sábado, 27 de dezembro de 2014

O bom piloto...

Fabiano era piloto da força aérea. Pilotava um caça. Obsoleto segundo critérios tecnológicos considerados avançados, mas era o melhor que se poderia ter para o momento diante da escassez de recursos destinados às forças armadas de um país terceiromundista, pobre, raquítico, ainda que considerado, talvez com certo ar de gozação, um país emergente. Emergente de onde? Das catacumbas do inferno? Do meio das vísceras magmáticas do vulcão Pelée? Sei lá! Não sei. Até pra coisa séria nunca tem verba. Educação. Saúde. Nem pensar. É que a máquina do Estado é grande, pesada. Engrenagens emperradas. Enferrujadas. Dinossauro carnívoro que devora todo o disponível pra se manter arrastando. E o poder judiciário, então? E o poder legislativo? Ah! Deixa pra lá...
Fabiano pilotando seu caça costumava dar piruetas no ar. Não só no ar. Na terra também. No último baile de aniversário da corporação entre passos de bolero e requebros de tcha-tcha-tchá acabou, lá pelo meio da festa, se enroscando nos cachos negros da cabeleira de Rosalinda. Antes do baile terminar, suas línguas já tinham feito várias íntimas confissões, no escurinho do jardim contíguo ao salão, ao som de merengues e de foxtrotes distantes. Quando a banda atacou um dobrado, Fabiano não resistiu ao vigor dos acordes, se dobrou todo e atacou Rosalina e, embora não sendo da cavalaria, cavalgou a moça com todo o desembaraço de um cavalariço experiente daquele tipo específico de montaria. Ela, por sua vez, corcoveando como uma égua no cio, impôs ao brioso cavaleiro aéreo prova digna do melhor dos melhores peões de rodeio. Ao final da peleja, ambos, gozados e relaxados, pra alegria de todos e felicidade geral da nação, juraram amor eterno.
Rosalinda era filha de um tenente-coronel da força aérea e morava com a família numa das casas da vila militar vizinha ao quartel onde Fabiano servia.
Fabiano, no último Natal, levantou voo com sua esquadrilha por volta da hora do almoço para uma missão comemorativa daquela data tão significativa.
Rosalinda e sua família: o pai, o tenente-coronel; a mãe, do lar; os dois irmãos mais novos, estudantes, pertinazes puxadores de um baseado; as duas irmãs mais velhas solteironas, uma funcionária de carreira do ministério das relações interiores, a outra funcionária concursada da câmara; os avós paternos, ociosos; os avós maternos, também ociosos, enfim, todos os membros do núcleo duro daquela família, encontravam-se, naquele momento, reunidos na sala de jantar, em torno da grande mesa, iniciando o almoço comemorativo daquela data tão significativa, numa demonstração inequívoca de fé, esperança e caridade.
Fabiano, por puro exibicionismo, violando flagrantemente as regras de segurança de voo, ignorando represálias certas que adviriam daquele ato imponderado, mergulhou seu caça em direção à casa de Rosalinda. Quando estava dando o rasante bem sobre o telhado do lar da amada um problema qualquer no comando do leme do caça (houve a princípio suspeita de que houvera deficiência de manutenção; o exame da caixa-preta, porém, nada conseguiu revelar de conclusivo, tendo sido o processo arquivado por falta de provas uma vez que a caixa-preta não foi localizada) provocou a perda do controle da aeronave que se chocou com a casa explodindo bem no meio da sala de jantar.
Rosalinda e toda a família, infelizmente, apesar de toda a fé, pereceram no acidente.
Fabiano não teve melhor sorte. Sequer teve tempo de passar pelo purgatório. Foi direto pros quintos dos infernos.
Alguém, durante o velório, comentou, num tom que pareceu um tanto irônico: “É, o bom piloto não deve dar nunca rasante sobre a própria base.


(do livro “Contos Medonhos”)

sábado, 20 de dezembro de 2014

UMA HISTÓRIA DE NATAL

Era uma vez, não faz muito tempo, num lugar não muito distante, havia uma jovem muito bonita, mas muito maltratada. Seu nome era Sem Nome. Ela não conhecia nem pai nem mãe. Morava com uma bondosa mulher idosa, que Sem Nome chamava carinhosamente de madrinha, num barraco em uma das inúmeras favelas da cidade.
Sem Nome saía todos os dias bem cedo para trabalhar. Procurava sempre levar consigo sua filhinha de colo. Embora Sem Nome ainda não tivesse completado dezesseis anos já era mãe. Mãe solteira. A presença da pequenina no local de trabalho ajudava a incrementar as vendas. Sem Nome vendia chiclete em semáforo. A mercadoria não lhe pertencia, era fornecida por um importante comerciante através de uma rede de intermediários que explorava o trabalho de crianças e jovens carentes e abandonadas. O material era trazido do exterior de contrabando. Toda semana Sem Nome tinha de fazer a prestação de contas cabendo-lhe uma parte ínfima da receita apurada e recebia nova cota de caixas contendo envelopes de chiclete. Na maioria das vezes ficava devendo e o acerto era adiado para a semana seguinte.  
O céu azul claro sem nuvens daquela manhã anunciava um dia de sol intenso. Sem Nome, como de costume, saiu bem cedo para trabalhar, levando nos braços a filhinha. Mas as vendas naquele dia estavam fracas. Poucos carros circulando. A cidade estava anormalmente vazia. Devia ser por causa da data. Era dia de Natal. Com certeza a maioria das pessoas tinha ido viajar. Por volta do meio-dia Sem Nome resolveu parar de trabalhar e retornar para casa. Quando deixava o local notou um movimento mais intenso do que o normal embaixo do viaduto que havia nas proximidades do semáforo em que trabalhava. Ali viviam uns catadores de lixo reciclável que perseveravam em ali permanecer apesar das constantes incursões dos agentes da prefeitura na tentativa de expulsá-los. Num primeiro momento, Sem Nome julgou que a agitação fosse obra dos tais agentes, mas logo percebeu seu engano. De dentro de um carro enorme, imponente, estacionado ao lado do viaduto, pessoas bonitas, bem vestidas, distribuíam pequenos pacotes aos mendigos que se movimentavam alegremente em torno do grande carro fazendo algazarra.
Sem Nome aproximou-se. Uma das pessoas chiques de dentro do carrão acenou para Sem Nome e chamou-a: — Psiu, psiu, menina... pegue este presente. Feliz Natal para você e sua família — e estendeu para a menina uma pequena caixa embrulhada para presente.
Sem Nome agarrou o embrulho, piscando os olhos em sinal de agradecimento, deu um breve sorriso e com o coração quase saindo pela boca de tanta alegria afastou-se rapidamente. Estava tão contente que decidiu fazer uma extravagância. Foi de ônibus para casa. Ao chegar constatou que a madrinha não estava. Devia ter ido ao barraco da comadre que morava mais acima. A madrinha adorava uma fofoca. Colocou a filha no estrado improvisado de berço e correu abrir o pequeno pacote recebido de presente. Exultou de alegria quando viu o que tinha ganhado. Deu graças aos céus. Talvez agora conseguisse finalmente acertar suas dívidas com o atravessador. O presente era uma caixa fechada cheinha com envelopes de chiclete.    

(do livro “54 histórias que minha avó contava na Kombi”)
http://www.scortecci.com.br/lermais_materias.php?cd_materias=8285&friurl=:-54-HISTORIAS-QUE-MINHA-AVO-CONTAVA-NA-KOMBI--Omar-Ben-Iamin-:

sábado, 13 de dezembro de 2014

Casa tomada

“Casa tomada” é o conto de abertura de Bestiário, primeiro livro de contos de Julio Cortázar, lançado em 1951. Nele, podemos depreender dois planos narrativos: um plano literal e um plano simbólico.
No plano literal, podemos dizer, em linhas gerais, que a história é narrada em primeira pessoa, por uma personagem masculina anônima “yo”, que vive apenas com sua irmã, Irene, um “silencioso matrimonio de hermanos”, numa casa espaçosa e antiga, herança de seus ancestrais, localizada em Buenos Aires, Argentina, numa época imprecisa, posterior a 1939. Os irmãos, ambos entrados nos quarenta anos de idade, vivem, isolados do mundo, uma rotina monocórdia de levantar cedo, fazer a limpeza da casa, preparar as refeições e depois, Irene, tricota, tricota obsessivamente, sentada no sofá do seu quarto, enquanto o irmão distrai-se com leituras de literatura, em geral francesa, ou examina a coleção de selos deixada pelo pai. Não precisam preocupar-se em ganhar a vida porque têm uma propriedade rural que lhes garante o dinheiro necessário para viver. Subitamente, a tranqüilidade do casal é rompida por sons imprecisos e surdos provenientes da parte não freqüentada da casa, que é isolada do restante da habitação por uma maciça porta de carvalho. Ao ouvir os estranhos sons o protagonista atira-se contra a porta “antes que fuera demasiado tarde, la cerré de golpe apoyando el cuerpo; felizmente la llave estaba puesta de nuestro lado y además corrí el gran cerrojo para más seguridad.” Fora essa providência, os irmãos procuram manter a rotina de suas vidas sem tentar conhecer a causa dos estranhos sons, sofrendo no início algum transtorno porque “ ambos habíamos dejado en la parte tomada muchas cosas que queríamos.” Após alguns dias, os estranhos sons passam para o lado de cá da maciça porta de carvalho, que estava bem trancada, e começam a tomar conta de toda a casa. Os irmãos, então, passiva e melancolicamente, abandonam a casa, com o narrador, em derradeira providência, trancando bem a porta de entrada e jogando a chave no bueiro. 
No plano simbólico, a casa pode ser considerada como uma metáfora da memória do narrador, espaçosa e antiga, “guardaba los recuerdos de nuestros bisabuelos, el abuelo paterno, nuestros padres y toda la infancia.” Talvez, a sua memória genealógica onde mantém “necesaria clausura de la genealogia asentada por los bisabuelos”. E, quando um dia, ele morrer algum parente distante tomará posse dela. A casa é ampla, com muitos e diferentes ambientes, e tem uma maciça porta de carvalho, que quando aberta revela o quanto a casa é grande, mas que normalmente está encostada, delimitando o espaço existencial do narrador a uma pequena área da casa e deixando a maior parte dela isolada, só esporadicamente visitada para limpeza. Metaforicamente, a maciça porta de carvalho (logo, pode-se inferir, pesada e resistente) é o meio de controle sobre o ato de pensar e divide a casa-memória do narrador em dois compartimentos: a memória superficial e restrita das coisas mais próximas, do cotidiano, e a memória dos acontecimentos longínquos, pertencentes ao passado remoto, calcados nas profundezas da mente e ocupando-lhe largo espaço, lugar visitado de quando em quando para ser revivificado pela remoção da poeira que vai, implacavelmente,  depositando-se sobre os objetos-lembranças que ali se acumulam.
Irene, se nos remetermos a Hesíodo, é a divindade grega que juntamente com Eumônia e Dike simbolizam as Horas, deusas ligadas ao tempo de existência dos seres humanos, irmãs das Moiras, Cloto, a fiandeira, que tece o fio da vida, Láquesis, a distribuidora da Sorte, que atribuí a cada homem o seu destino, e Átropos, a que leva a tesoura com a qual corta o fio da vida. Admitido um deslocamento provocado pelo autor nas características de Irene, que passaria a ser fiandeira, e tricota obsessivamente sem parar, podemos associá-la metaforicamente ao tempo que tece inexoravelmente a trama da vida. Como é tempo transcorrido no espaço da casa-memória do narrador, é tempo mítico, circular, nome repetido trinta vezes nas poucas páginas do conto, metáfora do cotidiano   vivido pelo protagonista.
À metáfora casa-memória associa-se metonimicamente a metáfora Irene-tempo, estabelecendo o binômio espaço-tempo no qual o narrador vive as superficiais lembranças do seu dia-a-dia. Eis, porém, que do fundo da memória-casa começam a  manifestar-se estranhos e indesejáveis sons, imprecisos e surdos, emitidos por metafóricos fantasmas, ruídos-lembranças emanados do passado a perturbar o presente. A porta maciça de carvalho da memória-casa é rapidamente fechada e bem trancada, tentativa desesperada para impedir a invasão dos perturbadores ruídos em todo o espaço da casa-memória. Há um período de trégua no qual o protagonista tenta restabelecer a rotina de sua vida, embora sofra transtornos por ter deixado na parte tomada muitas coisas que desejava: “Estábamos bien, y poco a poco empezábamos a no pensar. Se puede vivir sin pensar.” Procura nos períodos de vigília afastar as lembranças, mas à noite, a mente é invadida (os parênteses são marca  concreta a indicar essa inserção) por agitados sonhos que “consistían en grandes sacudones que a veces hacían caer el cobertor”, entrecortados por “mutuos y frecuentes insomnios.
A trégua dura pouco. A maciça porta de carvalho é incapaz de manter os estranhos sons-lembranças confinados nas profundezas da casa-memória. Os indesejáveis ruídos passam para o lado de cá e invadem a casa toda : “Nos quedamos escuchando los ruidos, notando claramente que eran de este lado de la puerta de roble”. O narrador-protagonista, diante do avassalador assalto do passado em sua memória decide abandonar a casa, sai para a rua, deixando para trás tantos bens que lhe são tão caros, leva apenas a roupa do corpo e um relógio-pulseira. Irene larga os fios do tricô, tecedura mítica, que se estendem para o interior da casa. O tempo circular do passado deixa de operar, perdendo-se na casa-memória. O tempo passa a ser o tempo linear, cronológico, medido pelo relógio-pulseira, e muito desse tempo já se passou: “Ya era tarde ahora.” Mas o tempo mítico não é abandonado, o narrador sai da  casa abraçado à irmã (que talvez chorasse). Como derradeira ação, antes de afastar-se, o narrador, com pesar, tranca bem a porta de entrada e joga a chave no bueiro para evitar que algum pobre diabo venha a invadir a preciosa casa-memória, “la casa tomada” pelo seu passado.    


(do livro “Ensaios Desnecessários” – inédito)

sábado, 6 de dezembro de 2014

VOO CEGO

Todos nós. Todos talvez seja um pouco de exagero. Quiçá haja uma ou outra exígua exceção. De uma forma ou de outra, por bem ou por mal, sem querer ou com querer, sempre ou quase sempre, temos algum débito. Sempre ou quase sempre, temos alguma dívida, alguma coisa pendente, pequena ou grande, significativa ou insignificante, mesquinha ou magnificente. Mas isso, a rigor, não tem a menor importância, pois o que conta mesmo é a dignidade do dever cumprido. A mesma dignidade da mosca que voa resoluta em direção à teia da aranha.

(em "Crônicas Anacrônicas" – Grotesca Filosofia Mediocridade Sublime” (inédito)