domingo, 30 de setembro de 2018

PT 3 - pai verdadeiro conhece seus compromissos

pai verdadeiro conhece seus compromissos
e os enfrenta sempre com grossa coragem
não se esconde atrás de índole retraída
bem como não comete traição aventurosa

mãe sagaz quer que sua prole no entanto
consiga benfazeja abastança contanto seja
ela de origem certa para depois não trazer
a malignidade que todo desacerto possui

procriar um cara vadio é grande desgraça
ladrão então nem pensar fora de cogitação
sempre há negócios misteriosos para fazer
que mais adiante causam um proveito vazio

vitimado pela febre da posse fácil de ouro
aceita vender a honra por pernicioso dinheiro
precipitado no erro aguarda o dia da confissão
para talvez transformar o ganho podre em cinza

domingo, 23 de setembro de 2018

PT 2 - no transcurso suado da vida nunca se lastimar

no transcurso suado da vida nunca se lastimar
quando o fado nos deixa infelizes não se indignar
mesmo sob efeito da dor mais atroz não se agitar
decerto são bons conceitos que tentam nos ensinar

mas cedo acendemos os mais estranhos vícios
e logo a eles descobrimos providenciais escusas
antes inútil consolo que acreditamos a salvação
invenção curiosa que no final termina em nada

curta é a aventura em que fomos confiar
de repente o tempo escuro faz tudo girar
com estupidez enorme sem dó de estragar

a divertida brincadeira que aqui foi nascer
e nos coloca sem graça de queixo caído
face ao fato inevitável de ter de morrer

domingo, 16 de setembro de 2018

PT 1 - então entornei a taça vazia

então entornei a taça vazia e
diletante celebrei o ícone morto
coração fraco haveria de chorar
sozinho arrasto o vil gravame
me perdendo no concreto
que se ergue sobre o asfalto
quente submisso aos pneus
soturnos louco derrotado
abafo o soluço e me infiltro
velhaco pelas vias ásperas da
cidade em que coagula um ar
de chumbo sobre águas turvas
a banhar esgotos podres
e o lixo resiste nas calçadas
abandonadas pisadas por nós
flácida chusma tacanha que não
se abala em poluir sem vislumbrar
o torto crucifixo que nos fará gemer
amargo à sombra da caverna
com nada mais para barganhar
além de apontar um balaço falso
ou decepar o frouxo pescoço inútil
encruzilhada para nos destruir
entrementes ausentes de rebuço
plácidos nos fechamos em torres
oblíquas para gozar molemente
lamentando a inefável corrosão
dos tímidos inertes escória a se
untar de ferro e fumaça ao estalar
da dura calcadura e torcemos o
nariz ao mau cheiro mostrando
repulsa ao jogar-lhes gravanhas
sem nela tocar súbito algo ruge
força cuspir o fel da garganta
mas em seguida se acalma logo
volta tudo de novo ao normal
com a cuspida caindo no nada

domingo, 9 de setembro de 2018

‘Y-pyrang-a

aqui do alto de uma das janelas do apartamento
vejo lá embaixo bom trecho do histórico riacho

certamente sua cara está bem mudada comparada
àquela que apresentava à época da independência

o projeto original do criador foi bastante modificado
o traçado reto obedece à vontade insaciável dos carros

se outrora suas plácidas margens ouviram
o retumbante brado de um heroico povo

hoje esse povo heroico cumpre patriótico rito e deposita
regularmente em suas erodidas margens ricas oferendas

entulho resto de obra sobra de telhado madeirame podre
sofá mesa cadeira esmigalhados carcaça velha de televisão

mal-agradecido o riacho rejeita tão respeitosas dádivas devolve
tudo nas chuvas seguintes em forma de magníficas enchentes

a etimologia do nome baseada no bom senso dos silvícolas
nos ensina do vermelho de suas antigas águas nada mais restar

desembocando ao longo de toda sua extensão os esgotos
se incumbem de colori-las de outra cor o marrom-cocô

também pudera outra não poderia ser mesmo sua sina
a dar-se crédito da nossa história às línguas viperinas

na ocasião do simbólico ato viera o príncipe regente à capital
da província paulista para resolver importante pendência política

embora no duro o que queria era afogar o ganso nas coxas apetitosas
da marquesa enquanto no rio chorava dona leopoldina desditosa

acolhido por imprevisto mal-estar intestino pedro primeiro ainda não feito
sem vacilar um segundo largou seu planaltino barro bem na beira do ribeirão

completando a obra ordenou lavassem a iminente bunda imperial nas então
cristalinas águas depois desembainhou a espada e soltou o famoso grito

domingo, 2 de setembro de 2018

Vaga visão

amanhecia
a vidraça da sala rústica
testemunhava
difusa claridade que pouco a pouco
substituía
o negrume da noite
uma aragem atrevida
percebendo um dos vidros da vidraça quebrado
escafedia-se para o interior
espalhando frio no ambiente

o homem
fechou o volumoso livro de aspecto envelhecido
pousou-o sobre a mesa de madeira carunchada
apagou o lampião
levantou-se lentamente
amassando a ponta de mais um cigarro
no tosco improvisado cinzeiro
entupido de guimbas e cinza
raspou a garganta para soltar o pigarro crônico que
há anos o acompanhava
espreguiçou-se
vestiu o gibão
dobrado no espaldar da cadeira de palha
única que havia na sala
esticou as perneiras
bateu duas ou três vezes as alpargatas
contra o chão cimentado
ajeitou o chapéu de couro na cabeça e
saiu porta afora

não se enxergava um palmo diante do nariz
cada beco
era dominado pelo cinceiro

o bléin-bléin-bléin do cincerro
vindo de um ponto perdido do meio do brancor geral
provavelmente alguma vaca recém-parida
conduzindo o sinuelo
para mais uma jornada de pastagem
feria com nostalgia os ouvidos
o homem
caminhou na direção do sinceiro
plantado ao lado da casa
seu verdadeiro companheiro sincero
pernoitava ali
numa cocheira improvisada

o homem
levantou a aldraba e
abriu a porteira apodrecida

o animal
soltou um brando relincho
parecendo querer saudar aquele que
chegava novamente tão cedo
foi a passo em sua direção

o homem
apanhou a albarda
há muito se fora o tempo dos arreios com adereços de metal
apoiada na cerca meio bamba e
ajustou-a sobre o lombo do cavalo
escondendo parte de suas costelas
recolheu a alabarda
caída no chão
montou
empunhando a arma
apontada para frente
imprimiu um trote ligeiro na montaria

posando de cavaleiro
furou a densa neblina
desaparecendo sem deixar vestígio