domingo, 25 de outubro de 2020

Realidade virtual

encontrar variadas formas de prodígios

é a atitude comum de quem olha a arte

esquecendo amiúde que também há arte

no comum das coisas livres de prodígios


por exemplo o sereno sentimento do ocaso

de mais um dia é um jeito simples de poesia

não obstante possa existir outrossim poesia

no amanhecer que antecede um novo ocaso

é próprio do humano a criação de símbolo

assim tem sido desde milhares de anos

e se tem percebido ao longo desses anos

que mais e mais aumenta o poder do símbolo


busca permanente com tendência de interminável

transporte do que é pelo aparente como o mesmo

mas realidade e faz-de-conta não podem ser o mesmo

embora a vontade de viver virtual seja interminável


todavia até o real mais palpável qual a água

que flui ligeira pelo leito formando este rio

vai modificando no transcorrer do tempo o rio

água agora outra do que foi há pouco água 


prova provada traz a idade em nosso rosto

quando confrontado com um claro espelho

por mais seja adornado pra enganar o espelho

a desintegração vai se enraizando nesse rosto


lembre-se da ilusão de vida que há no sonho

durante o sono amostra do que será a morte

apesar de que na verdadeira morte

seja pouco provável que haja sonho


domingo, 18 de outubro de 2020

Meditação sobre as máguas de um rio num planeta doente

canto um canto de pé quebrado sobre 
as máguas de um rio num planeta doente

o rio que passa pela minha aldeia
que não sei se no passado teve rio mais bonito 
o que sei é que 

o rio que passa pela minha aldeia
hoje é um esgotão a céu aberto
mas já foi muito bonito no passado
e isso não faz muito tempo não
muito bonito se bonito for ter
águas limpas ter peixes ter vida

o rio que passa pela minha aldeia 
nunca teve grandes navios
antigamente 
teve canoas que levaram 
rudes desbravadores ambiciosos
à procura de ouro pedras preciosas 
e seres humanos
para serem caçados e vendidos como escravos
não pensavam em construir um país
ambicionavam riquezas mais fáceis
não tinham noção de nação
contudo acabaram ajudando o início
da permanente construção tumultuada deste país

o rio que passa pela minha aldeia
hoje recebe bastante caca pra navegar
daqui pra lá e de lá pra cá
conseguem ainda navegar nele embarcações
transportando produtos agrícolas diversos 
mas isso acontece bem longe da minha aldeia

o rio que passa pela minha aldeia
muitos sabem qual é
sabem que ele desce da serra
e não vai para o mar 
como a maioria dos rios vai

o rio que passa pela minha aldeia 
é do contra

o rio que passa pela minha aldeia
não quer nem saber das praias do litoral 
ele é mesmo um caipirão inveterado

o rio que passa pela minha aldeia 
pertence a um montão de gente
por isso ele não é nada nada livre 
pois minha aldeia tem milhões de pessoas

o rio que passa pela minha aldeia 
entretanto é muito maltratado pelas pessoas
porque umas estão preocupadas 
com dinheiro e poder
para botar as mãos neles
estão preocupadas 
com a eleição ou 
a reeleição no próximo pleito
executivo ou legislativo
estão preocupadas 
depois de eleitas com as licitações 
fonte inesgotável de corrupção
outras a maioria 
estão preocupadas 
com a sobrevivência 
na dura realidade concreta
da cidade devoradora de gente
ou não estão preocupadas 
com merda nenhuma
e estão se lixando com 
o que acontece com

o rio que passa pela minha aldeia
que está cheio de lixo e de bosta

o rio que passa pela minha aldeia
que está negro de águas oleosas e pesadas 
águas espessas de infâmias 
que arrastam para o fundo pegajoso 
afogando a decência
águas abjetas e barrentas
que dão febre que dão morte 
águas do vício da ganância 
do egoísmo do comodismo 
da ignorância da perda de cidadania 
mas como perder o que não se tem
águas da irresponsabilidade criminosa contra a natureza
e depois de cometer o assassinato 
querem ressuscitar o morto
não vai adiantar coisa nenhuma
vai ficar tudo na mesma
ou pior vai piorar ainda mais
nossa história está aí pra provar
águas malditas que dão morte
corpos putrefatos envenenam estas águas 
águas onde boiam toneladas de lixo
margeadas por toneladas de entulho
testemunho de nossa ingente canalhice
cadê os peixes onde estão os anhembis
não são águas que se beba governador

o rio que passa pela minha aldeia 
quem está ao pé dele
não aguenta o fedor 
que brota de suas águas podrecentes

o rio que passa pela minha aldeia
quem pode com esse cheiro nauseante
desculpem se vomito diante 
de pessoas tão distintas
 
o rio que passa pela minha aldeia
por causa das suas máguas
passa pela minha aldeia feito cadáver

o rio que passa pela minha aldeia
eis a verdade 
fostes vós gente arrogante 
imprevidente
autodenominada de 
seres racionais superiores 
que me forçastes a ficar assim 
deste jeito tão precário

o rio que passa pela minha aldeia
sim a culpa é nossa se tuas águas estão podres
sim a culpa é nossa pai tietê

o rio que passa pela minha aldeia
não choro aqui meu desconsolo 
choro o desconsolo do rio de todos
multidão fervilhante de seres ávidos 
nesta terra escura 
criando morte em forma de água escura 
torpeza da enchente de gente em parte
castigada pelas enchentes de águas podres
vingança do rio pelo extermínio de suas várzeas 
indiferente ao aprofundamento de seu leito 
à eliminação de suas curvas

o rio que passa pela minha aldeia
nada de lamúrias pessoais prezados chefes
quero apenas mostrar a título de exemplo 
as fezes flores presentes em mais um rio 

o rio que passa pela minha aldeia
fezes flores que nenhum gemido poético 
infelizmente conseguirá aplacar 
porque sei muito bem que
meu verso não vence nada
meu verso desafina ao menor sopro 
dos ventos que sopram na marginal
meu verso enrouquece com as espumas 
úmidas fétidas que flutuam no rio seboso
meu verso é ouro falso tesouro que dorme 
no fundo baboso do rio de água vil
meu verso é só uma fraqueza infatigável
que não vale nenhuma lágrima inútil lágrima 
pela morte de um rio apenas só mais um rio
presente dos homens com certeza 
para o bem da natureza
águas profanadas rio despejo 
de mil imundícies do progresso 
nosso infecto anhambi 
presença de morte neste planeta doente

domingo, 11 de outubro de 2020

A grande dor das cousas que não passam

 meus erros que tanto têm sobejado

embora tal não fora meu desejo

pois de viver em paz quisera o ensejo

em minha perdição muito têm tramado


de tudo porém que tenho passado

a grande dor das cousas que não passam

livre de iradas mágoas que devassam 

por não querer em nada ser vingado


é meu claro e sincero sentimento

visto vazio é o peito cheio de vingança

aprendi vivendo esse ensinamento


o próprio horror verter em doce presente

exaltar mal fundadas esperanças

qual pollyanna e seu jogo do contente

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

A propósito

quero cuidar bem do meu amor
meu amor é muito importante
quero ser fiel ao meu amor
integralmente fiel
em ações e pensamentos
de corpo e alma
quero ser companheiro do meu amor
em todos os momentos
de alegria e de tristeza
quero ser atencioso com meu amor
meu amor merece toda a minha atenção
quero ser carinhoso com meu amor
quero ser gentil com meu amor
quero ser educado com meu amor
se eu me aborrecer com meu amor
quero conversar com meu amor e 
deixar tudo esclarecido para poder 
continuar a viver em paz com meu amor
quero respeitar o meu amor
seu espaço seu tempo seu jeito seu ser
ah meu amor como é bom o meu amor
quero continuar a amar muito o meu amor
sei meu amor me ensinou que se eu fizer assim
meu amor vai continuar a fazer igualzinho pra mim
e nossa vida será sempre este mar de rosas sem-fim
até o fim