canto um canto de pé quebrado sobre
as máguas de um rio num planeta doente
o rio que passa pela minha aldeia
que não sei se no passado teve rio mais bonito
o que sei é que
o rio que passa pela minha aldeia
hoje é um esgotão a céu aberto
mas já foi muito bonito no passado
e isso não faz muito tempo não
muito bonito se bonito for ter
águas limpas ter peixes ter vida
o rio que passa pela minha aldeia
nunca teve grandes navios
antigamente
teve canoas que levaram
rudes desbravadores ambiciosos
à procura de ouro pedras preciosas
e seres humanos
para serem caçados e vendidos como escravos
não pensavam em construir um país
ambicionavam riquezas mais fáceis
não tinham noção de nação
contudo acabaram ajudando o início
da permanente construção tumultuada deste país
o rio que passa pela minha aldeia
hoje recebe bastante caca pra navegar
daqui pra lá e de lá pra cá
conseguem ainda navegar nele embarcações
transportando produtos agrícolas diversos
mas isso acontece bem longe da minha aldeia
o rio que passa pela minha aldeia
muitos sabem qual é
sabem que ele desce da serra
e não vai para o mar
como a maioria dos rios vai
o rio que passa pela minha aldeia
é do contra
o rio que passa pela minha aldeia
não quer nem saber das praias do litoral
ele é mesmo um caipirão inveterado
o rio que passa pela minha aldeia
pertence a um montão de gente
por isso ele não é nada nada livre
pois minha aldeia tem milhões de pessoas
o rio que passa pela minha aldeia
entretanto é muito maltratado pelas pessoas
porque umas estão preocupadas
com dinheiro e poder
para botar as mãos neles
estão preocupadas
com a eleição ou
a reeleição no próximo pleito
executivo ou legislativo
estão preocupadas
depois de eleitas com as licitações
fonte inesgotável de corrupção
outras a maioria
estão preocupadas
com a sobrevivência
na dura realidade concreta
da cidade devoradora de gente
ou não estão preocupadas
com merda nenhuma
e estão se lixando com
o que acontece com
o rio que passa pela minha aldeia
que está cheio de lixo e de bosta
o rio que passa pela minha aldeia
que está negro de águas oleosas e pesadas
águas espessas de infâmias
que arrastam para o fundo pegajoso
afogando a decência
águas abjetas e barrentas
que dão febre que dão morte
águas do vício da ganância
do egoísmo do comodismo
da ignorância da perda de cidadania
mas como perder o que não se tem
águas da irresponsabilidade criminosa contra a natureza
e depois de cometer o assassinato
querem ressuscitar o morto
não vai adiantar coisa nenhuma
vai ficar tudo na mesma
ou pior vai piorar ainda mais
nossa história está aí pra provar
águas malditas que dão morte
corpos putrefatos envenenam estas águas
águas onde boiam toneladas de lixo
margeadas por toneladas de entulho
testemunho de nossa ingente canalhice
cadê os peixes onde estão os anhembis
não são águas que se beba governador
o rio que passa pela minha aldeia
quem está ao pé dele
não aguenta o fedor
que brota de suas águas podrecentes
o rio que passa pela minha aldeia
quem pode com esse cheiro nauseante
desculpem se vomito diante
de pessoas tão distintas
o rio que passa pela minha aldeia
por causa das suas máguas
passa pela minha aldeia feito cadáver
o rio que passa pela minha aldeia
eis a verdade
fostes vós gente arrogante
imprevidente
autodenominada de
seres racionais superiores
que me forçastes a ficar assim
deste jeito tão precário
o rio que passa pela minha aldeia
sim a culpa é nossa se tuas águas estão podres
sim a culpa é nossa pai tietê
o rio que passa pela minha aldeia
não choro aqui meu desconsolo
choro o desconsolo do rio de todos
multidão fervilhante de seres ávidos
nesta terra escura
criando morte em forma de água escura
torpeza da enchente de gente em parte
castigada pelas enchentes de águas podres
vingança do rio pelo extermínio de suas várzeas
indiferente ao aprofundamento de seu leito
à eliminação de suas curvas
o rio que passa pela minha aldeia
nada de lamúrias pessoais prezados chefes
quero apenas mostrar a título de exemplo
as fezes flores presentes em mais um rio
o rio que passa pela minha aldeia
fezes flores que nenhum gemido poético
infelizmente conseguirá aplacar
porque sei muito bem que
meu verso não vence nada
meu verso desafina ao menor sopro
dos ventos que sopram na marginal
meu verso enrouquece com as espumas
úmidas fétidas que flutuam no rio seboso
meu verso é ouro falso tesouro que dorme
no fundo baboso do rio de água vil
meu verso é só uma fraqueza infatigável
que não vale nenhuma lágrima inútil lágrima
pela morte de um rio apenas só mais um rio
presente dos homens com certeza
para o bem da natureza
águas profanadas rio despejo
de mil imundícies do progresso
nosso infecto anhambi
presença de morte neste planeta doente