domingo, 29 de agosto de 2021

Permita um aparte

 aqui quando digo

eu sou

não sou

ou sou

a sério


aqui quando digo

eu quero

não quero

ou quero

quiçá


aqui quando digo

eu devo

não devo

ou devo

deveras


aqui quando digo

eu sei

não sei

ou sei

quem sabe


aqui quando digo

eu posso

não posso

ou posso

é possível


aqui quando digo

é verdade

não é

ou é

por vezes


aqui quando digo

vale a pena 

não vale

ou vale

vagamente


aqui é o reino da literatura

e o que importa é o texto

acima de qualquer pretexto

sinceramente sem caradura


não pretendo passar por cara acaciano

mas se assim não fosse não seria arte

nisso creio estar certo salvo engano

de minha parte obrigado pelo aparte


domingo, 22 de agosto de 2021

Para todos

estou

não sou 

sendo ser 

transido

em trânsito 

instantâneos estados  

se sucedendo 

o sangue circulando 

ainda

provisório

provejo  

provisões precisas

tantas

outras

nem tanto

porém 

me permito parlatório 

profetizo o óbvio

um dia termina

para mim

para ti

para todos 

 

domingo, 15 de agosto de 2021

Palavra puxa palavra

deixo a alma na gaveta da cômoda
para mim assim é mais cômodo
visto o melhor terno
visto que o compromisso é coisa séria
e não sou gente de andar por aí
feito um coitado
não é presunção não  
mas na rua só saio no aprumo
gasto mil e mais mil se for preciso 
ignoro o aviso de cobrança do banco 
não me importo de perder o prumo
depois corro pra desfazer o nó
velho com outro novo
antes de sair rodopio no meio da sala
e juro de pés juntos
não permanecer mudo
o assunto sendo política
porque aí o buraco é fundo e escuro
e minha cabeça fica tonta 
chego quase a perder o sentido
mas eu gosto a voz fica fanhosa 
faz parte do aprendizado de mentir
com primor pro povo carente
sempre tão voraz
por uma fala que o embale
e enxugue suas mazelas 
não me envergonho de pensar dessa maneira
todo mundo sabe que é verdade cristalina
todo mundo quer tratamento de cachorro
de madame e barras de ouro
entulhando o cofre de aço 
visto que chegada a hora do velório
toda a ganância vai de embrulho
defunto não pisca mais o olho

domingo, 8 de agosto de 2021

Outrora da minha vida

 saudades não digo que tenho 

também não digo que abomino

os tempos em que era menino

que não foi infância querida

tão pouco foi aurora perdida 

anos passados sem glória

trazidos pela cansada memória


a cidade já turbinava a todo vapor 

mas dava pra ir devagar com o andor

a pressa era menos neurótica

o progresso ainda longe da robótica


religião era católica apostólica romana

com seus dogmas contraditórios 

tinha encantamento na imagem

de nossa senhora cercada de querubim

o padre desfiando a santa missa em latim


não tinha tanto pastor rapinante

bons de bico bem falantes

verdadeiros artistas

decoradores biblistas 

autodenominados bispo apóstolo

exímios comerciantes da fé

amantes de grana em vez de ósculo

milionários vendendo milagres

dizimadores de bolsos crédulos

de infelizes sorvedores de vinagre 


poucas eram as casas 

com bananeira e laranjal

muitos os sobradinhos geminados

espremidos dos dois lados

mas havia na moradia quintal

onde durante o dia batia sol

não se morava empilhado

em prédio de apartamento

escuro mais e mais apertado


era legal

estudar em colégio estadual

onde o ensino era eficiente

não era preciso ir pra escola 

sofisticada nem fazer cursinho 

caro se aprendia o suficiente

até pra entrar na usp direto


não tinha tanta faculdade 

como existe hoje em dia

que pra passar de ano 

e conseguir o diploma

basta passar na tesouraria


nos bairros ruas sem pavimento

permitiam jogo de bola de meia

bolinha de gude e de queimada

se empinava pipa ou fazia nada

tudo bobagem tudo besteira

interação corpo a corpo direta

se podia até andar de bicicleta


não se ficava fechado 

em segurança no quarto 

jogando video game

zoando sozinho na internet 

caminhando pelas calçadas

tão esburacadas quanto as de agora

era menor o risco de ter

braço arrancado por carro

afinal tinha bem menos carro

trafegando pelas vias pavimentadas

tão esburacadas quanto as de agora 


não dava mais pra nadar no rio 

tietê como no tempo do meu avô

o rio já tinha forte odor de cocô

mas nem se compara com hoje

verdadeiro bosteiro a céu aberto

apesar dos bilhões desviados

do tratamento de despoluição 

graças ao crescimento da cidade

nosso desenvolvimento sustentado


o céu em noite escura sem lua

embora a fumaça já fizesse estrago

mostrava orion com as três marias

ver aldebaran era um estouro e

apontando para o sul o cruzeiro

com o incremento do progresso

mais veículos tiveram ingresso

e nos dias de hoje ao contrário

estrela só se for em planetário


as praias da baixada santista

pra onde costuma ir paulista

em férias de fim de ano feriados

e fins de semana muitas vezes

pra tomar banho de fezes

e curtir mega engarrafamentos

apresentavam já naquele tempo

apreciável nível de coliforme fecal

nada porém tão assustador

a ponto de matar banhista

somente vômito e diarreia

diferente dos tempos correntes

em que a situação pode ser séria

mesmo com emissário pra mandar

esgoto de tira-gosto de turista

ir navegar nas águas do alto-mar


pelas matas e campinas do interior

era possível caçar paca perdiz

capivara tatu e passarinho

aquilo era considerado normal

não se tinha noção do mal

do risco de extinção das espécies

conceito absorvido devagarinho

na cachola mas bem rapidinho 

na prática da escola da vida

com a expansão do desmatamento

necessário na formação de pasto pra boi

plantio de soja esteio da exportação 

cana pra combustível de automóvel

por conta do tal de  progresso 

que é danado de estimulante


questão de trocar jatobá por capim paca por boi

questão de necessidade ou vaidade 

questão de humanismo ou dinheirismo 

questão de opção ou não sei lá o quê


por isso é então que eu 

saudades não digo que tenho

sequer pretendo esquecer

a minha vida de outrora 

que não foi aurora querida

tão pouco infância perdida

porque tinha muita coisa boa

mas também muita porcaria

um monte de coisa à toa 

igual como acontece agora


quiçá hoje não seja melhor 

pior fosse ontem talvez

depende do ponto de vista

saudosista ou progressista

depende do gosto do freguês

deixo a decisão pra vocês


domingo, 1 de agosto de 2021

Interstícios

a tiracolo da vacuidade de meu dia 

capturo o que me resta de ânimo e 

me contorço pelas frinchas 

da massa letárgica de automóveis

que entopem implacáveis

o espaço locomotivo 

buracos borrados de asfalto e

alcanço o outro lado da calçada onde

arrastado por acachapante cotidianidade

busco em meu âmago força e

me imiscuo pelas frestas 

da multidão de pessoas 

replicantes permanentemente

avançando avassaladora 

do espaço coalhado de prédios espetados 

no chão não beijado pelo papa 

chego ao condomínio e

me esgueiro numa réstia

do bloco de ocupantes do elevador que

não me apresenta nenhum rosto amigável 

apesar de morar ali há mais de dez anos

no vigésimo me escafedo do antromóvel e

me espremo

pelo lusco-fusco do estreito corredor 

para por fim escorregar

na solidão do cubículo batizado de lar

semi-ileso de corpo plenileso de mente

abro a janela da sala e respiro com peito apertado 

o ar poluído de fim da tarde

depois a água morna do chuveiro

caindo na cuca quente

me faz sentir certo conforto 

encorajador da procura de uma trinca

no monolítico mal-estar

a que a realidade me obriga 

para por ela me infiltrar e tentar alcançar

um sentimento esperançoso

de que o viver humano poderia ser menos penoso

porém 

constrito no exíguo espaço

o ingênuo pensamento sem demora

escorre pela nudez do real 

arrastado pela espuma do sabonete

misturado à sujeira do corpo

para o chão do boxe

e daí para a tampa do ralo

onde flutua por instantes até ser lançado 

através dos orifícios da tampa 

para a fétida escuridão do esgoto