Fabiano era piloto da força aérea. Pilotava um caça. Obsoleto segundo
critérios tecnológicos considerados avançados, mas era o melhor que se poderia
ter para o momento diante da escassez de recursos destinados às forças armadas
de um país terceiromundista, pobre, raquítico, ainda que considerado, talvez
com certo ar de gozação, um país emergente. Emergente de onde? Das catacumbas
do inferno? Do meio das vísceras magmáticas do vulcão Pelée? Sei lá! Não sei.
Até pra coisa séria nunca tem verba. Educação. Saúde. Nem pensar. É que a
máquina do Estado é grande, pesada. Engrenagens emperradas. Enferrujadas.
Dinossauro carnívoro que devora todo o disponível pra se manter arrastando. E o
poder judiciário, então? E o poder legislativo? Ah! Deixa pra lá...
Fabiano pilotando seu caça costumava dar piruetas no ar. Não só no ar. Na
terra também. No último baile de aniversário da corporação entre passos de
bolero e requebros de tcha-tcha-tchá acabou, lá pelo meio da festa, se enroscando
nos cachos negros da cabeleira de Rosalinda. Antes do baile terminar, suas
línguas já tinham feito várias íntimas confissões, no escurinho do jardim
contíguo ao salão, ao som de merengues e de foxtrotes distantes. Quando a banda
atacou um dobrado, Fabiano não resistiu ao vigor dos acordes, se dobrou todo e
atacou Rosalina e, embora não sendo da cavalaria, cavalgou a moça com todo o
desembaraço de um cavalariço experiente daquele tipo específico de montaria.
Ela, por sua vez, corcoveando como uma égua no cio, impôs ao brioso cavaleiro
aéreo prova digna do melhor dos melhores peões de rodeio. Ao final da peleja,
ambos, gozados e relaxados, pra alegria de todos e felicidade geral da nação,
juraram amor eterno.
Rosalinda era filha de um tenente-coronel da força aérea e morava com a
família numa das casas da vila militar vizinha ao quartel onde Fabiano servia.
Fabiano, no último Natal, levantou voo com sua esquadrilha por volta da
hora do almoço para uma missão comemorativa daquela data tão significativa.
Rosalinda e sua família: o pai, o tenente-coronel; a mãe, do lar; os dois
irmãos mais novos, estudantes, pertinazes puxadores de um baseado; as duas
irmãs mais velhas solteironas, uma funcionária de carreira do ministério das
relações interiores, a outra funcionária concursada da câmara; os avós
paternos, ociosos; os avós maternos, também ociosos, enfim, todos os membros do
núcleo duro daquela família, encontravam-se, naquele momento, reunidos na sala
de jantar, em torno da grande mesa, iniciando o almoço comemorativo daquela
data tão significativa, numa demonstração inequívoca de fé, esperança e
caridade.
Fabiano, por puro exibicionismo, violando flagrantemente as regras de
segurança de voo, ignorando represálias certas que adviriam daquele ato
imponderado, mergulhou seu caça em direção à casa de Rosalinda. Quando estava
dando o rasante bem sobre o telhado do lar da amada um problema qualquer no
comando do leme do caça (houve a princípio suspeita de que houvera deficiência
de manutenção; o exame da caixa-preta, porém, nada conseguiu revelar de
conclusivo, tendo sido o processo arquivado por falta de provas uma vez que a
caixa-preta não foi localizada) provocou a perda do controle da aeronave que se
chocou com a casa explodindo bem no meio da sala de jantar.
Rosalinda e toda a família, infelizmente, apesar de toda a fé, pereceram
no acidente.
Fabiano não teve melhor sorte. Sequer teve tempo de passar pelo
purgatório. Foi direto pros quintos dos infernos.
Alguém, durante o velório, comentou, num tom que pareceu um tanto
irônico: “É, o bom piloto não deve dar
nunca rasante sobre a própria base.”
(do livro “Contos Medonhos”)