de louca

paciente

espia

espreita

espera

o momento certo

de abocanhar

e triturar

em suas mandíbulas

tenazes rijas

a incauta vítima

distraída

presa fácil

que por ali

bem à frente

certamente

irei passar

domingo, 23 de julho de 2017

Cogito ergo...


de pé elevo a voz

brindo o progresso

que tanto sucesso

tem feito entre nós



arauto de verso

de pé quebrado

o chocho brado

oculta o inverso



fogo de queimada

água apodrecida

ar poluído

terra devastada



ó queridos fraternos

tudo gente boa

não é à toa

que está este inferno

domingo, 16 de julho de 2017

Recompensa


meio-dia fica a postos

já vêm a mesa está posta

improvisa o que almoçar

com as sobras do jantar



o inverno virou um inferno

convidado do efeito estufa

 no bolso do avental recolhe

o resto do fundo de garantia



essa máquina de sangue e ossos

não vai a chá da tarde de táxi  

uma vida rumo ao crepúsculo

vulgar tal qual a da massa



tetas caídas sem sutiã

vulva seca ao toque

em luta cega sem ego

pra conservar esse lar

domingo, 9 de julho de 2017

Único


o momento escorre pelos vãos do tempo
primitivo conceito oriundo do movimento
eterno mistério inescrutável para sempre
oculto por mais que a ciência tente o oposto

embora isso possa parecer estranho
à primeira vista destituído de sentido
caso se deixe os pensamentos fluir
soltos se afigura como coisa natural

limpo de corpo nem tanto talvez de alma
busco com sua somatória preencher meu
dia outro dia uma sequência em que mal
me reconheço morador de outras terras

suspiro profundo novamente acreditando
assim provar a minha existência em que
todos apesar de encadeados são sozinhos
ou em outras palavras cada um é único

domingo, 2 de julho de 2017

Progresso


aproveito a comodidade oferecida
pelo extraordinário desenvolvimento
que a microeletrônica tem atingido
e abro meu houaiss3 eletrônico na palavra
progresso
onde encontro
entre outras acepções
para o uso em sentido absoluto
o significado de
a evolução da humanidade
da civilização
modernização
meu aurélio século xxi
proporcionando igual comodidade
informa que
progresso
é “acumulação de aquisições materiais e de conhecimentos objetivos capazes de transformar a vida social e de conferir-lhe maior significação e alcance no contexto da experiência humana civilização desenvolvimento”
um dia desses
em visita a um dos sebos do centro por acaso
me caiu nas mãos um livro de fotografias
da minha cidade na primeira metade do século passado
folheando aquelas memoráveis páginas
enchi meus olhos de imagens incríveis
se comparadas ao estado atual da megalópole
me ative a uma série de fotos
tiradas em diversos pontos ao longo
das margens do rio tietê em seu trecho urbano
em particular algumas ali nas proximidades
onde hoje existe a ponte cruzeiro do sul
me encantei de ver
barcos a remo
disputando uma regata
um solitário pescador
de chapéu e colete
em um ponto da margem
retirando um peixe do anzol
com a vara de pesca sob as axilas
observado pelos ocupantes de um barco a remos
que navegava pelo meio do rio
um nadador em pleno voo
a partir de uma plataforma de madeira
num sensacional salto de anjo
audazes mulheres saindo das águas
ao término da primeira travessia
do rio a nado
realizada no ano de 1924
quando fechei o precioso livro documentário
divisei na estante de literatura brasileira
bem ali em frente o livro
“poesias completas” de mário de andrade
não resisti e abri na página 44
em que estava o poema tietê
do pauliceia desvairada
li
“era uma vez um rio...
.......................................................................................................................
as embarcações singravam rumo do abismal descaminho...
.......................................................................................................................
— nadador! vamos partir pela via dum mato-grosso?
— io! mai!... mais dez braçadas...
.....................................................................................................................”
sem saber bem por que
saí daquela livraria de livros usados
com o coração cheio de nostalgia e
passei a caminhar a esmo pelas ruas
quando me dei conta
estava sobre a ponte cruzeiro do sul
aturdido observei
o trânsito incessante
de cá pra lá e de lá pra cá
sobre os dois lados da ponte
o engarrafamento infernal
abaixo se estendendo a perder de vista
em todas as pistas da marginal
as motos costurando como doidas
os outros veículos
que se arrastavam como lesma
os olhos passaram a lacrimejar ao contato com
a fumaça dos escapamentos
apesar do controle oficial do ar
ouvi quase ensurdecido
a zoada dos motores e
as buzinas neuróticas
inutilmente
querendo abrir espaço no berro
olhei para aquele rio morto
encurralado na calha de concreto
construída com os bilhões financiados pelos japoneses
na tentativa vã de conter as inundações ribeirinhas
alto preço pago pela ocupação irresponsável do solo
com suas águas pútridas cobertas de
espuma tóxica
lixo
restos de
plástico
móveis podres
carniça
senti o fedor insuportável de merda
subindo daquele esgoto a céu aberto
e lembrei das fotografias antigas
há pouco vistas no livro do sebo
e não pude evitar de pensar
— caramba que situação deplorável
na minha cabeça ficou martelando
a pergunta que não queria calar
— será isso progresso? se for
que porra de progresso é esse?

domingo, 25 de junho de 2017

Delírio dominical


logo cedo a longa espera abominável espera

na sala de espera do consultório médico

porra é domingo e está superlotado de gente

não é possível esta cidade está

cada dia pior insuportável

ainda bem que tenho você pra me suportar

compreender amar

o arroz congelado descongelado no micro-ondas

requentado no forno convencional a gás

ficou duro uma merda

mas não importa o que importa é que estamos aqui

juntos nos querendo nos amando

comendo este arroz duro de merda

tomando este chardonnay importado argentino gelado

uma delícia você não acha acho que bom

depois vamos tomar um café vamos

a gente podia ir dançar

preciso cuidar das plantas

cheiro de mato cortado

cheiro de terra molhada

e no céu

o dinossauro quer te abocanhar

avanço empunhando minha espada

pra te defender é claro

não é necessário o vento amigo colabora comigo

transforma o dinossauro em sapo

que a moça donzela deve beijar

pra ele virar príncipe desencantado

a lua quarto crescente brilha no quarto

na sala na varanda

cresce seu brilho ao te ver pra ela olhar

olho daqui de cima a vida lá embaixo

e olho pra cima e acho que percebo

quanto sou arrogantemente insignificante

no banho o sabonete me transforma em espuma

e meu corpo imundo escorre

pelo ralo do box do banheiro

arrastado para o esgoto com a água do chuveiro

momentaneamente aqui neste ambiente

sou apenas espírito

perfume de magnólia artificial no ar

mais tarde de madrugada na cama

voltarei a me corporificar

não perdes por esperar

por ora devo armazenar bom estoque de cuspe

pra lubrificar o membro e poder melhor te penetrar

e então sim definitivamente me dissolver

me dissolver indefinidamente em ti

caramba esta grappa é mesmo danada de boa

domingo, 18 de junho de 2017

Velho tema novo


canto agora feliz bem docemente

com tal remanso e com tamanho agrado

meus desenganos foram dominados

o teu amor é a força que me sustenta



esse amor que tu me dás de presente

sendo íntegro sincero e delicado

traz alegria vem pleno de cuidado

generoso sempre nunca insolente



e nada mais a desejar me atrevo

se tanto assim mereço meu desejo

é também te amar pois quero e devo



unidos avancemos nesse ensejo

vamos juntos desfrutar todo o enlevo

dessa tal conquista é tudo que almejo


domingo, 11 de junho de 2017

Vi no velório


pelo piso frio de gastado granito

entre tênis botas sandálias sapatos

impassível às vozes veladas

vi no velório

uma ligeira formiguinha

movendo resoluta as patinhas

caminhava para um destino ignorado

ignorada pelos vivos distraídos

e até pelo morto dorminhoco

domingo, 4 de junho de 2017

A infâmia o tempo desvela


no pântano pestilento

que me vi envolvido

respiro ofegante

ar contaminado

pelo miasma ambiente

animais peçonhentos

rastejam ao redor

o ataque é iminente

querem certamente

envenenar meu sangue

a qualquer momento

o charco pode me tragar

me levando sem esforço

pro fundo de escuro fosso



na noite sem lua

vou cauteloso

é preciso estar atento

o inimigo é perigoso

vou destemido

sem atrevimento mas forte

não há por que temer a sorte



obrigo-me a ouvir

a eloquência do silêncio

no momento

a melhor palavra é a palavra não dita

mesmo que fosse bem dita seria maldita

hoje devo calar

nenhuma palavra

engolir em seco

domingo, 28 de maio de 2017

domingo, 21 de maio de 2017

Égalité fraternité


somos todos iguais

não não somos todos iguais

como podemos ser iguais um ao outro

se nem mesmo o eu que eu sou agora

não é mais igual

ao eu que eu era minutos atrás

logo de manhã ao despertar estava feliz da vida

por ter feito também feliz uma amigo visceral

meu velho intestino grosso

que todo dia já bem cedo quer se ver livre

das sobras do jantar da noite passada

e solicita que eu deposite esse subproduto

no vaso sanitário do banheiro do apartamento

depois fiquei tenso apreensivo

ao pensar nas contas que tenho de pagar

enquanto fazia a barba espantado

olhando no espelho feito um babaca

esta cara cada dia mais de bruaca

agora estou aqui frente à tela deste computador

sofrendo suando penando pra tentar alinhavar

as parcas palavras deste inútil poemelho pentelho

em que procuro mal dizer sem me desdizer

que não não somos absolutamente todos iguais

cada um é cada um

e como acabei de escrever

mesmo esse um não é um mas muitos uns

quem disser – todos devíamos ter o mesmo salário

ou é um bom salafrário ou é um grande otário

a ideia de acabar com a propriedade privada

que me desculpem os comunistas

não merece outro destino que a privada

pública ou privada

mas uma coisa se pode afirmar com convicção

embora não seja simples resolver a questão

não é justo alguém ter renda mensal de milhão

e tantos nem ter dinheiro prum mísero pão

é intolerável haver habitações das mais belas

e uma cacetada de promíscuas favelas

porque se não somos todos iguais

também não podemos ser tão desiguais

domingo, 14 de maio de 2017

Amor helmíntico


minha paixão por ti é tão intestina

que chego a sentir gana de ser

uma lombriga em teu abdome

quisera estar a todo o momento

no íntimo de teus pensamentos

na forma de um belo cisticerco

alojado ao lado de teu cerebelo

mas por mais que eu me mexa

tu não me dás qualquer atenção

sinto-me desprezada uma solitária

e bem que podia trazer-te prazer

vontade não falta crê é visceral

provocar-te deliciosa coceira anal

me transformando num ágil oxiúro

no duro este meu supremo ideal

domingo, 7 de maio de 2017

Cicatriz


marca deixada por uma lesão

sinal ou vestígio de destruição



lembrança persistente de um grande sofrimento

foi o que restou deste demorado relacionamento



queloide hipertrófico imune a tratamento

depende somente do transcorrer do tempo



para o corpo mostrar indícios de restauração

para a alma sentir sintomas de regeneração

domingo, 30 de abril de 2017

Vox populi


voz do povo voz de deus

diz o dito popular

querendo com isso dizer

que deus elegeu o povo

como seu porta-voz

a manifestação do povo

um número grande de gente

ligada por uma causa comum

representa coisa certa

pois é como se deus

assim quisesse se manifestar

e ele é onisciente afinal



com base nesse preceito

procuro tirar uma conclusão

dos resultados da última eleição



leio a ficha corrida dos candidatos

eleitos pelo povo para

o senado

a câmara federal

os legislativos estaduais

as câmaras municipais

olho também as fichas

por uma questão de equidade

do novo presidente

dos vinte e sete governadores

dos cinco mil e tantos prefeitos

e por mais que revire as ideias

na minha cachola cansada

chego sempre a igual resultado

deus deve sofrer coitado

pra nossa triste agonia

de irremediável afonia

domingo, 23 de abril de 2017

Elegia fracassal


à luz da dolorosa situação a que chegamos

tenho calafrios e escrevo um século depois

escrevo sentindo engulho atônito diante da feiura

disto tudo feiura desconhecida dos mais antigos

canto um canto parco estreito rouco

dos farrapos feitos a ferro fogo força

 

canto o presente e cantando o presente

também canto o passado e o futuro

porque o presente é presente do passado

e o futuro terá como passado o presente

futurismo enaltecido no sempre presente passado modernista

a par da modernidade que ruge range geme estruge ferra fere garroteia

e tem sido geradora e transmissora ao longo de décadas até os dias de hoje

de tantos suplícios que será então do nosso futuro? qual será nossa saída?

 

rrrr rodas e engrenagens sois eternas? não tendes mais fim?

maquinismos em fúria a espalhar corrosivo sêmen

em fúria fora e dentro de mim

a penetrar por todos meus poros

fazendo-me exalar mau cheiro

lateja-me a cabeça rrrr ruídos modernos

de vos ouvir demasiadamente sem cessar

e tenho a boca seca por vos querer cantar rrrr máquinas infernais

 

eia modo moderno de ser que exiges permanente mudança de modo de ser

sem tempo a perder para formar tradição trocar passou ser tradição

eia modo moderno de ser que criaste a fobia do novo e preferes o ter ao ser

eia mercado imperador absoluto e tirano

eia consumo eia consumo eia consumo eis a ordem geral

eia artes que vos banalizastes e também virastes mercadoria vítima de mercancia

eia artistas verdadeiros e verdadeiros picaretas que virastes farinha do mesmo saco

tudo se transforma em produto a ser consumido em coisa a ser adquirida

eia outro também te transformas em coisa a ser possuída para em seguida ser descartada

e se como disse a clarice eu sou o outro do outro então eu também me coisifico

e todos nós acabamos nos coisificando

 

ó megalópoles com vossas avenidas ruas praças viadutos túneis passarelas

apinhadas de todos os tipos de veículos apinhadas de todos os tipos de gente

todos os tipos de milhões de coisas moventes querendo passar ultrapassar

se esfregando se apertando se ralando se amassando aos encontrões

em crispações absurdas fruto de promíscua fúria inútil de ir e vir

e tudo acaba se arrastando quase parando

 

xô shopping centers substitutos hodiernos das catedrais do passado

acolheis em vosso regaço multidões de fiéis adoradores de mercadorias

fetiches em exposição permanente nas fachadas das vossas lojas altares

aparelhos eletromecatrônicos domésticos ou não aparelhos de barba fogões fornos geladeiras máquinas de lavar máquinas de secar ferros elétricos rádios televisores aparelhos de vídeo máquinas fotográficas filmadoras computadores gravadores escâneres telefones com fio sem fio celulares aparelhos de fax impressoras

aspiradores de pó enceradeiras aquecedores ventiladores condicionadores de ar torradeiras cafeteiras liquidificadores moedores trituradores espremedores acendedores exaustores purificadores batedeiras vibradores

figurinos da última moda roupas de grife milhares de modelos de calçados

coisas todas modernas coisas grandes pequenas originais banais úteis inúteis

por que pervertidamente vos enroscais à minha vista?

coisas coisas coisas coisas coisas que toda a gente quer comprar

quem tem necessidade de tanta coisa?

 

ah arranha-céus avançais para o alto apoiados em vossas garagens subterrâneas

massa de concreto armado milimetricamente projetado pela engenharia da especulação

cada vez mais e mais vos amontoais uns aos outros para abrigar amontoada crescente

massa de gente desamada quotidianamente deslocada pela economia da obrigação

dos apartamentos onde habitam para os edifícios onde trabalham e vice-versa etc.

 

hurra agricultura moderna com tuas supermáquinas de plantar irrigar colher debulhar

tua química agrícola com adubos sintéticos agrotóxicos e espécies transgênicas

acaso estás ao menos mitigando a fome crônica destes bilhões de famintos?

 

psiu medicina moderna teus aparelhos de diagnosticar dia-a-dia mais se sofisticam

tuas técnicas cirúrgicas e teus medicamentos dia-a-dia mais se aprimoram

mas novas doenças não cessam de se manifestar velhas doenças de ressuscitar

as filas para algum tipo de atendimento médico só fazem aumentar

os hospitais mais e mais são insuficientes

cada vez maior é o número de gente doente

 

olá comunicações por terra por água e por ar bons motivos tendes para essa pressa

importantíssima reunião? grande negócio? ou só um giro de breve regresso?

oi gigazilhões de informações é preciso que sejais informadas num picossegundo?

quase tudo não passa de cultura inútil notícia falsa ou fofoca de gente do submundo

 

oh propaganda & marketing eu me prostro a vossos pés

e vos reverencio por conseguirdes me fazer

acreditar em que não devia e a querer possuir o que não preciso

 

pô poluição da terra da água e do ar será preciso o fogo do inferno para vos liquidar?

ufa efeito estufa buraco de ozônio aquecimento global nada mal

xi extinção das calotas polares elevação do nível dos mares

arre finalmente o fim das florestas a morte dos lagos rios oceanos?

não demora o dia de não ter mais água pra correr pelos canos

eh-lá excelente herança vamos deixar para as futuras crianças

 

bum bombas mais e mais bombásticas capazes de destruir o mundo em segundos

eca sistema econômico fubeca tens o dom magnífico de produzir grandes riquezas

mui justamente concentradas nos bolsos privilegiados de uns poucos

à custa de muitos injustamente obrigados a chafurdar em imbatível pobreza

 

hupa-lalá democraticamente institucionalizadas corrupções políticas

hupa-lalá todos os tipos de extraordinárias violências e injustiças

hupa-lalá magníficas especulações nas bolsas de valores

hupa-lalá inteligentíssimas megafraudes financeiras

hupa-lalá apetitosíssimos juros bancários

hupa-lalá rentabilíssimo tráfico de armas

hupa-lalá lucrativíssimo tráfico de drogas

hupa-lalá show de esportes pela tevê

hupa-lalá show de notícias pela tevê

hupa-lalá show de fé pela tevê

hupa-lalá show de mediocridade pela tevê

hupa-lalá desenvolvimento

hupa-lalá desigualdade social

hupa-lalá progresso

hupa-lalá degradação ambiental

hupa-lalá

hupa-la

hup

glup

 

hip-hurra tudo isto tão maravilhosamente moderno supermoderno transmoderno

 

vrum vrum vrum vrum vrum vrum vrum vrum vrum vrum

fon fon fon fon fon fon fon fon fon fon fon fon fon fon fon

bi bi bi bi bi bi bi bi bi bi bi bi bi bi bi bi bi bi bi bi bi bi bi bi bi

trim trim trim trim trim trim trim trim trim trim trim trim trim

bip bip bip bip bip bip bip bip bip bip bip bip bip bip bip bip

pam pam pam pam pam pam pam pam pam pam pam pam

pein pein pein pein pein pein pein pein pein pein pein pein

poin poin poin poin poin poin poin poin poin poin poin poin

tik tik tik tik tik tik tik tik tik

tak tak tak tak tak tak tak

rrrrrrrrrrrriiiiiiiiissssssssssssssssssssskkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

pif paf pof puf puf puf puf puf puf puf puf puf puf puf puf puf

cof-cof cof-cof cof-cof cof-cof cof-cof cof-cof cof-cof cof-cof

ai ai ai ui ui ui dói dói dói dói dói dói dói dói dói dói dói dói

upa upa papapapapapapapapapapapapapapapapapapapaaaaaaaa

tsk tsk tsk

crash ash ash ash ash ash ash ash

xi iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii

big-bang

BUUUMMM?

domingo, 16 de abril de 2017

Desaprender de ser humano


o capital acumula
o poder corrompe
a justiça falha
a gente consome
a pobreza prolifera
a fome mata
a fumaça alastra
o calor aumenta
o gelo escorre
o oceano sobe
a floresta arde
a água seca
a vida vacila
o humano claudica
a luz pisca
o mal se espalha
a poesia encolhe


domingo, 9 de abril de 2017

A morte é a vida da vida


por mais que evolua a inteligência humana

por mais que progrida a ciência humana

embora a sabedoria humana

de uma maneira geral

não acompanhe esses eventos

provavelmente jamais o ser humano

consiga dar explicação cabal

do porquê do fenômeno da vida

vai daí que acabe apelando

ainda que em última instância

para alguma forma de teologia



pode especular acerca

da origem do universo

o big bang

a curvatura do espaço-tempo

os buracos negros

as galáxias as estrelas os planetas os cometas

do surgimento de vida na terra

do processo evolutivo das espécies

ao longo das longas eras

pode entender nos mais íntimos detalhes

como se dá a reprodução

seu ciclo biológico sua evolução

seus azares e seu fenecimento

mas por que existe vida

talvez nunca alcance a compreensão

permanecendo o fenômeno

para sempre um mistério

a menos que se aceite a ideia

de que o fato se deu por mero acaso

a partir de uma conjunção particular

acidental de partículas elementares

que passaram a evoluir para formas

cada vez mais e mais complexas



deixando de lado por ora

essas frouxas especulações metafísicas

sobre a justificativa da existência da vida

quiçá o que fosse

digno de apontamento

se merecesse esse direito

seria um fato óbvio ululante



a vida

por alguma razão

é um ato de criação

com a característica notável

de ter a vontade inabalável

de querer permanecer



a vida

trocando em miúdos

quer viver

e viver sempre

cada vez mais



a vida

para atingir seus fins

criou as criaturas

vegetais e animais

com a propriedade de perenizar a vida

por meio do processo de reprodução

o que resultou em complicação



a vida

percebeu a enrascada

em que se meteu

ao querer se eternizar por meio

da reprodução das criaturas

criara um moto-perpétuo no qual

as criaturas cresceriam indefinidamente

aumentando as necessidades de meios

de sobrevivência de forma insustentável



a vida

procurou uma saída

para o impasse

que ela mesma criou

inventou então o fenecer

para dar cabo das criaturas



a vida

com tal profilático processo

de renovação de estoque

denominado também morte

vai-se mantendo viva

domingo, 2 de abril de 2017

A perdição de Eva


em verdade em verdade

vos digo minhas amigas

eva encontrou a perdição

por ter dado agasalho

à cobra gulosa de adão

deus tinha sido bem claro

no paraíso nada de bandalho

ela vacilou e teve de pagar caro

não devia ter subestimado o eterno

onipresente voyeurismo divino

de presente pelo seu desatino

ganhou o terráqueo inferno

domingo, 26 de março de 2017

Vide bula

uma possível receita experimental

para tentativa de vida talvez legal

eu sou um outro dos outros até o fim

os outros devem ser não eus em mim

domingo, 19 de março de 2017

Carta ao poeta


Ao Sr. Carlos D. de Andrade

Círculo Primeiro – Limbo – Ala Luminosa

Prezado Poeta,

Lendo o livro de sua autoria, Amor Natural, deparei-me com o poema: “Quando desejos outros é que falam”.

Terminada a leitura senti forte desejo de lhe falar. É por isso que lhe escrevo.

Claro que há quem aprecie. Às vezes até bastante. Quanto a isso não tenho preconceito. Conforme as circunstâncias até aceito.

E suas palavras, poeta, são tão inspiradoras: Ocultas melodias ovidianas! Dúlcida paragem!

É lindo. É belo, belíssimo. Mas tem uma coisa, bravo vate, depende de quem é o buraco. Depende de quem é que entra com o apito.

Porque uma coisa é certa: pimenta no rabo dos outros é refresco.

Quando o referido membro longo, digamos a título de ilustração, 160 milímetros, calibre 38, e duro, bem duro, despetaladas as pétalas do ânus, vai penetrando, mesmo bem lubrificado e lentamente, avançando e recuando pela via estreita, como o senhor tão poeticamente introduz, creia-me caro trovador, dói pra cacete.

Por mais que o fiofó esteja calejado. Por mais que a rosca esteja espanada.

Sei, não de ouvir dizer, mas por experiência própria e senti vontade de lhe testemunhar.

Por ora é só.

Atenciosamente,

Sua fã incondicional,

Maria do Perpétuo Socorro.

domingo, 12 de março de 2017

Consumo


consumar

consumismo

consumindo

consumados

consumíveis

consumição

consumada

consome

consumidor

consumação

consumista

vade retro!

consumado

consumidor

consummatum est!

domingo, 5 de março de 2017

A gente de dinheiro e o lixeiro


a gente de dinheiro gera bastante lixo

o lixeiro cata o lixo gerado pela gente de dinheiro

a gente de dinheiro nem liga pro lixo que gerou

o consumismo da gente de dinheiro é extraordinário

a gente de dinheiro vai ver acha que gerar tanto lixo

é coisa mais que natural supranatural legal é um luxo

mostra o poder do dinheiro que a gente de dinheiro tem

o lixeiro não consegue nem de longe ter ideia

de quanto é preciso gastar pra tanto lixo gerar

o lixo gerado pela gente de dinheiro

é recolhido de madrugada pelo lixeiro

e jogado no lixão na periferia da cidade

pra ser disputado com unhas e dentes

por um bando de seres semi-humanos

em acirrada competição com cães vadios ratos e urubus

um dia não sei quando

a gente de dinheiro e o lixeiro vão se encontrar

o encontro será lá no lixão eterno onde os dois vão descansar

mas enquanto isso não acontece

a gente de dinheiro continua a gerar um baita montão de lixo

pro lixeiro poder catar

senão o pobre coitado acaba desempregado

e se isso acontece

ai meu deus como é que ele vai se virar se

o lixeiro continua a gerar um baita montão de filho

que precisa mal e mal alimentar

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Arco-íris cinza


a gente aprende na escola

que sete são as cores do arco-íris

vermelho laranja amarelo

verde azul anil e violeta

porém nesta megalópole maravilhosa

ocorre um extraordinário fenômeno

o arco-íris é cinza



em lugar do colorido tradicional

o que se observa é um dégradé

começando num cinza-claro

e terminando num negro-carvão



intrigado com o fenômeno pedi explicação

ao prof. google que nos dias de hoje

é o maior sabichão da paróquia



o prof. google que sabe tudo de tudo

não há coisa que ele não saiba

sabe mais que a mais completa enciclopédia

me informou que o arco-íris cinza acontecia

devido à excelente qualidade do ar da cidade



me satisfiz com o ensinamento fornecido

fiquei sabendo também sobre a lenda

que conta existir no fim do arco-íris

um tesouro escondido



outro dia quando apareceu

um lindo arco-íris cinza no céu

peguei o meu automóvel

e dirigi em direção

ao que eu supunha fosse seu fim

pra tentar encontrar o tal tesouro



depois de rodar algum tempo

cheguei ao que considerei fosse um lago

que de azul não tinha nada nada nada

era onde acabava o arco-íris cinza



o que ali vi me deixou estarrecido

uma quantidade imensa de lixo

se acumulava nas margens do lago



garrafas de plástico latinhas de bebida

saquinhos de embalagem móveis podres

uma espessa espuma escura flutuava na superfície

e uma forte fragrância de merda emanava das águas



que katzo de tesouro nojento é esse pensei com meus botões



ao ver um cidadão sem cpf sair de um dos milhares de

barracos de papelão e madeira que cercavam todo o lago

perguntei-lhe no momento que por mim passava

o que aquilo tudo significava



solícito ele me esclareceu então que o lago

na verdade não era lago era uma represa

principal fonte de abastecimento de água da região



fiquei indignado com a qualidade do meu tesouro

pensei em ir ao presidente do país

ao governador do estado

ao prefeito do município

para reivindicar meus direitos

mas depois desisti do intento

concluí não valer a pena seria perda de tempo

aproveitando a ocasião tirei o pinto pra fora

dei uma boa mijada naquela água imunda

entrei no carro e voltei pra casa

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Mar freguês


ó mar cagado quanto do teu coliforme

são de fezes de nosso abdome

por te poluirmos quantas moreias morreram

quantos baiacus em vão inflaram

quantas tainhas ficaram por procriar

para que fosses merdeado ó mar

 

valeu a pena? tudo vale a pena

se a ambição não é pequena

quem quer passar além da conta

tem que arcar com a dor imposta

deus ao mar muita água e bem limpa deu

mas nele é que despejamos a nossa bosta

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Lala lá


era uma vez um menino

de apelido lala

que sonhava um dia

poder chegar lá e 

ser presidente do

clube de malha do bairro em que morava

com a família remediada que a duras penas

se aguentava pagando as despesas do mês

situação porém bem melhor do que

já tinham enfrentado na dura secura

do agreste nordeste



lala apesar da pouca instrução que tivera

era um menino muito inteligente

e cheio de vivacidade

que gostava de estar com gente

e também de empinar pipa

mas que por necessidade

teve de trabalhar desde cedo



lala foi ser operário numa fábrica

que fazia bastante fumaça e barulho

e que justificava toda essa atividade

por conta da geração dos empregos que proporcionava

às pessoas humildes das imediações e de mais distante

mas que na verdade transformava aquela fumaça e barulho

em mais dinheiro que só fazia engordar a conta bancária

dos proprietários da fumaça do barulho e dos salários

daquele montão de operários



lala como era bem esperto logo percebeu

a maldade que era feita a toda aquela gente

e decidiu botar  a boca no microfone

acusando a injustiça da ingrata situação



lala virou um importante líder sindical

cuja fala acusando os males do capital e

clamando pelos direitos dos pobres

correu por todos os cantos do país

e à medida que o tempo passava

mais ele ficava conhecido e famoso

mais todo mundo o respeitava



por causa disso lala foi perseguido

pelos truculentos donos do poder de então

e vejam só que coisa de meter dó

na base da porrada mandaram o rapagão

pro fundo do xilindró



lala entrementes não desanimou

nunca perdeu a esperança

de um dia ver realizado seu sonho bizarro

de ser presidente do clube de malha do bairro



lala depois de muito insistir

com muitas idas e vindas

sempre a perseverar sem jamais desistir

apoiado pelo povo simples

mas desta vez com o beneplácito

de boa parte dos detentores  da grana

que no frigir dos ovos são quem ditam

as regras do jogo afinal eles são os bacanas 

juntamente com a força idealizada

da classe chamada de intelectualizada

finalmente foi escolhido presidente

do clube de malha do bairro



hip hip hip hurra

gritou o povo todo contente

agora é a vez da gente

e foi como foi dizem que foi



lala governou de um jeito que parecia correto

aumentando a renda da população pobre

porém em surdina tirava da cartola seu coelho

não bulindo ao contrário se unindo aos ricaços

que continuaram como sempre senhores do pedaço

os miseráveis por outro lado deixavam por ora de ser

como tinham sido desde os tempos das caravelas  

na conta de medida provisória passaram a receber

de graça sem esforço ajuda oficial em dinheiro

­- ai que bom não quero saber de trabalhar não

foi o que se ouviu da boca pra fora bastante

de muito preguiçoso metido a espertalhão

o governo detinha esse poder e decidiu

usá-lo pra distrair a população carente

mesmo sem base sólida de sustentação

por isso fadado ao fracasso a longo prazo  



lala soube usar

o poder que o poder lhe conferia

para promover o bem-estar

não só do povo carente

resolvendo aparentemente

apesar da baixa escolaridade

como num passe de mágica

a insolúvel inequação social

que até então tinha assolado o país

mas também e por que não ora bolas  

de seu povo próximo quer dizer sua gente.

além de sub-repticiamente procurar perenizar

o poder a duras penas conquistado democraticamente

nas mãos independentemente do que pudesse custar

para poder é claro continuar a cuidar

da população deixando todo mundo contente



para tanto inspirado na vasta experiência acumulada

por todos os governos anteriores não fugiu à regra e

instalou com aprimoramentos esquema arrecadador

de divisas e outros proventos para a alimentação

dos próprios bolsos

dos companheiros de longa jornada

dos cupinchas chupins

que não fazem nada

dos amigos do peito

a quem se deve todo o respeito

dos agregados e afiliados arrivistas

tantos que nem cabem na baía de todos-os-santos

dos correligionários mercenários

que só pensam em papar a grana do erário

mecanismo muito antigo tradicional

oficial com salvo-conduto

denominado de propinoduto

tubulação onde em vez de petróleo corre dólares

projetada pela engenharia da corrupçao nacional

aperfeiçoada pela patota de lala com aumento

tanto de seu diâmetro quanto do comprimento

sendo que quem paga a conta é o povo

o que não representa nada de novo



pra lala e sua turma o tempo das vacas magras já era

doravante só relaxar gastar e gozar

a pobreza de before a partir de entonce never more



a tal pessoal intelectual

filósofos artistas os da academia

considerados pensadores de um modo geral

que tinha apoiado a campanha do ex-sindicalista

ficou de queixo caído diante da revelação das patifarias

mas não teve peito de partir pra malhação e

houve por bem enfiar a viola no saco e ficar de bico calado

excceto os que tinham o rabo preso nas mamatas do estado

e um ou outro mais atrevido que cantaram de galo

ciscando sobre o leite derramado



fracas ameaças de sublevação

partidas de partidos da oposição

sob alegação de desrespeito à democracia

foram sufocadas pelo argumento irretorquível 

de que se o antigo companheiro de luta

depois desafeto por causa da briga pelo poder

quando presidente do mesmo clube de malha

governou um bocado pendurado no saco

do falecido cacique político baiano

e de sua gorda corriola voraz

por que lala não podia procurar sarna pra se coçar?



embora os inevitáveis detratores apontassem falhas

lala fez seu clube de malha ser campeão

por dois campeonatos consecutivos

e encerrou seu mandato por cima da carne seca

com a popularidade nas nuvens mesmo sem usar beca

colocando em seu lugar prima-dona de confiança

para dar continuidade a sua inestimável herança



lala oficialmente fora da presidência

prosseguiu em sua missão social ingente

dar palestra a peso de ouro pra todo tipo de gente

sem deixar de agasalhar honesta aguardente

talvez um dos seus poucos pequenos vícios

se é que se pode chamar isso de vício

por que convenhamos mortal nenhum é de ferro afinal



entretanto agora com alguma vantagem

para os cofres do clube de malha

não havia mais necessidade do desperdício

como antes dos cem mil reais por viagem

toda vez que batia a soturna vontade noturna

de beber no abc umas biritas os patrícios



por ter também seguido o preceito do santo italiano

como fazem religiosamente a maioria dos políticos

fiéis franciscanos espalhados por este mundo de deus

preceito que recomenda dar para poder receber

por ter dado bom naco da sua santa vida 

ao bem do povão durante diversos anos  

dizem que recebeu em troca favores dos amigos

tais como triplex em condomínio de luxo na praia

sítio em atibaia pra pescaria de fim de semana

a cantina com o nome do santo no recanto de moradia

cantina que ele nem sonhava poder entrar um dia 

pra almoçar ou jantar quando era carente de grana



para completar em parte tantos outros benefícios

transformou um de seus  descendentes de estimação

num mega empresário do setor de exportação

de produtos diversos e gêneros alimentícios



carne de vaca sem ser doidona

para uma comunidade do arizona

linguiça suína tenra e sadia

para uma freguesia da lombardia

frango pelado livre de toda gripe

para certo distrito de moçambique

galinha-d’angola com passaporte diplomático

para o norte da europa e o sudeste asiático



agora quem sabe fosse o momento

de um pequeno post scriptum  

á guisa talvez de esclarecimento



este poemículo embora pareça ofensivo

e ridículo se imbui de elevado espírito

tem a pretensãp de alcançar o objetivo

de mostrar por uma modesta metáfora

o poder corruptível do poder político



como ganância unida a desmando

de governo podem fazer um projeto

pra conquistas legítimas de um povo

virar coisa mais fedida que ovo podre