domingo, 26 de julho de 2015

JULIETA E ROMEU

Era uma vez, há muito tempo, longe, bem longe daqui, um reino muito engraçado porque ali só existiam três cores: azul; amarela; e vermelha. E todas as coisas ficavam separadas pela cor. Havia o espaço azul onde só ficam as coisas azuis; as coisas amarelas ficam no espaço amarelo; as coisas vermelhas no espaço vermelho.
Ali naquele reino vivam Julieta e Romeu. Julieta era uma gotinha de tinta amarela que vivia no espaço amarelo; Romeu era uma gota de tinta azul que vivia no espaço destinado às coisas azuis.
Um dia, era uma linda manhã de primavera, Romeu estava passeando quando chegou num lugar onde ele nunca tinha estado. Havia uma cerca que parecia indicar o fim do espaço azul.
Ele olhou para o outro lado e viu que ali era tudo amarelo. Romeu  achou aquilo incrível. Romeu não imaginava que pudesse haver outra cor além do azul.
Chegou mais perto e viu do outro lado uma gotinha de tinta, como ele, só que de cor amarela.
Romeu pôs-se então a chamar a gotinha: psiu, psiu gotinha. A gotinha amarela ao perceber o chamado de Romeu se aproximou da cerca, e os dois começaram a conversar.
Romeu ficou sabendo que ela se chamava  Julieta, uma gotinha de tinta de cor amarela. Julieta também ficou sabendo que ele se chamava Romeu, uma gota de tinta de cor azul.
Logo Julieta e Romeu ficaram amigos. Todos os dias eles se encontravam, cada um do seu lado, para falar de tudo que lhes vinha à cabeça. Falavam do que tinham aprendido na escola; dos acontecimentos em casa; das broncas que tinham levado dos pais; das briguinhas com seus irmãos. Enfim, falavam de todas essas coisas que parecem sem importância, mas que na verdade é o que transforma o conhecimento que se tem de alguém em amizade e faz a vida da gente ficar saborosa.
Depois de um tempo que os dois eram amigos, certa vez se encontraram e começaram a conversar andando cada um do seu lado quando viram lá adiante um buraco na cerca.
Foram até ali e perceberam que podiam passar de um lado para outro. Ficaram superfelizes e começaram a brincar juntos. De repente eles se tocaram e ficaram encantados com o que aconteceu. No lugar que eles tinham se tocado, mudaram de cor. Julieta ficou de uma cor diferente do amarelo. Com Romeu aconteceu a mesma coisa. Onde ele tinha tocado em Julieta mudou de cor. E era mais ou menos a mesma cor que tinha aparecido em Julieta.
Quando Romeu e Julieta voltaram para casa foram contar para seus pais o que tinha acontecido e mostrar a nova cor que lhes tinha aparecido.
Os pais gotas de tinta ficaram muito preocupados com o acontecimento e foram, cada qual em seu espaço, pedir conselho e orientação ao Grande Sábio Velho. Os pais de Julieta ao Grande Sábio Velho Amarelo; os pais de Romeu ao Grande Sábio Velho Azul.
Os dois sábios, após muito estudarem e meditarem sobre o assunto, chegaram a mesma conclusão. Aquela cor era uma nova cor, resultado da mistura da tinta amarela com a tinta azul; a ela se devia dar o nome de verde.
Daquele dia em diante, muitos amarelos passaram a se misturar com azuis resultando em verdes. Verdes de muitos tons: verde-claros; verde-escuros; verde-isso; verde-aquilo.
Depois descobriram que os vermelhos misturados com os amarelos davam outra cor que chamaram laranja.
Descobriram também que azul com um pouco de vermelho dava outra cor, chamada violeta e que vermelho com um pouco de azul dava uma cor que chamaram magenta.
Misturando tudo, azul, amarelo e vermelho dava uma cor linda que chamaram preto. Se uma luz verde se juntasse com uma luz azul e uma luz magenta resultava a cor branca.
E assim o mundo se encheu todinho de muitas cores. Surgiu até o arco-íris no céu.  
Julieta e Romeu continuaram amigos. Cresceram, se apaixonaram e se casaram.
           Tiveram muitos filhos, uns verde-amarelados; uns verde-azulados; e outros verdinhos.


(do livro “54 que minha avó contava na kombi”)

domingo, 19 de julho de 2015

A procissão modernista

            
       Oswald de Andrade participou da Semana de 22 como romancista, com Os condenados, de boa acolhida crítica. Virou poeta após seu retorno da longa estada em Paris (praticamente todo o ano de 1923), lançando em março de 1924, no jornal paulistano Correio da Manhã , o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, espécie de programa de trabalho, largamente propagandeado, mas sem correspondência experimental comprovada, mera digressão ideológica, uma vez que o Pau-Brasil, seu primeiro livro de poesias, sequer estava escrito, só vindo a ser terminado no ano seguinte . 
O jovem milionário, aristocrático por formação, burguês por vocação (alguns anos mais tarde transformado em comunista de carteirinha, depois de ir à bancarrota com o crash de 29), José Oswald, bem acompanhado da namorada, Tarsila, a pintora socialite, deslumbrou-se, quiçá provincianamente se desprovincianizando, com a modernidade imperante na Cidade Luz; modernidade que, naquela altura dos acontecimentos, já estava estabelecida, oficializada, com base mercadológica a lhe dar sustentação. Era uma cultura modernista remansosa, conservadora, comercial, adquirindo estatuto de tradição (DANTAS, 1991), na linha de pensamento radical de Adorno (1969), para quem as épocas heroicas da arte moderna giraram ao redor de 1910;  na década de vinte, na Europa continental liberal, os movimentos de vanguarda eram coisa do passado. 
Assinale-se o fato de que naquele ano de 1923, Paris estava entupida de máscaras negras, estatuária primitiva, padronagens pré-colombianas. Era a tradição cultural dos povos periféricos transformada em moda e mercadoria para deleite e usufruto dos privilegiados primeiro-mundistas, com a própria vanguarda (seria?) associada ao mercado na exploração do exótico, o mundo do atrasado constituindo-se em próspero negócio para o mundo do adiantado (DANTAS, op. cit.). Desse ambiente fez-se a luz que alumiou a cabeça do nosso futuro poeta antifuturista. Foi ali, entre lautos regabofes, dissolvidos à champanhe, a empanturrar as tripas da alta intelectualidade local, seguidos de noitadas nas boates da moda,  que Oswald gestou seu ovo de Colombo, botado mais adiante, matéria-prima para sua omeleta poética; tudo numa perspectiva, acolhendo as considerações de Dantas (op. cit.), absolutamente despida de consciência crítica desse processo, o que faria as palavras de Paulo Prado, nobre representante da já decadente aristocracia rural paulista, no prefácio do Pau-Brasil (prefácio escrito com o livro apenas incipiente, mal começado!): “Oswald de Andrade, numa viagem à Paris ... – umbigo do mundo – descobriu deslumbrado, a sua própria terra. A volta à pátria confirmou ... que o Brasil existia. Esse fato ... abriu seus olhos à visão radiosa de um mundo novo, inexplorado e misterioso. Estava criada a poesia “pau-brasil”, soarem como ingenuamente eufóricas, sendo-se maximamente educado no uso do léxico (1), (2). 
O Manifesto da Poesia Pau-Brasil, lançado sem uma experimentação comprovada, pode ser encarado como uma crítica particularista, com finesse, à francesa, ao excesso de abstração universalista matutada caipiramente por Mário de Andrade (DANTAS, op. cit.). Basta lembrar a primeira frase do Manifesto: “A poesia existe nos fatos.”, com a primeira frase do Prefácio Interessantíssimo: “Leitor: está fundado o Desvairismo.” (ANDRADE, Mário, p. 59, 1987). O Prefácio tinha efeito muito menos ribombante do que o Manifesto, ao contrário, tinha, até, sóbria autocrítica (talvez com pitadas de ironia misturadas com vergastadas de autoflagelação, tão comuns em MA, manjado artifício retórico para captação de benevolência): “ E desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais. Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita si pretendesse representar orientação moderna que ainda não compreende bem.”, pode-se ler no Prefácio. Procurava ser consistente, longe do espalhafato oswaldiano apresentado no Manifesto: “O Carnaval do Rio é o acontecimento religioso da raça; Toda a história dos pioneiros e a história comercial do Brasil; A riqueza dos bailes e das frases feitas; Odaliscas no Catumbi etc.”. Mário mata a cobra e mostra o pau, apresentando as lucubrações teóricas, acompanhadas do produto concreto dessas ideias, prefaciando o livro de poesias Paulicéia desvairada, de 1922. Concepções teóricas maturadas durante a construção das bases do movimento modernista (3) conforme pode-se depreender da conferência – “O Movimento Modernista” – proferida por Mário à Casa do Estudante de São Paulo, em 1942, parte integrante do livro Aspectos da literatura brasileira (1972), da qual destacamos as passagens que seguem: “ Porque na verdade, o período ... heróico, fôra esse anterior, iniciado com a exposição de Anita Malfatti (dezembro 1917) e terminado na “festa” da Semana de Arte Moderna.”(p.237); “...a Semana de Arte Moderna dava um primeiro golpe na pureza do nosso aristocracismo espiritual.”(p.238); “O modernismo, no Brasil, foi uma ruptura, foi um abandono de princípios e de técnicas conseqüentes, foi uma revolta contra o que era a Inteligência nacional.”(p.235); “Mas o espírito modernista e as suas modas foram diretamente importados da Europa.”(p.236); “E, socialmente falando, o modernismo só podia mesmo ser importado por São Paulo e arrebentar na província.”(p.236); “... o movimento modernista era nitidamente aristocrático, ... pelo seu internacionalismo modernista, pelo seu nacionalismo embrabecido, pela sua gratuidade antipopular, pelo seu dogmatismo prepotente, era uma aristocracia do espírito.”(p.236); “Porque, embora lançando inúmeros processos e idéias novas, o movimento modernista foi essencialmente destruidor.”(p.240);  “Mas esta destruição não apenas continha todos os germes da atualidade, como era uma convulsão profundíssima da realidade brasileira. O que caracteriza esta realidade que o movimento modernista impôs, é, a meu ver, a fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma conciência criadora nacional.”(p.242).  
Podemos, talvez, aprofundar um pouco a compreensão das palavras de Mário de Andrade de que o Movimento Modernista do Brasil, cujo espírito fora diretamente importado da Europa, tinha caráter internacional, fazendo um paralelo entre a situação europeia nos primeiros anos do século XX, época que, segundo Adorno, correspondeu ao verdadeiro período de efervescência vanguardista, até o ano de 1914, para fixar uma data de referência,  de acordo com a visão de Perry Anderson (1986), (épocas heróicas, nas palavras de Adorno, no trabalho escrito na década de 60)  e a situação brasileira (período heroico, nas palavras de Mário de Andrade na conferência na década de 40) de 1917, ano de exposição de pintura de Anita Malfatti, até 1922, ano da Semana de Arte Moderna, acatando sugestão cronológica do próprio Mário de Andrade, com uma defasagem de cerca de uma década em relação à Europa.
Perry Anderson, no artigo citado, analisando e reelaborando ideias de Marshall Berman (1987), afirma que “pode-se entender melhor o “modernismo” (no caso, a análise é feita para a Europa Ocidental, no período 1900-1914) como um campo cultural de força triangulado por três coordenadas decisivas.”(p. 8). A primeira coordenada trata-se da presença de um academicismo altamente formalizado, institucionalizado nos regimes oficiais de Estado. Para efeito das considerações que faremos a seguir, chamaremos essa coordenada de forças estéticas conservadoras às quais se oporiam forças estéticas renovadoras que seriam as responsáveis pelos processos de vanguarda. A segunda coordenada é o desenvolvimento no interior da sociedade das tecnologias ou invenções-chaves da segunda revolução industrial – telefone, rádio, automóvel avião etc., fruto da primeira  revolução industrial, a reboque das quais se desenvolveram as indústrias de bens de consumo de massa. Chamaremos essa coordenada de forças econômicas renovadoras. A terceira coordenada é a existência de Estados considerados, quanto às formas de governo, regimes políticos, sistemas de governo,  insatisfatórios, ao menos para parte da sociedade que os compunha, tornando factível a proximidade de insurreições sociais ambíguas quanto à sua natureza ideológica política, isto é, podendo ser tanto de esquerda quanto de direita.  Chamaremos essa coordenada de forças políticas conservadoras às quais se oporiam forças políticas renovadoras que teriam por fim a subversão da ordem política estabelecida, visando colocar no poder uma nova ordem. O livro Tudo que é sólido ...(BERMAN, op. cit.), objeto crítico de Perry Anderson,  nas palavras do próprio autor (p.16) é um estudo sobre a dialética da modernização e do modernismo. Mediando este par dialético está a modernidade, de acordo com Anderson (p.3).
Entenderemos modernização como resultado da ação dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos sobre a sociedade(que se intensificaram de maneira extraordinária a partir das diversas etapas da chamada Revolução Industrial iniciada no século XVIII), isto é, a ação das forças econômicas renovadoras sobre a sociedade com seus efeitos diretos e indiretos sobre o sistema social. Entenderemos modernidade como a experiência histórica de viver, em sentido amplo, a modernização, no espaço e no tempo, com seus benefícios e seus malefícios, físicos e psíquicos, para o indivíduo e para a sociedade. E entenderemos modernismo como a experiência cultural, em seu aspecto estético, de viver a modernização, com toda a espantosa variedade de visões de mundo que ela propicia, tendo como princípio a superação permanente das forças estéticas conservadoras (4). É possível, então, reunirmos estes conceitos em dois esquemas gráficos, um que chamaremos de triângulo de Anderson e outro que chamaremos de triângulo de Berman:
      O modus operandi dos agentes envolvidos poderia ser assim entendido: as forças econômicas renovadoras, agente primário, desencadeador de todo o processo, responsável pela modernização, atuando num ambiente dominado por forças políticas conservadoras (oligarquias, estamentos com privilégios, desigualdades muito acentuadas, cerceamento de liberdades etc.) dariam origem a uma modernidade (modo de estar da sociedade, sob efeito da modernização) em tensão social resultante da ação de forças políticas renovadoras que   passariam a operar em oposição às forças políticas conservadoras com o objetivo de subvertê-las;   forças estéticas conservadoras arraigadas nesse ambiente de modernidade tensionada  motivariam o surgimento de forças estéticas renovadoras cujo fim seria a superação da situação estética conservadora, podendo, eventualmente, ter objetivos mais amplos do que meramente estéticos; essas reações estéticas se denominariam movimentos artísticos de vanguarda ou modernismo. 
     Deformações no triângulo de Anderson provocariam deformações no triângulo de Berman, podendo até, no limite, provocar seu desaparecimento. Assim, forças estéticas conservadoras muito fracas – resultantes, por exemplo, ou de uma tradição inexpressiva, de segunda categoria, de cópia sem criatividade, situação frequente em países periféricos, ou de uma tradição não suficientemente consolidada, quando os movimentos estéticos renovadores passam a ter inércia própria e sucedem-se desenfreadamente uns após os outros, e até concomitantemente, sem que haja tempo suficiente para se consolidarem, permitindo a maturação de uma tradição expressiva que possibilite um novo salto modernista consistente (5), situação frequente em países centrais – acarretariam como contrapartida forças estéticas renovadoras tênues, resultando modernismo fraco, inexpressivo. Forças políticas conservadoras extremamente repressoras poderiam dificultar, pelo menos durante certo tempo, o desenvolvimento tanto de forças políticas renovadoras quanto de forças estéticas renovadoras, e, por conseguinte, prejudicar, temporariamente, a eclosão de autênticos movimentos modernistas, porém a persistência dessas forças repressoras levaria ao surgimento de forças políticas e estéticas renovadoras, também virulentas, sendo as estéticas, por via de regra, com perfil marcadamente ideológico. Por outro lado, liberdade total tenderia a provocar o desaparecimento dos contrários dialéticos, desaparecendo a necessidade histórica de mudança, conforme Adorno, e o movimento de renovação tenderia a cair no vazio (SIMON, 2003). Mas o principal fator de desmonte do modernismo seria o enfraquecimento das forças econômicas renovadoras, responsáveis pela modernização; do lado das economias centralizadas ou comunistas, pelo engessamento  das respectivas sociedades, por estruturas dirigentes altamente burocratizadas, obsoletas, plenas de privilégios, fortemente repressivas (que acabaram se esfacelando na década de 80); do lado das economias de mercado ou capitalistas, pela instalação, após a Segunda Guerra Mundial, de um capitalismo opressivamente estável, monoliticamente industrial, com uma produção de mercadorias rotinizada e burocratizada, na qual  consumo de massa e cultura de massa tornam-se praticamente termos intercambiáveis (ANDERSON, op. cit.). Paradoxalmente o novo capitalismo pós-guerra, com todo seu desenvolvimento, com todo seu progresso, deixou de ser uma força econômica verdadeiramente renovadora, passou a ser um simulacro de desenvolvimento. A criação desenfreada de novos produtos de consumo passou a ser um fim em si mesmo, deixando de provocar o impacto que deveria estar associado à inovação; inventar, fabricar, vender e tornar obsoleto o novo, num ritmo cada vez mais frenético passou a ser rotina: o modelo de computador, que está sendo lançado hoje, e que superou o modelo de ontem em algum detalhe tecnológico, devido a algum outro detalhe tecnológico, já se prepara para ser superado por um novo modelo amanhã, e ninguém mais se surpreende como o fato, aliás, espera-se por isso. O automóvel amanhã terá linhas curvas para substituir o modelo com linhas retas de hoje, que substituiu o modelo com linhas curvas de ontem, já sucateado. Novo, novo, novo, em todas as direções. Para cima, o novo modelo de helicóptero para executivos. Para baixo, a nova fórmula de sabão em pó que lava mais branco. A modernização banalizou-se. As forças econômicas que eram renovadoras passaram a ser conservadoras, e numa escala cada vez maior, envolvendo os indivíduos, as sociedades, os países, o mundo.  
       A modernização, como um redemoinho gigante, passou a sugar tudo o que estivesse à sua volta. Modernização virou sinônimo de fabricação de mercadorias. Modernidade virou sinônimo de consumo de mercadorias. E as artes não escaparam a esse turbilhão. As forças estéticas perderam seu poder revitalizador. Os objetos artísticos perderam a aura, viraram produto de consumo de massa. O modismo imposto pelo poder do capital passou a ditar as regras estéticas. A arte virou mercadoria. A arte foi engolida pelo mercado.
Mas voltemos ao Brasil de 1917-1922, de onde tanto nos afastamos, por culpa do Perry Anderson, e vejamos como essas ideias podem ser aplicadas. Um primeiro ponto, de ordem geral, a ser ressaltado é que, embora o modernismo tenha sido diretamente importado da Europa, nas palavras do próprio Mário de Andrade, essa importação não se deu como simples transposição, pois a apropriação sempre se dá com adaptação às condições locais, gerando novas contradições, novas ambiguidades (SIMON, op. cit.). 
       Consideremos, primeiramente, o vértice das forças econômicas renovadoras, em nosso triângulo de Anderson. Durante a República Velha (1889-1930), período que engloba a fase de interesse da nossa análise (1917-1922), a economia brasileira era essencialmente agrária, tendo como principal fonte de divisas a exportação de meia dúzia de produtos primários dentre os quais o café era de longe o principal. Nesse período, o parque industrial brasileiro, embora incipiente, passou a apresentar um crescimento, ainda que lento, razoável. Para termos uma noção quantitativa da situação citamos os dados apresentados por Figueira (p. 37, 2000): em 1889, o Brasil possuía pouco mais de 600 fábricas, empregando cerca de 55 000 operários; em 1920 passamos para cerca 13 500 fábricas, empregando 275 000 operários. Era, porém, um parque industrial frágil, empregando tecnologia rudimentar na produção de mercadorias fáceis de fabricar e baratas, voltado principalmente para os setores têxtil e de alimentação. Rio de Janeiro, no início, foi o principal polo industrial, mas, pouco antes de 1920, já havia sido superado por São Paulo, capital, transformada no principal centro industrial do país. 
      A supremacia industrial paulista vinculou-se estreitamente à expansão da lavoura cafeeira no Estado uma vez que os cafeicultores aplicavam parte de seus lucros em atividades urbanas (indústrias, bancos e comércio), visando diversificar suas atividades, para diminuir os riscos de seus empreendimentos e, principalmente, para aumentar seus ganhos; esses excedentes financeiros foram nos primeiros momentos da atividade industrial importante fonte de recursos para o pagamento de importações de máquinas e de matérias-primas. Os grandes cafeicultores formavam uma espécie de aristocracia agrária e, em princípio, não se envolviam diretamente nas atividades urbanas. Essas atividades eram exercidas por uma burguesia frágil, frágil como a própria indústria que surgia em função da economia cafeeira. Outro fator de desenvolvimento ligado ao café foi o incremento populacional devido à imigração assalariada, para suprimento de mão-de-obra à cafeicultura, que deu origem, com o desenvolvimento urbano-industrial, de uma classe média e de uma classe operária, resultando na consolidação de um mercado consumidor dos bens industriais produzidos, ainda que incipiente de início, cada vez mais importante. Em 1890, a capital de São Paulo tinha pouco mais de 60 000 habitantes, em 1920, quase 600 000 (FIGUEIRA, op. cit. p. 57). A industrialização paulistana – em estreito vínculo com a cafeicultura, estabelecendo relações entre a burguesia urbana e a oligarquia do café – relações ora amistosas ora conflituosas, em função dos interesses momentâneos – foi a força econômica renovadora (um dos vértices do triângulo de Anderson) responsável pelo início da modernização brasileira, a partir da qual se deflagrou nossa modernidade, catalizadora do nosso modernismo. Assim, talvez possamos compreender com um pouco mais de profundidade as palavras de Mário de Andrade, por que “o modernismo só podia mesmo ser importado por São Paulo e arrebentar na província... São Paulo era espiritualmente muito mais moderna porém (refere ao Rio(6)), fruto necessário da economia do café e do industrialismo consequente (grifo meu).” (MA, op. cit. p. 236, 1972). Não podemos, contudo, perder de vista que essa industrialização, e a modernização consequente, eram muito limitadas, tinham de superar enormes obstáculos: dependência da cafeicultura (que tinha seus interesses “maiores” e tinha suas crises cíclicas), dificuldades na importação de bens de capital (máquinas), falta de insumos básicos (energia elétrica, carvão, cimento, aço) e, principalmente, falta da consciência generalizada da necessidade do desenvolvimento industrial. 
      Consideremos, agora, o vértice das forças políticas renovadoras, em nosso triângulo de Anderson. Com o primeiro presidente civil, Prudente de Morais, cafeicultor paulista, em 1894, teve início o período republicano, conhecido pelo nome de República Oligárquica, que durou até 1930, com a deposição do presidente Washington Luís e a imposição do gaúcho, Getúlio Vargas, na presidência de república. Durante esse período, que abarca o período de 1917-1922, de interesse para nosso estudo, o poder político do país esteve nas mãos, como o próprio nome indica, de uma oligarquia agrária – de São Paulo, principal produtor de café, e de Minas Gerais, segundo produtor – conservadora, tacanha e obsoleta, quanto a um projeto de construção de um país grande, desenvolvimentista, igualitário,  olhando, apesar do risco de torcicolo, só para o próprio umbigo, zelosa de seus interesses particulares, aferrada ao poder alcançado pelo uso corriqueiro do binômio coronelismo-clientelismo, uma das herança do Império, nosso ancien régime tupiniquim, e sustentado pelo dinheiro gerado com a cafeicultura. Essa oligarquia agrária detentora do poder representaria o que temos denominado de forças políticas conservadoras. Na época, as forças políticas renovadoras, que deveriam gerar o embate com as conservadoras, para criar uma modernidade sob tensão na qual pudesse florescer um modernismo vigoroso, de acordo com nossas considerações anteriores, seriam representadas pela nanica burguesia, particularmente a paulistana, à qual, por coerência de princípios, as forças estéticas renovadoras deveriam se aproximar, para combater as forças estéticas conservadoras que, também por coerência de  princípios, deveriam estar sob as asas da oligarquia, dona do poder. Porém, aqui surge uma aporia na transposição do modelo teórico, baseado nas condições externas, para as condições internas. Os próceres modernistas alinharam-se com a oligarquia. É o próprio Mário de Andrade que diz: “Consagrado o movimento pela aristocracia paulista, si ainda sofreríamos algum tempo ataques por vezes cruéis, a nobreza regional nos dava mão forte e ... nos dissolvia nos favores da vida.” (MA, op. cit., p. 238, 1972)(7). Nosso modernismo brotava, então, de uma modernização pobre, no seio de uma modernidade pífia, unido a forças políticas conservadoras (8). 
       Consideremos, finalmente, o vértice das forças estéticas renovadoras, em nosso triângulo de Anderson.. No período 1900-1922, segundo a análise de Antonio Candido (op.cit. pp. 135-147, 1965), temos uma literatura de permanência, “satisfeita, sem angústia formal, sem rebelião nem abismos. Sua única mágoa é não parecer de todo europeia; seu esforço mais tenaz é conseguir pela cópia o equilíbrio e a harmonia, ou seja, o academismo.”(p.135), numa continuidade do naturalismo do final do século XIX, no que “se poderia chamar naturalismo acadêmico, fascinado pelo classicismo greco-latino já diluído na convenção acadêmica europeia, que os escritores procuravam sobrepor às formas rebeldes da vida natural e social do Nôvo Mundo.”(p.137). Acrescentamos, então, academicismo frouxo, fraco, subnutrido, raquítico que configurou as forças estéticas conservadoras contra as quais as forças estéticas renovadoras deveriam se embater, para gerar nosso modernismo. Ora, diante de um opositor medíocre, a polarização dialética tente naturalmente a se enfraquecer, e a mediocridade generalizar-se. O Movimento Modernista Brasileiro rompe com o academicismo vigente, porém sem o  vigor necessário para se impor generalizada e persistentemente. A corrente literária estabelecida continua a fluir paralelamente e o próprio Movimento, já em 1924 sofrerá seu primeiro abalo com O Manifesto de Oswald de Andrade. Na fase heroica do movimento a pesquisa lírica tanto formal quanto de conteúdo, representa aspecto relevante. No Prefácio Interessantíssimo lê-se: “Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu inconsciente me grita. Penso depois..., Arte, que, somada a Lirismo, dá Poesia ..., Que Arte não seja porém limpar versos de exageros coloridos. Exagero: símbolo sempre novo da vida como do sonho ..., Minhas reivindicações? Liberdade. Uso delas; não abuso. Sei embridá-las nas minhas verdades ... Lirismo: estado efetivo sublime – vizinho da sublime loucura ..., Parece que sou todo instinto ... Não é verdade. Há no meu livro, e não me desagrada, tendência pronunciadamente intelectualista ...”. Além disso, desenvolvem-se estudos sobre a arte tradicional brasileira, fonte de inspiração para muitos escritos e o primeiro livro de poesias do movimento, Paulicéia desvairada, canta regionalmente a cidade materna do poeta. 
     Neste cenário, timidamente renovador, Manifesto, ainda que com suas idiossincrasias, anteriormente apontadas, e Poesia Pau-Brasil, acabam dando novo alento ao nosso franzino movimento de renovação cultural, reforçando a consciência de que a modernidade possuía uma problemática local (DANTAS, op. cit. ). A paubrasilização do Brasil levada avante por Oswald, impulsionada, como vimos, pelo primitivismo artificial parisiense, acabou sendo potencializada em solo brasileiro pelo fracote Movimento Modernista da primeira fase por conta da importância que o Movimento atribuía ao papel edificante da cultura brasileira como elemento de formação e afirmação do pais. Na equação resultante da justaposição do Manifesto Pau-Brasil com o Movimento Modernista da primeira fase ocorre uma inversão de sinais e o que deveria ser negativo passa a ser positivo. A inferioridade reverte-se em superioridade. A desvantagem transforma-se em vantagem. Se nos países centrais o modernismo autêntico foi radical, revolucionário, almejando utopias, no Brasil, dadas as nossas peculiaridades, acabou encontrando solução específica e original (SIMON, op. cit.). Em sua fase inicial há revolta contra o velho e há destruição dos padrões estabelecidos, como que preparando o caminho para a construção do novo, porém sem perder de vista o passado o qual, sempre referido ao presente, deve ter seu peso sistematizado e deve ser tradicionalizado, lembrando as palavras de Mário de Andrade (SIMON, op. cit.).   Intensifica-se o culto do pitoresco nacional, a indagação sobre o destino do homem brasileiro e de uma literatura que exprimisse nossa sociedade. Tudo dentro de um clima triunfalista com a liberação de recalques históricos, sociais, étnicos, transformando nossas inferioridades em superioridades ( CANDIDO, op. cit.). Para o poeta pau-brasil, tanto do lado formal quanto em função da matéria que trata de organizar, a criação busca exibir o descompasso histórico através de meios os mais heterodoxos, usando, porém, elementos de familiar singeleza, procurando a máxima brevidade, cultuando o achado feliz, tudo com liberdade e irreverência (SCHWARZ, 1987). Para tentar ilustrar as ideias aqui apresentadas tomemos o poema    “ a procissão”, da seção “Postes da Light”, do livro Pau-Brasil (ANDRADE, Oswald, pp. 59-60, 1990):

a procissão

Os chofers ficam zangados
Porque precisam estacar diante da pequena procissão
Mas tiram os bonés e rezam
Procissão tão pequenina tão bonitinha
Perdida num bolso da cidade
Bandeirolas
Opas verdes
Crianças detentoras de primeiros prêmios
De bobice
Vão passo a passo 
Bandeirolas
Opas verdes
Um andor nos ombros mulatos
De quatro filhas alvíssimas de Maria
Nossa Senhora vai atrás
Um milagre de equilíbrio
Mas o que mais eu gosto
Nesta procissão
É o Espírito Santo
Dourado
Para inspirar os homens 
De minha terra
Bandeirolas
Opas verdes
O padre satisfeito
De ter parado o trânsito
Com Nosso Senhor nas mãos
E um dobrado atrás 
       
Versos de rima branca e métrica livre com vocábulos “duros”, pela presença de  ruídos consonantais oclusivos bilabiais e dentais, surdos e sonoros, com semântica “crua”, pela ausência de léxico empolado, espalham-se pelo poema desde os primeiros versos: “Porque precisam estacar diante da pequena procissão/ Procissão tão pequenina tão bonitinha/ Perdida num bolso da cidade” tudo muito longe da musicalidade vocálica e do gongorismo metafórico da poesia que se praticava até então. O primeiro substantivo do primeiro verso já trás uma incongruência léxica cheia de irônica: usa um galicismo – que na época, nosso provincianismo chique  tomava a liberdade de grafar até em francês: chauffeur – só que desrespeitando a norma culta de formação do plural: em lugar de choferes, coloca apenas o s ao final da palavra, resultando o chofers, bem próximo à fonética coloquial da palavra. Versos em orações subordinadas e coordenadas: “Porque precisam...; Mas tiram...; Mas o que mais eu gosto” conduzem a linguagem poética em direção à prosa e o uso de encadeamento (enjambement): “... primeiros prêmios/De bobice ...; ombros mulatos/De quatro filhas ...; Espírito Santo/Dourado ...; O padre satisfeito/De ter ...” cria efeito de coesão entre os versos tornando ainda mais compacto o poema já breve por natureza. O dístico: “Bandeirolas/Opas verdes” funciona como um refrão, um estribilho – que é expediente poético muito comum nas poesias popular e primitiva – e vai dividindo o poema em várias cenas: primeiro o plano geral, a procissão, corpo estranho na cidade progressista atrapalhando o trânsito de automóveis, depois, no interior do cortejo, o bloco das crianças escolares, seguido do andor de Nossa Senhora e pelo Espírito Santo e finalmente, o Nosso Senhor nas mãos do seu representante terreno embalado pela banda.  
A procissão, tradicional manifestação religiosa das mais singelas, representa agora um empecilho ao progresso da cidade – ela atrapalha o tráfego de automóveis. Os choferes zangam-se porque precisam estacar, parar subitamente, com perplexidade os seus veículos; zangam-se, mas tiram os bonés em sinal de cordial respeito e aproveitam para rezar, afinal somos católicos, apostólicos, romanos. O ato público de fé estendendo-se pelas ruas da cidade, outrora tão corriqueiro e benquisto, hoje é uma idiossincrasia malquista, porém, dada a tradicional formação religiosa do povo, respeitado e reverenciado. A procissão é pequena, pequenina (e bonitinha) – e aqui os diminutivos parecem assumir conotação disfórica, diminutiva mesmo – e perdida num canto da cidade. A cidade em crescimento só pode tolerar, ainda, esse tipo de manifestação de fé, em pequena escala e em algum de seus cantos, para minimizar a perturbação à ordem “normal” da vida que ela provoca. 
      No interior da procissão as bandeirolas e as capas verdes que os fiéis portam, colorem de ingênuo provincianismo a cena que pode ser visualizada em blocos. As crianças são aplicadas, são detentoras de primeiros prêmios, que o poeta desqualifica: “primeiros prêmios/De bobice”; como recompensa ganharam o privilégio de participar passo a passo da anacrônica cerimônia religiosa. Poderiam estar empinando pipa, jogando bola, brincando de roda ... O grande milagre de Nossa Senhora é ludibriar a lei da gravidade e evitar de se estatelar no chão, dada sua situação periclitante no andor sobre os ombros mulatos das quatro filhas alvíssimas de Maria. A epiderme das mulheres  já deu uma clareada, é mulata, fruto da nossa cordial miscigenação, reflexo, talvez, da brancura ariana da vestimenta própria das filhas de Maria, misturada à negritude africana da nudez própria dos escravos. Contudo, fica claro, nos mulatos ombros, o rebaixamento social, apesar da fé, das filhas de Maria. E o “eu” lírico manifesta-se, então, explicitamente, para dizer do que ele mais gosta: do Espírito Santo Dourado, para inspirar os homens da terra. Ostensório com seus raios de ouro, receptáculo da hóstia consagrada, corpo de Cristo. É de ouro, metal incorruptível, e daí por metáfora, como incorruptível foi Cristo e como incorruptível deveria ser a fé inspirada Nele. Mas podemos subverter esse ponto de vista e enxergar no “o que eu mais gosto” um forte traço de ironia, sendo o dourado do Santo Espírito metonímia de ouro mesmo, o qual, “Nesta procissão” tomada como metáfora da vida cotidiana, é o que inspira o comportamento dos homens da terra do poeta, isto é, eles só pensam é no vil metal e às favas a religiosidade e a fraternidade que deveriam pautar a vida dos homens. No último bloco, a figura central do cortejo: o padre. Insigne representante de Deus na terra, face às novas conjunturas modernosas, pode ser encarado como elemento retrógrado; ele é o responsável principal por todo o transtorno ocasionado no trânsito devido à procissão e, ainda por cima, é espírito de porco, fica satisfeito. Numa simbiose de poderio e proteção metafísicos, invoca a presença simbólica de Deus, trazendo nas mãos uma imagem de Nosso Senhor, mas poder e proteção terrenos não esquece, tendo a banda como guarda-costas, lascando um dobrado, que é marcha militar em ritmo rápido, alardeando barulho, impondo presença, abrindo alas, parando o trânsito, empurrando a procissão para frente.
         O poemeto de Oswald com toda sua brevidade conta uma história. A história de dois mundos em oposição. De um lado a cidade em progresso, com suas máquinas velozes, sua afobação (prenúncio de dias cada vez mais neuróticos), de outro, a cidade atrasada que ainda sai pelas ruas a expor sua religiosidade canhestra e quiçá anacrônica. É a história do Brasil progresso em conjunção com o Brasil retrógrado.  As máquinas são velozes, mas estancam diante do pequenino cortejo religioso e o reverenciam; o cortejo religioso, que agora é pequeno (no passado já deve ter sido grande), limita-se a um canto da cidade para não atrapalhar demais. É o moderno e o arcaico tentando se acomodar.  Para que a acomodação ocorra, precisam se encontrar e se encontram, ainda que num canto perdido da cidade; e se acomodam. É o nosso modernismo revelando com autenticidade sua face – a matéria poética local original ocupando forma poética cosmopolita modernista. É nosso local provinciano em posição original inscrito diretamente no cosmopolitismo da história da humanidade, tudo com um gostoso tempero agridoce de ironia.        

   

Notas

1. Antonio Candido, assinala a importância da arte primitiva, do folclore, na definição das estéticas modernas em geral e, particularmente para o Brasil, onde ocorreria a mistura ou  as vivas reminiscências de um passado próximo das culturas primitivas à vida cotidiana que nos predisporiam “a aceitar e assimilar processos artísticos que para a Europa representavam ruptura profunda com o meio social e as tradições espirituais.”.  “[...] As terríveis ousadias de um Picasso, um Brancusi, um Max Jacob, um Tristan Tzara, eram, no fundo, mais coerentes com a nossa herança cultural do que com a dêles.” “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, em: Literatura e sociedade, São Paulo: Nacional, pp. 144-5, 1965. Ocorre, porém, que as terríveis ousadias de um Picasso etc. faziam parte de um momento anterior; o primitivismo com o qual Oswald entra em contato na Europa estava anos-luz do primitivismo ruptor do passado, criador de novos conceitos artísticos, subversor dos métodos representacionais,  desbravador de novas vias de composição, tal qual o cubismo da sua primeira fase. O primitivismo inspirador de Oswald foi o primitivismo deglutido, digerido e defecado pelo mercado, transformado em artigo de consumo. Era um primitivismo anacrônico, defasado, em relação ao vigoroso primitivismo vanguardista original. Para Oswald, foi possível conviver (e tudo indica, sem muita disposição para  uma consciência crítica) com o processo de esvaziamento da cultura do mundo primitivo, com o despojamento da força simbólica dessa  cultura, transformada em mercadoria, pelo mercado. Pôde atestar que o espaço de reconhecimento das culturas primitivas era, então, para as culturas ditas avançadas, o espaço rebaixado do mercado. E, munido deste background, buscou transplantá-lo para a tacanha realidade brasileira, procurando imitar, com a inevitável redução de escala, condicionada pela natureza periférica do país, aquilo que os primeiro-mundistas praticavam, naquele momento.
2. Em depoimento ao jornal Correio Paulistano, de 26-6-1949, Oswald declarava: “O primitivismo que na França aparecia como exotismo era para nós, no Brasil, primitivismo mesmo. Pensei, então, em fazer uma poesia de exportação e não de importação, baseada em nossa ambiência geográfica, histórica e social. Como o pau-brasil foi a primeira riqueza brasileira exportada, denominei o movimento Pau-Brasil. Sua feição estética coincidia com o exotismo e o modernismo 100% de Cendrans ...” (citado por Haroldo de Campos, em “Uma poética da radicalidade”, no livro de Oswald de Andrade -  Pau-Brasil, 2. ed., São Paulo: Globo, p.31, 1990). Ora, o argumento pode até justificar o nome dado ao movimento, mas é pouco convincente quanto à essência do mesmo, à consistência do seu conteúdo, e até, à sua validade. As culturas dos povos periféricos que estavam sendo manipuladas pelo mercado primeiro-mundista eram, também, nas suas origens, nas suas raízes, todas primitivas mesmo, contudo, haviam sido apropriadas pelo mercado de arte dos povos donos do mundo e transformadas em objetos exóticos de consumo. Por que com a arte brasileira haveria de ser diferente? Principalmente levado em conta o fato de que essa arte destinava-se, pretensiosamente, não à importação, mas à exportação, nas palavras do próprio poeta. Exportação para onde? Evidentemente, para aqueles centros “desenvolvidos” cujo comportamento deturpador diante de tal tipo de arte era conhecido. Salta aos olhos a falta de um posicionamento crítico mais sério diante da questão; fica a impressão de uma apropriação, um tanto açodada e irresponsável, de uma ideia sugerida por uma situação sabida já de antemão degradada, ideia sugerida a um jovem artista ricaço, habitante do mundo periférico, em provinciana visita ao mundo desenvolvido. E, não nos esqueçamos, sem qualquer ranço xenofóbico, o pau-brasil não foi a primeira riqueza brasileira exportada; foi a primeira riqueza brasileira usurpada.
3. Embora o autor negue o fato ao afirmar: “Mas todo este prefácio, com todo o disparate das teorias que contém, não vale coisíssima nenhuma. Quando escrevi Paulicéia Desvairada não pensei em nada disto.” (Andrade, Mário, op. cit., p. 76, 1987). Está evidentemente, mistificando, criando efeito retórico de captação de benevolência, pois se todo o prefácio com todo o disparate das teorias que contém não vale coisíssima nenhuma, então, por que a perda de tempo em escrevê-lo?
4. Há uma dificuldade inerente à conceituação de modernismo que para Anderson (op. cit., p. 15) “é a mais vazia de todas as categorias culturais. Ao contrário dos termos gótico, renascentista, barroco, maneirista, romântico ou neoclássico, ele não designa nenhum objeto passível de descrição por si mesmo: carece de qualquer conteúdo positivo. ... o que se oculta sob esse rótulo é uma ampla variedade de práticas estéticas muito diversas – de fato incompatíveis: simbolismo, construtivismo, expressionismo, surrealismo.... Não existe nenhum outro indicador estético tão vazio ou viciado.” Talvez, possamos superar essa dificuldade conceitual se pensarmos no modernismo não em termos de escolas ou programas específicos, mas como algo maior, mais amplo, como uma atitude, um comportamento estético de vida do homem moderno, homem submetido à modernidade, fruto da modernização.    
5. Entendemos que a continuidade dos movimentos modernistas, num raciocínio com aparência paradoxal, só possa se dar aos saltos. Uma vez instaurado um movimento, vai ganhando contornos cada vez mais nítidos de conservadorismo, tradicionalizando-se e assim, criando condições para o surgimento de outro movimento de renovação. Um estado permanente modernista, num continuum, como quer Adorno, parece-nos impossível, nenhum movimento teria energia suficiente para manter-se em estado permanente de renovação (fenômeno análogo ocorre com as forças políticas renovadoras: por mais intensos que sejam seus ideais renovadores, uma vez instaladas no poder, tornam-se conservadoras). Quanto mais forte o conservadorismo do último salto modernista, maiores as chances de um novo movimento modernista forte. Quanto mais veloz e volúvel  a instauração de movimentos modernistas mais descaracterizados e fracos os novos movimentos. Essas ideias de certa forma se aproximam das ideias de Anderson  que afirma à p. 6 do seu artigo (op. cit. ): “A trajetória da ordem burguesa é antes curvilínea. Ela traça não uma linha reta que avança sempre em frente ou um círculo que se expande infinitamente em direção ao exterior, mas uma nítida parábola. A sociedade burguesa conhece uma ascensão, uma estabilização e um declínio. ... Noutras palavras, a história do capitalismo deve ser periodizada, ...”. E, por analogia, não só a história do capitalismo deve ser periodizada, como também os fenômenos sociais que dele fazem parte, como por exemplo, os movimentos de mudanças estéticas.
6. O Rio de Janeiro, capital política do país, era, na época, a cidade mais populosa, tinha uma classe média muito numerosa, principalmente formada de funcionários públicos, civis e militares, pesada herança do Império, tinha o principal porto marítimo e fora a região onde primeiramente a lavoura cafeeira ganhara importância econômica, tendo sido durante longo tempo o principal produtor, considerava-se, também, a capital cultural do país. Daí, com o crescimento da importância econômica e cultural de São Paulo, ter-se desenvolvido natural rivalidade, que se prolongou por décadas, entre os habitantes das duas cidades, com os cariocas sempre cultivando um status de superioridade e considerando os paulistas  caipiras provincianos e, com os paulistas considerando os cariocas uns praieiros folgazãos.  
7. Ataques, por exemplo, de Monteiro Lobato, escritor e dinâmico empresário do ramo editorial, elemento bem representativo da burguesia paulista em ascensão (força política renovadora) e que se opunha às forças estéticas renovadoras (liquidou com a exposição e com a carreira da pintora Anita Malfatti). Não nos esqueçamos do contra-ataque sibilino à burguesia no Ode ao burguês, no Paulicéia desvairada. Mário de Andrade complementa suas idéias dizendo: “ Está claro que não agia (a aristocracia paulista) de caso pensado, e si nos dissolvia era pela própria natureza e o seu estado de decadência. Numa fase em que ela não tinha mais nenhuma realidade vital, como certos reis de agora, a nobreza rural paulista só podia nos transmitir a sua gratuidade.”(ibidem). A aristocracia paulista poderia até estar em estado de decadência, diante das sucessivas crises que se abatiam sobre o café ocasionadas por superprodução e queda nos preços internacionais, resultado da sua tacanhice no enfrentamento dos problemas nacionais. Porém, manteve-se no centro do poder político até 1930. Se ela dissolvia os modernistas, e os modernistas por ela se deixavam dissolver era, na verdade, devido a um conluio oriundo de suas próprias naturezas. O alinhamento da oligarquia detentora do poder político com o movimento modernista talvez possa ser compreendido como um anseio de atualização cultural da classe dominante que tinha trâmite cosmopolita – graças às fortunas, que propiciavam viagens “culturais” frequentes ao exterior, e aos contatos internacionais  imprescindíveis na comercialização do café, que era a parte mais rendosa do negócio –   mas que no âmbito doméstico era provinciana. Nossa burguesia lutava para se firmar como classe. Mesmo depois de 1930 o poder político continuou em mãos  de oligarquia agrária, resultado da fratura da velha oligarquia do café, na Revolução de 30. A importância social da burguesia foi, porém, sempre crescente, até, finalmente, conquistar o poder político, na década de 50 com JK. Os próceres do modernismo eram direta ou indiretamente oriundos das tradicionais famílias oligárquicas; os burgueses, naquela altura do campeonato, eram principalmente os imigrantes (italianos, alemães, israelitas) enriquecidos no comércio e na especulação financeira, praticantes, em sua maioria, de um capitalismo aventureiro.    
8. Entre 1917 e 1924 São Paulo e Rio de Janeiro foram palcos de inúmeros incidentes de ordem política tanto à esquerda quanto à direta: greves operárias em 17, 18, 19 e 20; fundação do Partido Comunista Brasileiro, em Niterói, março de 22 (logo proibido e levado à clandestinidade); Revolta Tenentista de 22 (RJ), Revolta Tenentista de 24 (SP) e, conquanto essas agitações sociais possam ter esboçado em miniatura ao nível da consciência literária inspirações populares comprimidas, como observa Antonio Candido (op. cit., p. 144, 1965), para o Movimento Modernista Brasileiro, em sua fase inicial, muito pouco significaram. Somente na década de 30, é que nossas artes, especialmente a literatura, adquiriram características políticas marcadamente ideológicas, de esquerda e de direita.   


Bibliografia

ADORNO, Theodor W. “Aquellos años veinte”, em: Intervenciones. Caracas: Monte Avila Editores, pp. 53-61, 1969. 
ANDERSON, Perry. “Modernidade e revolução”, em: Novos estudos CEBRAP. São Paulo: CEBRAP, n. 14, pp.2-15, fev. 1986.
ANDRADE, Mário. “O Movimento Modernista”, em: Aspectos da literatura brasileira.  4. ed., São Paulo: Martins/INL/MEC, pp. 231-255, 1972.
_________________ Poesias completas. Belo Horizonte: Itatiaia/EDUSP, 1987.
ANDRADE, Oswald. Pau-Brasil. 2. ed., São Paulo: Globo, 1990.
_________________ “Manifeste de la poésie Bois Brésil” em: Anthropophagies. Trad. Jacques Thiériot. Paris: Flammarion, pp. 257-263, 1982.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.  
CANDIDO, Antonio. “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, em: Literatura e sociedade. São Paulo: Nacional, pp. 129-165, 1965.
DANTAS, Vinicius. “Oswald de Andrade e a poesia”, em: Novos Estudos CEBRAP. São Paulo: CEBRAP, n. 30, pp. 191-203, jul. 1991.
FIGUEIRA, Divalte Garcia. Brasil República. São Paulo: Aldema, 2000. 
SCHWARZ, Roberto. “A carroça, o bonde e o poeta modernista”, em: Que horas são? – Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, pp. 11-28, 1987.
SIMON, Iumna, Maria. “Notas de aula”, em: Curso de Teoria Literária II. São Paulo: FFLCHUSP, matutino, 2º semestre 2003.

(em “Ensaios Desnecessários” – inédito)


domingo, 12 de julho de 2015

CAUTELA FINANCEIRA

         Meu primo, que é um excelente negociante, se instalou na capital e logo depois me instou a fazer o mesmo argumentando que ali o dinheiro corria solto e até eu, com meus parcos dotes comerciais, me daria bem. Recusei veementemente o convite. Minha alegação foi simples. Aqui onde vivo, neste modesto vilarejo interiorano o dinheiro está praticamente parado e assim mesmo eu não consigo pôr a mão nele, imagine então num lugar onde ele corre solto.


(em “Crônicas Anacrônicas – Grotesca Filosofia Mediocridade Sublime” (inédito))

domingo, 5 de julho de 2015

LIMERIQUE DA ALEGRIA

Que todos os vícios venham a mim,
Desejos libidinosos a mais não ter fim,
Caridade, paciência,
Humildade,  obediência,
Que fiquem bem longe de mim.


(do livro “Poesia... Afinal pra quê”)