domingo, 29 de abril de 2018

Pesadelo

a noite a planície erma em negro manto envolve
não há lugar no céu de chumbo para luar nem brilho de estrela
cavalga vulto diáfano à frente de denso rastro de poeira
segue em direção dos agudos gritos
que pelos ares ecoam lancinantes
desesperados pedidos de clemência insistentes
— misericórdia misericórdia misericórdia
mais adiante seu cavalgar o vulto estanca
empina-se ainda repetidas vezes apeia-se depois da sela e
sem hesitação salta na escuridão do abismo infinito
cessam os gritos
silêncio

domingo, 22 de abril de 2018

Pedra

na úmida sombra sob seus pés a pedra musgosa
esconde minhocas lesmas e outros bichos
pedra pelada ao sol inclemente
aquece lagarto letargo aparente
uma pedra no meio do caminho atrapalha o sossego da gente
mas é pedra a ser removida em trabalho bem paciente
não adianta dar pontapé
arrebenta o sapato estupora o pé
uma pedra desgraçada de ruim
é a pedra fabricada pelo rim
na pedreira a dinamite dobra a dureza da pedra
e faz dela humilde matéria-prima para
calçamento de rua concreto lápide muro
parede pia piso tampo de mesa túmulo
de dentro da pedra em fino lavor
a obra de arte retira o escultor
até em história de lição de moral pedra participa
— quem nunca pisou na bola
que atire a primeira pedra

domingo, 15 de abril de 2018

Pergunta retórica

dizem que
quem não tem cão caça com gato
muito bem então pergunto
quem também não tem gato caça com quê?
com rato?
porque rato é o que não falta

domingo, 8 de abril de 2018

Perdão por vos servir

perdão por vos ter gerado
e em tudo e sempre me empenhado
para que crescêsseis sãos

perdão por vos ter alimentado
com o melhor de minha seiva
e assim desabrochásseis árvores

perdão por vos ter protegido
e prosseguir a ser o escudo
sobre o qual atirais impunemente vossas pedras

perdão por vos ter dado
tanto embora vossos olhos
cobiçosos continuam sempre a exigir mais

perdão por vos ter solicitado
pouco quase nada em troca
poupando-vos de maiores dissabores

perdão por vos ter servido
durante tão longo tempo
bem mais do que merecíeis

perdão por sem que o sabeis
continuar ainda a vos servir
enquanto houver força em mim

domingo, 1 de abril de 2018

Pelas vitrines da vida

homens mulheres
velhos crianças
jovens adultos
ricos pobres
de dia de noite
cotidianamente
mais e mais e mais
nos atropelamos pelas ruas
ávidos de ter

tomados pelo desejo
alucinante de consumir matéria
debruçamo-nos sobre as vitrines
na busca desenfreada
de todo tipo de coisa-objeto

donde proviria tal cupidez?
seria de fato necessária tanta matéria?
ou seria por sentirmos tudo se perdendo
é que insistimos nessa loucura de procura?

e se nos curvássemos mais amiúde sobre a vitrine
não essas de fora mas a de dentro a escondida
infinita incomensurável mágica encantada
única capaz de nos levar passear pela vida?
de revelar nosso outro rosto o rosto verdadeiro?

talvez ali descobríssemos que disso tudo aí
não necessitamos nada ou quase nada
talvez descobríssemos outro tipo de desejo
a avidez de ser