domingo, 25 de dezembro de 2016

Ficção e Realidade - Os Discursos na Obra de Salústio

Dentre as quatro dicotomias da Lingüística de Ferdinand Saussure uma delas é a que opõe  parole e langue. Parole é o ato particular e individual de pôr em execução, oralmente ou com a escrita,  a langue, que é o sistema linguístico, o conjunto de signos linguísticos impessoais e sociais (SAUSSURE, 2000). Na esteira do conceito de parole pode-se definir enunciação  como o ato através do qual um conjunto de frases é produzido por um dado emitente, em circunstâncias espaciais e temporais determinadas, isto é, num dado contexto; o resultado do ato de enunciar é o enunciado, ou o discurso. Enunciação é assim, o processo de transformação da língua em enunciado ou discurso. Enunciado ou discurso é um conjunto de frases num dado contexto  (ANDRADE, 2001).
Discurso, no campo da Retórica, tem também o significado particular de texto oral ou escrito destinado a ser proferido em público (FERREIRA, 1999), com o objetivo de persuadir. É com este significado que deve ser entendido discurso, no título do presente ensaio.
De acordo com LEITE (2001:87 – 90), no âmbito da narrativa, termo geral para prosa de ficção, discurso representativo, mimético, que evoca um universo de experiência, que pode englobar também a História (grifo meu), entendida tanto como movimento do real, quanto no sentido de  historiografia, ou discurso do historiador  o discurso, em seu significado linguístico pode ser:
-           direto: reprodução direta da fala e/ou pensamentos das personagens;
-           indireto: onde o autor conta indiretamente, com as palavras do narrador, o que uma personagem pensou ou disse;
-           indireto livre: combinação dos dois anteriores, com o resultado ambíguo de modo a confundir a fala e/ou os pensamentos das personagens e os do narrador.
Na Historiografia Antiga, os historiadores utilizaram, largamente, o recurso estilístico de narrativa em discurso direto, com determinado personagem assumindo a enunciação através de um discurso, peça oratória, não necessariamente verídico, construído dentro dos paradigmas da Retórica Clássica (REBOUL, 1994: 55 - 80), como maneira de aumentar a  força  persuasiva dos seus argumentos (do personagem orador e por consequência do historiador). Esta técnica construtiva do texto evidencia o caráter literário – narrativo dessa historiografia antiga, sendo o discurso um elemento estranho e diferenciador em relação às Historiografias Modernas. Esse estranho procedimento, no entender contemporâneo permite que se resgate o conceito apresentado por Beard e Henderson (1998: 19 – 22) de defasagem entre o mundo contemporâneo e o mundo dos gregos e romanos; defasagem que gera dificuldade e  relatividade de compreensão, pelo homem moderno, de obras produzidas há mais de 2.000 anos numa sociedade muito distante e diferente da atual.
Para a História Positivista, do século XIX, a construção do enunciado devia ser baseada em fatos, com muitos detalhes concretos, como prova de sua existência, buscando uma visão de mundo cientificista. É a adoção da maneira de mostrar o passado “como realmente aconteceu”; é a História adotando um paradigma “científico” ( BANN, 1994: 51-64).
Até o século XVIII, para os historiadores a construção artística do texto era fundamental; com a História “científica”,  iníciada no século XIX, o historiador deve menos narrar e mais relatar, construindo o texto com especificação completa das fontes sobre as quais se apoia, devendo estas ser, tanto quando possível, documentos originais, fazendo-se a separação entre fontes primárias e secundárias, de tal forma que o leitor possa reconstruir o texto e criticar os processos de inferência e discussão que o historiador utilizou. “O texto histórico apresenta-se como uma síntese: isso quer dizer que ele é composto das fontes originais especificadas nas notas e referências, e nesta medida sua particularidade está aberta ao exame minucioso e ao desafio. Mas ele também se apresenta como uma réplica do real.” (BANN, op. cit. p. 58).
Apesar de que esta é a receita que dá origem a boa parte da História que ainda hoje se estuda nas escolas, muitos historiadores buscaram alterar este quadro, com a criação de uma “nova História”, que teve origem a partir da fundação da revista Annales, em 1929, na França, movimento que a partir dos anos 70 e 80 espalhou-se pelo mundo. Peter Burke (BURKE, 1992: 7-37) resume em seis pontos o contraste entre a antiga história (positivista, ”científica” do século XIX) e a nova história:
1º - pelo paradigma tradicional a História deve tratar essencialmente de política; a nova História interessa-se por toda  atividade humana.
2º - os historiadores tradicionais constroem a História como um relato linear cronológico dos acontecimentos; a nova História preocupa-se com a análise estruturalista dos fenômenos, procurando entendê-los como componentes de um macro-sistema, onde as partes relacionam-se entre si e formam um todo.
3º - a História tradicional oferece uma “visão de cima”, concentrada nos chamados grandes feitos dos grandes homens; a nova História tem procurado oferecer uma “visão por baixo” analisando, por exemplo, a cultura popular, mudanças sociais e fatos envolvendo pessoas comuns.
4º - pelo paradigma tradicional a História deve ser baseada em documentos os quais, em maioria, provêm de registros oficiais, preservados em arquivos governamentais; os registros oficiais em geral expressam o ponto de vista oficial e a “História vista de baixo” tem exposto as limitaçóes desse tipo de documento.
5º - os historiadores tradicionais estão preocupados em encontrar resposta para atitudes individuais dos protagonistas da História; os historiadores da nova História estão preocupados tanto com atitudes individuais quanto coletivas, tanto com acontecimentos quando com tendências.
6º - de acordo com o paradigma tradicional a História é objetiva, cabendo ao historiador apresentar aos leitores os fatos “como eles realmente aconteceram”; a nova História considera irrealista este idealismo fatual, comprendendo que não se pode deixar de olhar o passado sob determinado ponto de vista particular.
“O relativismo cultural obviamente se aplica, tanto à própria escrita da história, quanto a seus chamados objetos. Nossas mentes não refletem diretamente a realidade. Só percebemos o mundo através de uma estrutura de convenções, esquemas e estereótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra.” (BURKE, op.cit. p. 15).
Como afirma Stephen Bann ( op. cit.  p. 61) “ Os historiadores estão conscientes de que não existe um único e privilegiado processo para exprimir a realidade do passado.”.
 A Historiografia Greco-Romana Arcaíca, de acordo com GENTILI e CERRI (1975), já apresentava contraposições tanto no plano das intenções e das enunciações programáticas, quanto naquele dos procedimentos narrativos. Preocupação da busca da verdade dos fatos, como em Tucídides e depois, em Políbio, com a rejeição de material herdado da tradição oral mítica, não sujeito a confirmação. Na fala de Tucídides, in GENTILI e CERRI (op. cit. p. 22):  “Forse l’assenza del favoloso renderà la narrazione meno piacevole all’auditorio; ma chi vorrà conoscere chiaramente la realtà dei fatti accaduti e di quelli identici o simili che potranno accadere conformemente alla natura dell’uomo, mi basterà che la giudichi utile.”. Se, para Tucídides, havia uma rejeição absoluta a qualquer elemento que não fosse passível de verificação crítica e estabelecimento da ideia do útil, como fim último do discurso historiográfico, para os seguidores de Isócrates, o discurso histórico era prolixo, com tendência à reflexão filosófica e moralizante, em linguagem sentenciosa e aforística, porém, num estilo áspero e frio (observar adiante posição divergente a esta assumida por Cícero). A esses se opunham historiadores como Duride de Samo para quem, o discurso histórico pertencia à esfera da mimesis, isto é, da representação icástica e fiel da vida humana; narração mimética, com todos os elementos agradáveis ao público, trazendo pela sugestão da palavra, a verdade da vida humana.
Duride enfatizava a exigência da palavra histórica escrita possuir a tensão e a concentração dramática da performance trágica. Seguindo os passos de Aristóteles, na Poética, mas com uma conotação teórica diversa, tirando a História do particular aristotélico, e colocando-a no plano da generalidade trágica, com a verdade mimética, como concentração dramática das paixões humanas.
“ In questa antinomia tra storia come narrazione del particolare e storia come individuazione del generale si definiscono, in termini ancor oggi attuali, i doveri dello storico riguardo ai fatti, cioè il problema del particolare e del generale, dell’oggettivo e del soggettivo, che è quanto dire del rapporto dialettico tra fatti e interpretazione.” (GENTILE e CERRI op. cit. p.33).
Na Antiga Historiografia, o uso do discurso, peça oratória, tinha força de elemento estilístico  da narrativa histórica e “ toda organização daquela fala deve-se ao ingenium do historiográfo. Mais do que verdadeiros, importa à narrativa que os discursos sejam verossímeis, isto é, que tenham credibildade (fides).” (MARTINS, 2002). Mas, afinal, o que é a fides?
Fides estava no centro da ordem política, social e jurídica de Roma. Seria uma manifestação de respeito aos compromissos assumidos, aos contratos, aos tratados. Juntamente com a pietas, que seria a atitude de respeito no relacionamento entre as pessoas ligadas por natureza, como por  exemplo, a obediência que um filho devia a um pai, e a uirtus, que seria a manifestação da virilidade, da coragem, formava uma trilogia que dominava todos os aspectos da vida militar, familiar, econômica e social na Urbs (GRIMAL, 1965).
“A fides é um conceito central no núcleo dos valores que regulam o organismo ideológico da sociedade romana; em linhas gerais, pode ser definida como o valor que garante o relacionamento entre duas partes. O relacionamento pode ser entre sujeitos iguais: como a amizade, o matrimônio, as alianças, os tratados internacionais e de uma maneira geral, os negócios jurídicos e comerciais. Mas a fides garante também (e talvez mais rigorosamente) os relacionamentos entre desiguais: entre patrono e cliente, entre vencedor e vencido, entre potência hegemônica e cliente estrangeiro, entre magistrado e cidadãos, entre juiz e réu.” ( E. Narducci, em nota à p. 93 de CICERONE, 1989).
 A raiz etimológica da palavra teria vindo do indo-europeu *bheidh que significaria tanto persuadir quanto confiar, dando origem no grego arcáico a “peitho”, eu persuado, como a “peithomai”, eu tenho confiança (ERNOUT,1951:414 – 416). Admitida essa origem, pode-se deduzir que a fides está no centro do  relacionamento entre indivíduos no qual, alguns passam a dar crédito, passam a confiar em outros que, por alguma razão, conseguiram persuadir os primeiros a procederem daquela forma.
 Na literatura do período republicano o significado corrente da palavra era “garantia” com um deslocamento do polo relacional, indo daquele  que  confia, por ter sido persuadido, para aquele  que   prática a ação; era a prática da ação o aval, a garantia do relacionamento: “ Fundamentum autem est iustitiae fides, id est dictorum conventorumque constantia et veritas... quia fiat quod dictum est, appellatam fidem – Fondamento della giustizia è la fede, cioè la osservanza e la sincerità degli impegni e degli accordi ... la fede si chiama così, perché si fa ciò che è stato detto.” ( CICERONE, 1989:92 – 93). Sob esse ponto de vista, pode-se associar  fides  com a qualidade de “sinceridade” da ação.  
Visto, porém, em seu caráter amplo, o relacionamento  de confiança que necessariamente deve prevalecer entre as partes, deve ser bilateral, deve ser selado, ainda que de maneira simbólica, pelo pacto, pelo tratado, pela aliança, pela foedus: “ accipe daque fidem foedusque feri bene firmum/ quod mihi reque, fide, regno uobisque, Quiritis, se fortunatum, feliciter ac bene uortat.” (ENNIO, 1923:28). Virgílio (1993:360), na Eneida, segue, literalmente,  os passos de Ennio: “Accipe daque fidem.Sunt nobis fortia bello/ Pectora, sunt animi et rebus spectata iuuentus.”   A fides é então um “juramento que compromete ambas as partes na observância de um pacto “bem firme”” (PEREIRA, 1989:324), no qual alguém, pelo seu comportamento, pela sua ação  garante o cumprimento do pacto (foedus), e outrém, face àquele comportamento, confia no cumprimento do mesmo.
Numa escala de responsabilidade moral, é razoável admitir-se que aquele que pratica a ação tem a primazia em fazer o pacto funcionar, pois é a partir de seu comportamento que o relacionamento criará condições de se dar com ou sem fides. Em outras palavras, o agente da ação deverá tomar a iniciativa em demonstrar “sinceridade” de propósitos a fim de que germine  “confiança” no outro, estando claro, porém, que este deverá receber a ação também com “sinceridade” para que a conexão adequada seja efetivada estabelecendo-se o “pacto de lealdade” (foedus) entre as partes. Retomando as palavras de Cícero supracitadas, concluí-se sem muito esforço que nada é mais embaraçoso à concretização desse “pacto” do que o comportamento espelhado no adágio popular: “ faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Porém, é o receptor da ação quem determina, “dá a última palavra”, no relacionamento com ou sem fides. O agente da ação toma a iniciativa para um relacionamento com fides, o receptor da ação sela, ou não, o relacionamento com fides.
Exemplos de fides são encontrados nas lendas e na história romanas, como por exemplo, a celebração da paz entre latinos e sabinos e o castigo que Meto, rei albano, sofre devido ao seu perjúrio (ofensa à fides), cenas descritas no escudo de Enéias ( Eneida, VIII); ou a lenda envolvendo o cônsul Régulo, que durante a Primeira Guerra Púnica, após obter diversas vitórias é feito prisioneiro, no norte da África; é então enviado a Roma para negociar sua libertação em troca de prisioneiros cartagineses, sob o juramento de que retornaria a Cartago caso não obtivesse êxito na missão. Régulo, em Roma, persuade o Senado a não entregar os prisioneiros, e volta para Cartago, para os suplícios da prisão, honrando assim seu juramento, pois era homem de fides   (PEREIRA, op. cit. p. 327).
Tito Lívio (1996: 43 – 46) relata episódio da luta dos romanos com os faliscos no qual um professor leva seus alunos para longe da escola, a fim de traiçoeiramente os entregar ao comandante do exército romano, o general Camilo; este não aceita a oferta, respondendo ao inimigo traidor que não eram com aquelas armas que o exército romano combatia; a população falisca entusiasmada com o procedimento leal do comandante, com a fides romana,  pede a paz. Saindo do contexto heroico e passando ao do quotidiano, pode-se lembrar o gênero de relação social tipicamente romano, aquele que unia cliente e patrono, no qual a fides também brilhava ( PEREIRA, op. cit. p. 327).
A literatura antiga latina, alicerçada na Retórica, dá, porém, para a fides um conceito bem diverso daquele até aqui descrito; abandona o significado de natureza moral, ética, assumindo significado de caráter eminentemente técnico, ligado à composição da obra. Cícero (1988: 480 – 481) discorrendo sobre as características oratórias dos diversos tipos de discurso afirma: “ Ergo in allis, id est in historia (grifo meu) et in eo quod appellamus “épideiktikón”, placet omnia dici Isocrateo Theopompeoque more illa circumscriptione ambituque, ut tanquam in orbe inclusa currat oratio, quoad insistat in singulis perfectis absolutisque sententiis ... Nam cum is est auditor qui non vereatur ne compositae orationis insidiis sua fides attemptetur, gratiam quoque habet oratori voluptati aurium servienti. Genus autem hoc orationis neque totum assumendum est ad causas forensis neque omnino repudiandum (grifo meu); si enim semper utare, cum satietatem affert tum quale sit etiam ab imperitis agnoscitur; detrahit praeterea actionis dolorem, aufert humanum sensum auditoris, toliit funditus veritatem et fidem (grifo meu).Cícero recomenda assim, para a narração da história, para os discursos epidíticos, e para os discursos forenses, embora para esses com moderação, o uso de recursos retóricos que visem agradar os ouvidos dos ouvintes, sem destruir o fundamento de verdade e de sinceridade que o discurso deve possuir. Quintiliano (1998: 204 –205), discorrendo sobre as características da oratória, afirma que a narratio, como qualquer outra parte do discurso deve ser ornada o máximo possível de todo embelezamento e sedução: (“Ego uero ... narrationem, ut si ullam partem orationis, omni qua potest gratia et uenere exornandam puto.”). Contudo, segundo o conselho de Horácio (1944: 246 – 247), os exageros devem ser evitados para não diminuir a autoridade das palavras: (“Multa fidem promissa levant, ubi plenius aequo / Laudat venales qui uult extrudere merce.”.
De acordo com a análise de Achcar (1994: 44):”Como termo técnico, fides descreve uma relação, não entre autor e obra, mas entre esta e o público. Fides é uma disposição que a obra deve suscitar no receptor, quer se trate de uma peça oratória, quer de um poema. É, portanto, resultado da composição adequada do texto” .
Fides deve nascer do relacionamento  entre obra e  receptor. O “ pacto de lealdade” (foedus) deve se dar entre obra e público que a recepciona, cabendo ao autor, através de sua persona artística  criar as condições para que seu discurso conecte-se a seu público. Fides associa-se à ueritas que o discurso deve produzir, não tendo necessariamente nada a ver com a personalidade do autor, a qual pode ou não corresponder aos  requisitos exigidos pela obra para que se estabeleça a fides. A obra é que deve conter “sinceridade” para que o público possa recepcioná-la com “confiança”.  “Portanto, em sua aplicação literária, fides designa um efeito da mimese bem realizada e não corresponde à ideia de sinceridade no que esta possa ter de extrapolação psicológica ou biografista.” ( ACHCAR,  op. cit., p. 45).
João Ângelo Oliva Neto, na Introdução a O livro de Catulo (CATULO, 1996: 36) analisando esse tema assim comenta: “Na verdade, esses artifícios são inerentes ao agenciamento da linguagem, com vistas a maior eficiência, segundo os preceitos da Retórica, que na Antiguidade incluía teoria e crítica literárias. Dessa forma, discursos em praça pública e poemas eram tanto mais eficientes quanto mais parecessem verdadeiros, quanto mais verossímeis.”.
Na Historiografia Romana Antiga, como já mencionado anteriormente, os autores, usando de seu ingenium,  lançavam mão de recursos da Retórica, para dar fides  a sua ars. Dentre esses historiadores encontra-se Salústio que, embora pudesse apoiar-se em fatos, criava discursos e colocava-os na boca de personagens históricos. A veracidade dos discursos não era o fator relevante. O importante era que os discursos dessem à narrativa verossimilhança, impressão de verdade, impressão de sinceridade, impregnando-a  com credibilidade, criando fides e levando o público a sentir confiança na mesma, a ser persuadido por ela, dando fides a ela, selando o pacto (foedus) entre obra e público.
Na obra A conjuração de Catilina, Salústio (1990) apresenta quatro exemplos magníficos de discursos, construídos com o ingenium do autor usando a ars da Retórica Clássica, para compor a obra historiográfica: o 1º discurso de Catilina; o discurso de César; o discurso de Catão: e o 2º discurso de Catilina. Esse discursos, como já se afirmou, têm o objetivo de fazer com que a obra historiográfica, como um todo, receba  e dê credibilidade ( accipe daque fidem); a veracidade dos mesmos não é relevante, o que importa é que pareçam verossímeis ao público, que dêem impressão de sinceridade, para que a recepção da obra seja mais intensa. Construir os discursos dentro dos preceitos da Retórica é um dos meios que o autor usa para tentar fazer com que os mesmos pareçam verossímeis. A seguir, faz-se breve análise dos discursos: 1º de Catilina, de César e de Catão. sob a égide da Retórica Clássica.
 O 1º discurso de Catilina (SALÚSTIO op. cit. pp. 106 – 108 (20)) quanto à inventio, permite que o mesmo seja classificado no gênero deliberativo: Catilina reúne um grupo de pessoas, numa parte reservada de sua casa, para deliberar sobre a conjuração, com o intuito de exortá-las, aconselhá-las a aderirem à conjuração; os frutos oriundos dessa conduta serão as benesses futuras de poder e riqueza; e o auditório é restrito.
O “ethos” do orador é coerente com o retrato  do mesmo traçado pelo autor (op. cit.  p 99 (5)): apresenta-se com destemor (“espírito atirado”) e muita eloquência; não dissimula sua ambição (“sempre a ambicionar coisas sem limites”) – “... as riquezas, a honra, a glória,... os magníficos espólios de guerra... quando chegar ao consulado (“o desejo desenfreado de se apoderar da república”)” – levada avante não importando por que meios; valoriza a astúcia – “... não deixaria o certo na busca do incerto” -; o incitamento à revolta e ao ódio (“... as discórdias entre cidadãos”) – “... os mesmos ódios”. Para inspirar confiança (fides) ao seu auditório procura se mostrar: sensato, dando conselhos pertinentes, fundamentados em fatos; sincero, não dissimulando suas ideias, pelo menos aparentemente; simpático, disposto a ajudar o auditório (a cada um caberá uma parte  do butim)
Catilina apresenta, como prova extrínseca para validar a conjuração, a injustiça social que assola a República, provocada pela oligarquia no poder. Salústio ao traçar o retrato de Catilina endossa, coerentemente, esse mesmo ponto de vista, da situação decadente da República, e aponta essa situação como agente motivador da revolta: “Estimulavam-no ainda os costumes corruptos da nação sobre a qual se abatiam dois vícios diferentes entre si, mas dos mais funestos: o luxo e a cobiça.”. Como prova intrínseca, Catilina usa o recurso da amplificação (de uso corrente nos discursos do gênero demonstrativo), levando ao limite do exagero uma situação, como maneira de validar seus argumentos : “ ... construindo dentro do mar e aplainando montanhas ... o que nos resta senão um mísero sopro vital?”.
Na busca por argumentos, Catilina utiliza vários “topoi” (Cf. REBOUL op.cit., pp.62 - 63): argumento tipo, na peroratio – “... a não ser talvez que eu esteja enganado e vós estejais dispostos mais a servir do que a mandar.”; tipo de argumento, de caráter positivo – “...  eu vos asseguro diante dos deuses e dos homens: a  vitória está em nossas mãos ... Ei-la, eis a liberdade com que sonhastes”; questão tipo – “Até quando enfim suportareis isso tudo, gente brava? Não é melhor morrer ... ? Por que então não vos despertais?”.
Por tratar-se de um discurso deliberativo, de acordo com Aristóteles, na dispositio, não haveria necessidade nem de exortium, nem de narratio, pois neste gênero de discurso, o auditório já sabe do que se trata e o discurso trata do que virá. Contudo, podemos considerar que o trecho: “ Se eu já não conhecesse bem vossa coragem... se nós mesmos não conquistarmos nossa liberdade.”, constitui um breve exordium. Catilina dá indicação de que por ser discurso deliberativo, o exordium seria desnecessário (“Meus projetos, vós todos já antes os ouvistes separadamente” – Salústio mostra que é conhecedor do gênero), a questão não é expor os fatos que serão tratados ou a tese que se vai tentar provar, o objetivo do exordium, no caso, é envolver o auditório no objetivo comum, a conjuração, mediante os “topoi” do enaltecimento, da confiança, da amizade : “ ... vossa coragem e fidelidade ... vossa coragem e lealdade a mim ... são iguais para vós as coisas que para mim são boas e más ... os mesmos anseios e os mesmos ódios ... amizade inabalável.”. A estratégia retórica de Catilina é clara: conquistar o auditório para sua causa, procurando agradá-lo (delectare) , num estilo ameno (medium) e enfatizando a equivalência de caráter (ethos) entre ele e o auditório.
Por ser discurso deliberativo a narratio  pode aglutinar-se à argumentatio, sendo o tipo de argumento a exemplificação, característico desse gênero de discurso. A narratio-argumentatio pode ser dividida em dois blocos, nos quais os exemplos sucedem-se em pares de oposições “nós-eles” – “os nossos problemas(nós)-a causa desses problemas(eles)”. O primeiro vai de “Depois que o centro das decisões...” até  “os riscos, os processos, a miséria.”. O segundo bloco é aberto pelos “topoi”: “Até quando... Não é melhor... Ora, eu vos asseguro ...” e retoma os exemplos em pares sequênciais de oposições “nós-eles” – “ Temos o vigor - ao contrário ...; eles sobrem riquezas -a nós faltem recursos ... Eles fazem casas - a nós não e dado ...; Embora comprem ... - Mas nós temos a penúria ... sopro vital?”. Essas oposições servem, pelo contraste que apresentam entre a situação privilegiada dos que detêm o poder, e a situação de penúria da  massa de excluídos, como exemplos para explicar (docere) num estilo direto, simples (tenue) usando a razão (logos)  para justificar  a revolta.
A conclusão do discurso, a peroratio inicia-se com dois “topoi”: “Por que...? Ei-la... sonhastes;” e desenvolve-se no sentido de elevar o ânimo do auditório para conquistá-lo, acenando com as recompensas a serem alcançadas; recompensas  que têm poder de persuasão muito maior do que qualquer discurso. O orador coloca-se numa posição de subserviência (cínica): “Como comandante ou soldado, estou à vossa disposição... quando chegar ao consulado” e finaliza com um “topos” que procura atingir o amor-próprio do auditório, num tom perverso que dá à renuncia de adesão à revolta caráter de pusilanimidade. O estilo é elevado (grave), visa incitar o auditório à ação (movere) elevando sua emoção (pathos).
O discurso de César ( op. cit. pp. 123 – 126 (51)) é deliberativo, dirigido aos membros do Senado, reunidos para decidir sobre as penas a serem aplicadas aos traidores envolvidos na Conjuração. César, como é característica do discurso deliberativo, argumenta mediante série de exemplos tomados da História de Roma, conjeturando sobre o futuro. O “ethos” do orador é pautado pela ponderação, pelo equilíbrio e, tanto quanto possível, pela clemência. Esse “ethos” é perfeitamente coerente com o retrato do orador traçado por Salústio (op. cit. p.130 (54)): “César se distinguia pelos favores e generosidade... ilustre pela doçura e pela clemência... amparando, perdoando)”. Seus conselhos são para que se tenha isenção, ponderação:” ... questões controvertidas devem estar isentas de ódio, amor, rancor, compaixão ... ponderai bem o que decidis para os outros.”. Vários “topoi” disseminam-se pelo texto: “Mas – pelos deuses imortais! – a que visa esse tipo de discurso?; A nenhum ser humano as injustiças que lhe fazem parecem de pouca monta; quanto maior é a fortuna, menor é a liberdade;  Mas – pelos deuses imortais – por que não acrescentaste ao teu parecer que em primeiro lugar fossem eles açoitados?; Pode haver punição rigorosa e cruel demais para homens culpados de tais crimes?”.
Na dispositio, há um breve exordium (“Todas as pessoas... agiram corretamente e com coerência”), como é característica do discurso de gênero deliberativo. César procura envolver o auditório em sua tese decidir com ponderação (“Quando concentramos nosso esforço na razão, o espírito mantém toda sua força) , sem ódio, longe do impulso da ira, agindo corretamente, com coerência. A narratio e a argumentatio (“Durante a  guerra da Macedônia ... a custo conservamos o que eles tão bem criaram.”) desenvolvem-se simultaneamente, como é, também, característica do gênero deliberativo de discurso, sendo a argumentação baseada em exemplos, tirados da História de Roma e construindo a confirmatio de sua tese: decidir sem extremismo, sem emoção, com sensatez, com a razão; todos os argumentos resumem-se ao  argumento único de decidir com sabedoria. Na peroratio (“Meu voto ... e a salvação de todos.”) César dá seu parecer sobre a pena mantendo seu “ethos” equilibrado, propondo castigos severos aos revoltosos mas evitando a pena de morte.
Quanto  à elocutio pode-se dizer que o discurso de César tem estilo simples (tenue), com objetivo de explicar (docere)  usando como prova a razão (logos). É coerente com o “ethos” do orador caracterizado pela benevolência e pelo equilíbrio.
O discurso de Catão é pronunciado logo após o discurso de César é, também, do gênero deliberativo, dirigido, igualmente, aos membros do Senado (assembléia), reunidos para decidirem sobre as penas a serem aplicadas aos prisioneiros envolvidos na Conjuração, visando aconselhar os senadores em sua decisão, sobre o que é útil para o futuro da República, lançando mão do processo indutivo de argumentação., tomando exemplos da História de Roma, bem como fatos da vida contemporânea do Estado. O “ethos” do orador é de integridade moral, severidade, de firmeza de opiniões. Não admite clemência para os culpados, ataca com dureza os costumes corrompidos da oligarquia. Esse “ethos” é coerente com o retrato que Salústio traça do orador (op. cit.  p. 130 (54)): ”Catão pela vida inatacável... a severidade lhe conferia respeito ... desgraça dos maus ... firmeza ... amor da modéstia, do dever ... da severidade. Em vários momentos utiliza-se de “topos” para construir seus argumentos: “ Mas – pelos deuses imortais! – é a vós que eu me dirijo; Mas não nos alonguemos sobre esse assunto; a situação é grave, mas não a temeis; Quando nos entregamos à preguiça e à covardia, vãs são as preces aos deuses”.
A dispositio pode ser dividida num exordium (“Bem diferente é... e a nossa existência corre perigo.”  Onde defende a tese de que os inimigos da pátria devem ser castigados sem clemência, contrária, portanto à de César. Na narratio-argumentatio usa exemplo da História de Roma no qual a severidade é a tônica: “No tempo antigo, A. Mânlio Torquato, durante a guerra contra os gauleses, mandou matar seu filho, por ter ele, contra suas ordens, combatido contra o inimigo...”. Seus argumentos são diretos, duros, atacando não só os conspiradores, mas também a oligarquia: “ Aqui alguém vem me falar em clemência e misericórdia... esbanjar os bens dos outros se chama generosidade; ousadia do crime se dá o nome de bravura”. Para derrubar os argumentos de César usa a confirmatio – refutatio: “César discorreu nesta assembléia... tendo, a meu ver, feito juízo equivocado... Seu parecer foi... Por isso essa medida é inócua...”. Todos os argumentos formam um argumento único, coeso: punição máxima aos criminosos. A peroratio (“É por isso que meu parecer... como se tivessem sido surpreendidos em flagrante delito.” Resume o ponto de vista defendido por Catão durante todo o discurso de que o crime cometido foi execrável e os envolvidos devam ser condenados à morte.
Quanto à elocutio pode-se considerar que o estilo é elevado (grave) com o objetivo de comover o auditório (movere), aumentando o nível de emoção (pathos) a fim de convencer a assembléia a acatar seu ponto de vista. E Catão vence: “ Quando Catão se senta, todos os consulares e grande parte do senado aplaudem sua moção... a decisão do senado é tomada de acordo com a proposta dele.” . 
Conclui-se dessa análise sucinta que os discursos construídos por Salústio obedecem aos preceitos da Retórica Clássica; com isso, para o público antigo que tomava contato com a obra historiogrãfica do autor, os discursos deveriam parecer verossímeis; esse fato deveria contribuir para o aumento da fides obra-público, intensificando a recepção da obra.     


BIBLIOGRAFIA

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BANN, Stephen – “Analisando o discurso da História” in : As invenções da
            História. Trad. Flávia Villas-Boas. São Paulo: Ed. UNESP, 1994.
BEARD, Mary e HENDERSON, John – Antigüidade clássica: uma brevíssima
            Introdução. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
BURKE, Peter – “Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro” in:
            A Escrita da história: novas perspectivas. Peter Burke (org.). Trad.
            Magda Lopes. São Paulo: Ed. UNESP, 1992.
CATULO – O livro de Catulo. Trad. introd. e notas João Angelo Oliva Neto.
São Paulo: EDUSP, 1996.
CICERO – Orator. LXI – LXII, 207 – 209. Trad. H. M. Hubbell. Londres:
            William Heinemann, 1988.
CICERONE, Marco Tullio – I doveri. Trad. Anna Resta Barrile. 2ª ed. Milano:
            Biblioteca Universale Rizzoli, 1989.
ENNIO, Q. –  I frammenti degli Annali. Fr. 51 e 52, Annalium Reliquiae I.
Editi e illustrati da Luigi Valmaggi   Torino: Giovanni Chiantore, 1923.
ERNOUT, A. et MEILLET, A. Dictionaire etymologique de la langue latine –
            histoire des mots. 3ª ed. Paris: Librairie C. Klincksieck, 1951.
FERREIRA, Aurélio – Novo Aurérlio século XXI. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova
            Fronteira, 1999.
GENTILI, Bruno e CERRI, Giovanni – Le teorie del discorso storico nel pensiero
            Greco e la storiografia romana arcaica. Roma: Edizioni dell’Ateneo, 1975
GRIMAL, Pierre – “ La vie et la coutume” in: La civilization romaine. Paris:
            Arthaud, l965.
HORACE – Oeuvres complètes. Epist., II, 10 – 11. Trad. François Richard.
            V. 2. Paris: Garnier, 1944.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes – O foco narrativo ( ou A polêmica em torno
            da ilusão). São  Paulo: Ática, 2001.
MARTINS, Paulo – Curso de Literatura Latina – Historiografia. São Paulo,
            FFLCH – USP, 1º semestre , 2002.
PEREIRA, Maria Helena da Rocha – “ Idéias morais e políticas dos romanos”
            In : Estudos de História da cultura clássica – II vol. Cultura romana.
            2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.         
QUINTILIANO – Istituzione oratoria. IV, 2, 116. Trad. Elena D’Incerti Amadio.
            Milano: Mondadori, 1998.
REBOUL, Olivier – Introduction à la rhétorique – Théorie et pratique. 2ª ed.
            Paris. PUF, 1994.
SALÚSTIO – A conjuração de Catilina. A guerra de Jugurta. Intr. e  Trad. Antônio da Silveira Mendonça. Petrópolis: Vozes, 1990.
SAUSSURE, Ferdinand – Curso de Lingüística Geral. 22ª ed. São Paulo:
            Cultrix, 2000.
TITE-LIVE – Histoire Romaine. Liber V, XXVI – XXVII. Trad. Gaston Baillet.
            Paris: Les Belles Lettres, 1954.
VIRGILE -  L’ Énéide. V. 150 – 151, C. VIII. Trad. Jean-Pierre Chausserie-Laprée. Paris: Éditions de la Différence, 1993.


APÊNDICE

Complementando algumas ideias apresentadas no corpo do ensaio, faço as considerações que seguem.
Consideremos um sistema cartesiano ortogonal de referência; vamos denominar o eixo horizontal de eixo do conceitual, ou do imaginário, ou do MITO; o eixo vertical de eixo do empírico, ou do real, ou da HISTÓRIA. Consideremos uma curva hiperbólica que tende, em cada um de seus extremos, assintoticamente para cada um desses eixos, tangenciando-os no infinito. Temos a seguinte figura:


Essa curva vamos chamar de curva de mimesis do emissor. Devemos entender emissor como o autor, não pessoa física, mas autor persona emissora, isto é, emissor da experiência literária, enunciador da obra (como esses conceitos não se restringem ao campo da linguagem verbal apenas, mas podem ser estendidos aos campos da linguagem visual, auditiva (musical), a persona emissora poderia ser generalizada para uma persona emissora semiótica). O que representa a curva de mimesis do emissor? Representa qual a tendência da obra entre os polos conceitual – empírico, imaginário – real, mítico – histórico na interface da persona emissora com a obra criada, independente do gênero da obra: épico, lírico, dramático, historiográfico, epistolográfico; independente de sua estrutura: foco narrativo, personagens, espaço, tempo, trama. Essa curva representa qual a tendência do texto: se ele tende para o conceitual, o imaginário, aquilo que usualmente se denomina de ficção, o mito ou, se ele tende para o empírico, o real, para a “realtà fattuale”, para aquilo que se costuma chamar de verdade, ou História.
Uma obra que esteja localizada, na curva de mimesis do emissor, por exemplo, no ponto (1), é uma obra fundamentada empiricamente, que tende para o real, para a História. Porém, por mais real que a obra seja sempre terá um resíduo, um vestígio, pelo menos, de conceitual, de imaginário, de Mito. O próprio ato de relatar a História, por mais fiel que seja aos fatos, já introduz um componente imaginário, inerente à linguagem verbal que é um ato mental racional da persona emissora. E, analogamente, por mais conceitual que seja qualquer narrativa, por mais imaginária que seja sua construção, por mais que se apoie no Mito, sempre terá um resíduo de empírico, de real, de História. Por mais imaginária que seja a obra, haverá sempre algo de fatual e de real concreto na sua ficção, nem que sejam as ondas sonoras de sua emissão oral, ou as palavras escritas que a compõem.
Consideremos um novo sistema cartesiano ortogonal de referência, no qual o eixo horizontal denominaremos de eixo da verossimilhança da obra, e o eixo vertical denominaremos de eixo da fides que se desenvolve entre a persona receptora e a obra. A persona receptora é a pessoa física (toda e qualquer) que ao entrar em contato com a obra (qualquer que seja o meio – visual, auditivo, tátil) transforma-se numa persona e recria a obra (sempre). Neste ato de recriação da obra a persona receptora associará à obra certa verossimilhança, certa impressão de verdade. É a persona receptora que dá  a palavra final quanto a verossimilhança da obra, no ato de sua recriação. A obra pode ter sido construída dentro de padrões de gênero, com engenho e arte pelo autor persona emissora, na tentativa de dar à obra a máxima  verossimilhança possível porém, se a persona receptora não tiver condições para perceber as qualidades da obra todo esforço da persona emissora terá sido em vão.Isso explicaria porque uma obra genial, muitas vezes, leva décadas para ter seu valor reconhecido. Ou então, por que uma obra considerada  inverossímil para muitos, para alguém “de muita imaginação” ou de conduta tendenciosa parece verossímil. O “espírito da época” pode contribuir para a verossimilhança da obra. Isso explicaria porque muitas obras medíocres têm sucesso retumbante e logo depois caem no esquecimento. A obra é a mesma o que muda é como ela é recepcionada.
Neste sistema podemos traçar a seguinte figura:


A curva que, partindo da origem do sistema de referência e sobe tendendo assintoticamente para um limite de fides denominamos  curva de mimesis do receptor. Lembremos que receptor não é a pessoa física, mas a persona receptora que se desenvolve na pessoa física, ao entrar em contato com a obra, recriando-a. Essa curva representa a interação que se desenvolve entre a persona receptora e a obra: quanto maior a verossimilhança que a persona receptora acha que a obra tem maior a fides que ela dá a obra. Maior a interação, maior a receptividade. A curva de mimesis do receptor é a interface entre a persona receptora e a obra; ela permite avaliar a intensidade do pacto, do foedus, entre a persona receptora e a obra. A fides tem um limite máximo atingido para uma verossimilhança infinitamente grande; essa verossimilhança infinita podemos chamar de verdade – o que é verdade, é, não admite qualquer dúvida, sua fides é máxima.
O que Salústio fazia em suas monografias históricas, ao criar discursos e colocá-los na boca de seus personagens, era, na curva de mimesis do emissor, deslocar o ponto (1)  para a direção do ponto (2), com o texto perdendo “historicidade” e ganhando “narratividade”. Com qual objetivo? Fazer, na curva de mimesis do receptor, o ponto (a) deslocar-se para a direção do ponto (b), para aumentar a receptividade do texto. Salústio devia saber que procedendo daquela maneira seu público recepcionaria sua obra com mais verossimilhança, com mais fides. 

domingo, 18 de dezembro de 2016

SONETO DA PODRIDÃO FAMILIAL


o peixoto disse pro edgar uma de doer
toda família por mais digna que seja
por mais aparente decência que se veja
tem um momento que começa apodrecer

quanto à minha não sei dizer com precisão
quando começou se dar seu apodrecimento
pelo cheiro não é de agora esse momento
sem dúvida faz um baita de um tempão

um fato posso deixar aqui consignado
sua podridão ficou mesmo insuportável
o pus passou a escorrer para todo lado

no ano que para mim será inolvidável
de dois mil e oito da graça de cristo
pois eu tenho absoluta certeza disto

domingo, 11 de dezembro de 2016

COTIDIANO BANAL


PELA JANELA DO QUARTO

VEJO O SOL SE ESCONDENDO

ATRÁS DA MASSA DE PRÉDIOS

A NOITE CHEGA AOS POUCOS



AMANHÃ HAVERÁ PARA MIM

TALVEZ OUTRO DIA E DEPOIS

OUTRO E MAIS OUTRO TALVEZ



MEU PERCURSO INSONDÁVEL

DO QUAL SÓ HÁ UMA CERTEZA

SEU PONTO FINAL INEVITÁVEL

domingo, 4 de dezembro de 2016

TER OU NÃO TER THAT’S THE POINT


O QUE DÁ MAIS FELICIDADE EM QUALQUER IDADE

OS PRAZERES DO CORPO ATÉ NOS DEIXAR TORTOS

OS DIVERTIMENTOS MUNDANOS E ATOS PROFANOS

O RISO FÁCIL A FÚTIL ALEGRIA E TAIS FRIVOLIDADES



OU AS CONQUISTAS OBTIDAS PELA FORÇA FÍSICA

SUJEITAS A TODA SORTE DE PERIGOS RETALIAÇÕES

PELA DETERMINAÇÃO DA VONTADE DO CARÁTER

TER CARA E CORAGEM PERSEVERANÇA ESPERANÇA



NÃO ACREDITO HAVER RESPOSTA UNIVERSAL

A CADA UM O QUE CONVIR PELO BEM PELO MAL

COMPRAR BARATO PODE SAIR CARO

PAGAR CARO PODE SER UM ENGANO

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

POEMA DO CROCHÊ


GOSTO DE CROCHÊ PORQUE É COMO ESCREVER

DESENROLANDO O FIO DA MEADA DA MENTE

A AGULHA ENTRE OS DEDOS DEDILHAM O TECLADO

SE SUCEDEM OS PONTOS AS VÍRGULAS OS NÓS

AS CORRENTES AS PALAVRAS EM TORRENTES

OU ENROSCAM CAEM NO LAÇO UM ABRAÇO

ENFILEIRADAS UMA DEPOIS DA OUTRA CALMA

NADA DE ATROPELO CUIDADO É O FIM DA LINHA

MUDANÇA DE RUMO É UM VAIVÉM INCESSANTE

LADO DIREITO VERSO REVERSO LADO DO AVESSO

A TRAMA VAI SE FORMANDO POR FIM É O TEXTO

TECIDO ESTÁ O POEMA O CROCHÊ O PRETEXTO

domingo, 20 de novembro de 2016

ULULO DO ÓBVIO


TEMPO INSACIÁVEL DE FUTURO

SÓ FAZ PRODUZIR PASSADO

ALIMENTANDO-SE DE PRESENTE

NUM SUCEDER INEXORÁVEL

ENTRE DOIS EXTREMOS INEXPLICÁVEIS

O NASCIMENTO E A MORTE

domingo, 13 de novembro de 2016

RESUMÍCULO


TIVE A GRAÇA

DE GANHAR A VIDA

DE GRAÇA

PORÉM SEM PRÉVIA CONSULTA



A PARTIR DE CERTO INSTANTE

PRECISEI PARTIR PRA LUTA

A FIM DE LEVÁ-LA ADIANTE



MUITAS VEZES SEM GRAÇA

TENHO DADO UM DURO DANADO

PARA EVITAR MAIOR DESGRAÇA

CONTANDO COM ENGENHO E SORTE



COMO PRÊMIO DE CONSOLAÇÃO

UM DIA SEREI POSTO NUM CAIXÃO

DESPACHADO PRO REINO DA MORTE

domingo, 6 de novembro de 2016

INCONGRUÊNCIA DE HUMANA CONGRUÊNCIA


O LÍDER DA SEITA PACIFISTA

CONSIDERADO GRANDE ATIVISTA

MATOU DIANTE DA MÃE VIÚVA IDOSA

O IRMÃO UM DOS MAIS RICOS DO PAÍS

O MOTIVO DA AÇÃO CRIMINOSA

SE DEU POR QUESTÕES DE HERANÇA

OS FILHOS DO MORTO AO QUE SE DIZ

SÓ TÊM UM PENSAMENTO VINGANÇA

CUSTE O QUE CUSTAR

OS PRIMOS AVISARAM VÃO REVIDAR

domingo, 30 de outubro de 2016

OU VAI OU RACHA


DIZEM QUE NOSSA FORÇA

VEM DE NOSSAS DERROTAS

TUDO BEM

DIGAMOS QUE SEJA ASSIM



QUANTO A MIM ME CONSIDERO

SUFICIENTEMENTE FORTALECIDO

A PARTIR DE AGORA GOSTARIA

SE POSSÍVEL DE ENFRAQUECER

domingo, 23 de outubro de 2016

ESTE BLÁ-BLÁ-BLÁ e.g.


O VALOR DADO ÀS COISAS

É FORMADO PELA OPINIÃO

QUE DELAS TEMOS ASSIM

PELO MENOS SE DIZ POR AÍ



ESSA POR SUA VEZ AMIÚDE

PARA REPULSA OU ATRAÇÃO

DESDE O BERÇO AO ATAÚDE

É NA CALADA MANIPULADA



A RESPONSÁVEL UMA FORÇA

ESTRANHA DITA FORMADORA

DE OPINIÃO QUE FEITO MORSA

NOS APERTA EM SUAS GARRAS



POR ISSO É NECESSÁRIO

EM PALAVRAS CLARAS

ESTARMOS SEMPRE ALERTAS

COM A MENTE BEM ABERTA



PARA QUE NOSSA CONDUTA NA VIDA

FIQUE POUCO PELO ALHEIO DIRIGIDA

ALCANÇANDO PLENITUDE BENFAZEJA

NO POSSÍVEL DA MEDIDA ASSIM SEJA

domingo, 16 de outubro de 2016

QUEM AVISA AMIGO É

UM ASSAZ ANTIGO FILÓSOFO ROMANO
EMÉRITO ORADOR CÍCERO ERA SEU NOME
EMITIU UM SOLENE PENSAMENTO CERTA VEZ
JAMAIS OS COSTUMES VENCERÃO A NATUREZA

SE O ILUSTRE PENSADOR LEGISLADOR
POR UMA DESSAS HIPÓTESES ABSURDAS
FOSSE TRANSPORTADO PARA A AMAZÔNIA
NOS DIAS DE HOJE POR CONTA DO COSTUME
CIVILIZADO DO USO INDUSTRIAL DE MADEIRA
FORMAÇÃO DE LOCAIS PRA PASTAGEM DE BOI
PLANTAÇÃO DE SOJA E QUE TAIS
CONSTATARIA SURPRESO QUIÇÁ
FICANDO QUEM SABE ATÉ BEM INVOCADO
QUE SEU PENSAMENTO ESTAVA EQUIVOCADO

SE NA SÉTIMA ESFERA  AGUARDASSE
MAIS ALGUM TEMPO TALVEZ DIRIA 
QUANDO TUDO ISTO EXPLODISSE
PELO EFEITO DA DEVASTAÇÃO
VIU COMO EU TINHA RAZÃO

domingo, 9 de outubro de 2016

AUTOCRÍTICA


NESTE NOSSO MAR IMENSO DE

MEDIOCRIDADE EXPRESSIVA

INSIGNIFICANTES SIGNIFICANTES ABUNDAM

AO LADO DE SIGNIFICADOS DESCOLADOS



MAROLAS IMAGÉTICAS ANTITÉTICAS

SE JUNTAM A ONDAS VERBORRÁGICAS

NAUSEANTES FORMANDO IMPREGNANTE

MARESIA CORROSIVA DO ESPÍRITO



COMO NESTES VERSOS TENHO DITO

domingo, 2 de outubro de 2016

CASAR POR AMOR


a bela jovem ficou desolada
talvez coitada
logo após seu fausto casamento
triste golpe da sorte
um súbito passamento
levou seu mui rico velho consorte
pra morar azar na casa da morte

domingo, 25 de setembro de 2016

CÔMODO HUMANISMO


da janela do pequeno apartamento

vejo sob o viaduto meu semelhante

se agasalhando em trapos imundos



fecho a cortina um tanto penalizado

volto a meu reduzido espaço privado

parco recurso um privilégio jucundo

domingo, 11 de setembro de 2016

NOVES FORA

DE TODA A CIÊNCIA HUMANA
UM CONCEITO DESENVOLVIDO
TALVEZ DOS MAIS IMPORTANTES
E TANTAS VEZES ESQUECIDO
SEJA O DO NÚMERO ZERO
QUE SE NÃO ERRO
QUER DIZER NADA

domingo, 4 de setembro de 2016

OTIMISTA DEMAIS

O MUNDO É UM DESERTO
PERCORRIDO EM BUSCA
DESESPERADA DO OÁSIS
DESAPARECIDO TÃO LOGO
IMAGINADO ALCANÇADO
MIRAGEM A DEMONSTRAR 
NOSSA MISERÁVEL CONDIÇÃO 
QUE PELO BEM E PELO MAL 
INSISTIMOS EM NÃO ACEITAR 

domingo, 28 de agosto de 2016

MUDANÇA DE RUMO

 vinha por uma vereda de
saccharum officinarum
quando me deparei com
vinhas que não eram da ira
e por elas me apaixonei

desse dia em diante a manguaça
deixei de vez não sendo mais pagão
tornado enófilo de paixão
passei a sorver só sangue de cristo
e achei bom registrar isto 

domingo, 21 de agosto de 2016

domingo, 14 de agosto de 2016

DIA DOS PAIS

SERÁ QUE SERÁS UM PAI
PIOR DO QUE TENHO SIDO?
SERÁ QUE TERÁS UM FILHO
MELHOR DO QUE TENHO TIDO?

domingo, 7 de agosto de 2016

UM BELO LUSTROSO COTURNO 44 PRETO

Suely sempre foi paciente
com as manias do Carlinhos
seu sistemático maridinho.

Por exemplo, uma vez por mês, pela manhã,
Carlinhos colocava suas sandálias 36 havaianas
sobre as sandálias 38 havaianas da Suely no quarto.

Era o sinal para ela se prevenir porque
naquela noite ele ia querer dela se servir.

Um dia Carlinhos chegou em casa mais cedo
sem dizer nada para a esposa.

Encontrou em frente à porta do quarto (trancada)
sobre as sandálias 38 havaianas da Suely
um belo lustroso coturno 44 preto.

domingo, 31 de julho de 2016

domingo, 24 de julho de 2016

POEMELHO AUTOMOTIVO

o careca indagado se ia recauchutar o pneu careca
respondeu indignado que todos deviam estar carecas de saber
que ele era um marido responsável e precisava antes
cuidar do pneu da esposa
que estava na lona
consertar o escapamento dela
que estava muito barulhento e soltando gás em demasia
alinhar o chassi da companheira
que estava bem torto todo fora de esquadro
trocar enfim a coroa
que estava com os dentes desgastados
por uma nova ou pelo menos seminova
que não roncasse tanto na subida

domingo, 17 de julho de 2016

INCULTURA GERAL

não ler os livros
do famoso escritor contemporâneo
é deixar de saber o que se está perdendo
ler é saber

domingo, 10 de julho de 2016

domingo, 3 de julho de 2016

ENQUANTO DURA

enquanto dura
esta podridão disfarçada
que antecipa a definitiva
como quem não quer nada
faço corpo mole e
vou enganando a sorte
à espera da chegada da indesejada
que atende também pelo nome de morte

domingo, 26 de junho de 2016

HUMANITARICINISMO

ficar sensibilizado
com a calamidade
de tanto abandonado
ao léu pela cidade

eles lutando na vida dura
pra não entregar a rapadura
e a gente com teto sólido
bom colégio e plano médico
eles só na sopa de osso
ou chupando carne de pescoço
e a gente com mesa farta
divertimento e dois carros novos
um na garagem do prédio
outro no estacionamento alugado

sentir o peito invadido
por irresistível vontade
de praticar caridade
de ajudar um desvalido

e numa atitude nobre
dar esmola a algum pobre
participar até de campanha
de solidariedade à pobreza
pelo rádio e pela tevê
nem que seja só pra inglês ver

é necessário contudo
que tudo fique na mesma
eles lá e nós aqui
senão alto lá
o negócio vira subversão

e gozar então o conforto agradável
de uma hipócrita felicidade
pelo gesto humanitário
com amor praticado

domingo, 19 de junho de 2016

DUVIDOSA ARROGÂNCIA

se houver um tribunal celestial
para julgar minhas desditas nesta terra
pouco me importarei se o juiz for
um deus inventado pelos homens
ou satanás, criado por deus
não vou ligar se as testemunhas forem
mensageiros da luz
ou espectros das trevas
receberei a decisão do julgamento indiferente
tanto se ela for pela condenação
quanto se ela for pela absolvição
estarei morto mesmo

domingo, 29 de maio de 2016

domingo, 22 de maio de 2016

REQUIESCAT IN PACE

impassível o morto
faz ouvidos moucos
pro choro dos vivos

calmamente aguarda
durante o velório todo
sem mexer
um dedo sequer
o momento da colocação
da tampa do caixão


domingo, 15 de maio de 2016

CONHEÇO-TE A MIM MESMO

Acredito que não possa haver nenhum conhecimento cem por cento objetivo. Entendido conhecimento cem por cento objetivo como o conhecimento totalmente fora do sujeito. Sempre haverá subjetividade no conhecimento por mais objetivo seja seu objetivo. O ato de conhecer contamina o objeto com subjetividade, pois o ato de conhecer só se dá se houver um sujeito cognoscitivo.
Por outro lado, creio que também não possa haver conhecimento cem por cento subjetivo. Entendido conhecimento cem por cento subjetivo como o conhecimento totalmente dentro do sujeito. Sempre haverá objetividade no conhecimento por mais subjetivo seja seu objetivo. O ato de conhecer contamina o sujeito com objetividade, pois o ato de conhecer só se dá se houver um objeto cognoscível. 
O sujeito sujeita o objeto e é sujeito pelo objeto. O objeto é sujeito pelo sujeito e sujeita o sujeito. 
O conhecimento nasce da simbiose do sujeito objetivado com o objeto sujeitado.
Não ou sim? 

domingo, 8 de maio de 2016

VOU-MEMBORA PRA BRAZÍLIA

vou-membora pra brazília
lá sou amigo do rei
lá tenho a mamata que quero
na câmara que escolherei
vou-membora pra brazília

vou-membora pra brazília
aqui eu sou pobre infeliz
lá rola muita maracutaia
conchavos bem producentes
lobbies e outros arranjos
pra mim e pros meus parentes
rola legal salvo-conduto
pra entrar no valérioduto

e para fazer campanha
andarei de avião
enganarei o povo burro
subirei no parlatório
defenderei o petrolão
e quando estiver acuado
deixo o mandato de lado
parto pra reeleição
contando histórias da carochinha
de como desde menininho
eu sempre fui tão bonzinho
vou-membora pra brazília

em brazília tem tudo
é outra civilização
tem esquema seguro
de promover corrupção
tem reajuste automático
tem propina à vontade
tem prostitutas bonitas
pra gente namorar

e quando eu estiver mais rico
mas rico de mais não poder
quando de noite me der
vontade de me mandar
— lá sou amigo do rei —
terei a mamata que quero
na câmara que escolherei
vou-membora pra brazília

domingo, 1 de maio de 2016

HISTORINHA CAIPIRA

Era uma vez um menino que vendia na feira dois canarinhos, cada um numa gaiola. O da gaiola da direita cantava de rachar o bico. O da esquerda ficava mudo. Só pulava de um poleiro a outro arrupiando as penas. Um homem passou e perguntou quanto custava o canarinho cantor. O menino respondeu que custava cinquenta reais. E o mudinho? — inquiriu o homem. O menino respondeu que custava o mesmo preço, cinquenta reais. O homem disse que aquilo não estava certo, que o mudinho devia custar menos, afinal ele não cantava. O menino respondeu que estava certo, sim. O cantor só cantava por causa do mudinho. Era como se o mudinho fosse o compositor e o cantor o intérprete. Se o senhor levar só o cantor, assim que ele ficar sozinho ele para de cantar. Tem que levar os dois. O cantor só canta por causa do mudinho. E depois se o senhor colocar os dois numa mesma gaiola nasce mais canarinho — respondeu o menino. O homem então levou pra casa por cem reais o casal de canarinhos. O macho cantador e a fêmea encantadora.


(em “Crônicas Anacrônicas – Grotesca Filosofia Mediocridade Sublime (inédito))  

domingo, 24 de abril de 2016

Canção do Asilo

minha terra tem politicalha
onde chafurdam os medacá
os políticos que aqui malversam
também malversam como lá

nosso céu tem mais fumaça
nossos morros têm mais favelas
nossos bosques já morreram
nossa vida mais esparrelas

em andar sozinho à noite
mais temor encontro eu lá
minha terra tem politicalha
onde chafurdam os medacá

minha terra tem horrores
que tais também encontro eu cá
em andar sozinho à noite
mais temor encontro eu lá
minha terra tem politicalha
onde chafurdam os medacá

permita deus que eu morra
vendo as coisas melhorar
livre dos horrores
que também encontro eu cá
distante de tanta politicalha
onde chafurdam os medacá

domingo, 17 de abril de 2016

POEMÍCULO IMPATRIDIÓTICO

as margens erodidas do pútrido tietê
fazem ouvidos moucos
aos brados roucos de um povo paranoico na tumba sufocados
é só libertinagem e o rei do tráfico
foragido
brilha no seu morro a todo
instante

sem pudor a desigualdade
conquistada
com braço forte
vista grossa e muita manha
mama em seu seio a bandalheira
e desfila sem respeito sua sorte

— é cilada armada —
o idiota ladra
— salve! salve-se! (quem puder)

um pesadelo imenso
um raio dissemina
desamor e desesperança
só porque em seu céu
tristonho e ímpio
a miragem do corinthians resplandece

nanico por sem-vergonheza
seria grande forte um colosso
não fosse a opção pela safadeza

terra espoliada
por um entre tantos mil
é por isso que
está esta cagada
dos filhos-da-puta é mãe servil
e pros párias nada
puta-que-pariu

deitado eternamente de bruços
ao somar é subtraído
e leva no rabo
profundo
aviltado feito gente preta e pobre
contaminado pelo sovaco do povo imundo

seus tristonhos campos têm mais
dores
do que a terra mais ferida
ossos busque sem mais vida
nessa vida em seus
dissabores

— é cilada armada —
o idiota ladra
— salve! salve-se! (quem puder)

desamor eterno peja sim seu bobo
o bárbaro que tenta o estrelato
e diga o verde papagaio nessa faina
sequaz do porvir de um inglório passado

mais persegue a injustiça a escrava
ao sul ao norte
enquanto os filhos-da-puta
tiram o cu da reta e escapam da labuta
como se fugissem da própria morte

terra espoliada
por um entre tantos mil
é por isso que
está esta cagada
dos filhos-da-puta é mãe servil
e pros párias nada
puta-que-pariu!