domingo, 27 de maio de 2018

Prêmio literário

de repente me dei
a veleidades de escritor
afinal hoje
com este negócio de internete
todo mundo virou escritor
embora poucos saibam escrever
dentre os quais sem topete
não tenho certeza de poder
talvez não ser incluído
hoje praga maior que escritor
só palestrante de curso de autoajuda
que ganha uma nota preta vendendo receita
pra simplório achar a paz e ficar milionário
por favor não fiquem ofendidos
senão será um deus nos acuda

escrito o primeiro livro
não pestanejei um segundo e
me dirigi cheio de pompa
com os originais debaixo do braço
ao escritório da famosa editora multinacional
ia exigir a imediata publicação da obra genial
— ah ah ah doce ilusão
não passei nem da recepção

o remédio foi procurar uma editora não tão famosa
depois outra um pouco menos conhecida
depois outra
depois outra
depois aquela totalmente desconhecida
afinal só me restou mesmo
publicar a obra-prima e única
pagando do meu próprio bolso
fiz pelo bem da humanidade
nada a ver com esta coisa de vaidade

contratei a edição mais barata
em termos de qualidade de impressão
contava com a riqueza do conteúdo
pra superar a pobreza da aparência
e também de quantidade de exemplares
minha família é pequena
bem poucos são os amigos
pouco maior o número de desafetos

nem bem o livro saiu do prelo
enviei todo orgulhoso
e por que não confessar
também esperançoso
um exemplar pra concorrer
ao tradicional prêmio literário
se conquistasse tal galardão
seria minha consagração

passadas algumas semanas
recebi da comissão organizadora do prêmio
uma carta atenciosa
na gentil missiva aqueles ilustres senhores
me recomendavam que inscrevesse o livro
num outro concurso literário
recém-instituído no país
destinado a relevar novos talentos das letras pátrias

o nome do referido concurso era inspirado
igualmente num animal da ordem dos quelônios
mas cuja acentuação havia sido modificada
por uma simples questão de estilo
para acompanhar a prosódia natural
da língua portuguesa brasileira
que é como todo mundo sabe
principalmente paroxítona

segundo as palavras
ao que parece sensatas
dos amáveis responsáveis
pelo famoso prêmio
num concurso menos renomado
provavelmente
aumentaria um pouco minha chance
de conquistar alguma coisa que fosse

após ponderar sobre o assunto
decidi seguir o conselho
dos conceituados senhores
de diminuir o azar de entrar pelo cano
e inscrevi minha obra no novo concurso
o prêmio cagado do ano

passados alguns meses
ao ter conhecimento dos resultados
pela imprensa especializada
confesso que fiquei meio decepcionado
não conquistei nem um premiozinho
um mísero que fosse a título de consolação
o que me levou a tomar uma decisão

em respeito ao bom senso
e atento à minha ociosidade
vou mudar de atividade
vou encerrar essa história
de pretender ser escritor
doravante esquecerei a glória
serei só um telespectador
desses em tempo integral
todo trabalho intelectual
vou de uma vez esquecer
e pregarei a bunda direto
bem em frente da tevê

domingo, 20 de maio de 2018

Pontos cardeais

subi num avião e fui em direção ao leste
pra tentar localizar o foco da infecção

encontrei país de tradição milenar falando língua moderna
nowadays here in china we make everything

se confúcio fosse vivo será que entenderia tamanha confusão?
o velho mao diria em bom mandarim pior só puxar palanquim

espelhando-me no exemplo dos grandes viajantes do passado
peguei um transporte em pequim e segui o caminho das mercadorias

vim para ocidente desemboquei bem aqui no meio do novo oeste
principal centro consumidor de todas as quinquilharias made in china

um tanto desanimado vesti meu gasalho e tomei a rota do sul
após uns dias de navegação me deparei com um bando de pinguins

todos eles cobertinhos por reluzente espessa camada de petróleo
se ajeitavam debaixo do buraco de ozônio para melhor se secar

em busca de boa sorte apontei rumo norte
subi um alto edifício no polo financeiro do mundo

para minha desagradável surpresa fui acolhido pelos braços da morte
quando o tal edifício alto veio abaixo ao colidir com uma aeronave

domingo, 13 de maio de 2018

Poetar hoje

poetar hoje perdeu o charme a elegância
a importância que teve no passado
o poeta hoje é uma figura sem valor
completamente desprestigiado
o editor hoje só de olho no mercado
foge da poesia como da cruz foge o diabo
exceção bem rara para
um ou outro poeta muitíssimo afamado
assim enquanto paciente aguarda a consagração chegar
resta ao poeta hoje ilustre desconhecido
ao menos um consolo literogeniturinário
fazer do seu poetar um punhetar
e ir gozando o melhor que puder um gozo solitário

domingo, 6 de maio de 2018

Poema escatológico

merda tudo é uma merda
eu sei que vocês vão dizer que é tudo mentira
que eu invento estas coisas só pra extravasar
meu péssimo pessimismo meu mau humor crônico
mas podem crer é tudo verdade isto que me aconteceu
juro por deus
o dia amanhecera lindo ensolarado
logo cedo no café da manhã falei pra minha querida esposa
— amor vamos para o litoral aproveitar o feriado
ao que ela me respondeu
— vida minha vai você prefiro ficar em casa curtindo meu resfriado
decidi ir mesmo sozinho
quando fui dar partida no carro a bateria estava arriada
o auto elétrico socorro demorou um tempão
e cobrou uma nota preta por uma bateria nova
peguei a estrada completamente superlotada
no meio do caminho parei num posto de combustível
pra botar gasolina no tanque e tirar a água do joelho
a gasolina estava 30% acima do preço tabelado
e tinha uma baita fila pra entrar no sanitário
chegada finalmente minha vez de urinar
me deparei com uma privada tão entupida
que a merda escorria pela borda
a cena me causou tamanho engulho
que o xixi ficou com a saída bloqueada
na orla da praia considerei ter dado sorte
estacionei o carro numa vaga sombreada
debaixo de uma exuberante amendoeira
ao lado de um canal que conduzia um líquido putrefato
exalando um fedor insuportável de esgoto puro
para desembocar sem nenhum constrangimento
diretamente nos braços acolhedores do oceano
antes de dar um mergulho julguei saudável
fazer uma boa caminhada pela praia
logo aos primeiros passos na areia
senti uma coisa mole se entranhar pelos dedos do pé esquerdo
ao verificar de perto o ocorrido constatei se tratar
de genuíno cocô de cachorro de raça
procurei não perder a calma até achei graça
não pretendia de jeito nenhum estragar o meu dia
lavei aquela sujeira na espuma da arrebentação
tendo o cuidado de esfregar bem com areia molhada
depois entrei na água pra aliviar a bexiga que quase estourava
entre uma onda e outra boiava eu sossegado
quando sinto algo bater no meu costado
me virei e — valha-me deus nossa senhora
dei de cara com um cagalhão com mais de palmo
de comprimento bitola de pelo menos polegada e meia
num primeiro instante instintivamente pensei
— este baita quando saiu deve ter arrebentado de duas a três pregas
e completei o raciocínio
— a menos que o autor ou autora da façanha tenha o rabo acostumado
a agasalhar uma boa trolha
em seguida considerei oportuno sair da água dado o adiantado da hora
fui almoçar num restaurante chique da cidade
porque não era de hoje tinha eu essa vontade
esperei cerca de sessenta minutos por um mísero lugar
acomodado por fim numa mesa perto das toilettes
pedi ao maître uma caesar salad só pra esnobar
mas o destino resolveu rapidinho me castigar
protegida por um croûton
à sombra de uma folha de alface americana
besuntada de creme de leite e maionese
uns fiapos de queijo ralado nas costas
e um pedacinho talvez de alice na boca
uma lesma lentamente numa boa a sacana
fazia as necessidades bem no meio do meu prato
revoltado levantei e me mandei sem pagar a conta
quando cheguei onde tinha estacionado o automóvel
qual não foi minha surpresa desagradável?
o capô, o para-brisa, o teto, o vidro traseiro
estava tudinho coberto de cagada de passarinho
limpei o melhor que pude o vidro dianteiro
e embora não fosse tarde toquei embora pra casa
pois passava do meio da tarde e nunca gostei de viajar no escuro
fui chegar em casa com a noite já há tempo instalada
para um percurso de quarenta minutos em condição normal
gastei mais de quatro horas devido à quantidade de veículo
entrei no apartamento e gritei me sentindo um tanto ridículo
— cheguei querida
a resposta foi o silêncio acompanhado de um bilhetinho
carinhosamente deixado em cima da mesa da sala
— volto logo saí com umas amigas
quando me dirigia para o quarto do casal
senti uma terrível cólica intestinal
julguei fossem apenas flatos
mas avaliei mal a situação de fato
pensando em aliviar a pressão dos gases
borrei a cueca e boa parte dos outros trajes
pergunto a vocês então
— tenho ou não tenho razão? não foi tudo mesmo uma merda?