o mistério da morte não é maior que o mistério da vida
o ponto de chegada é o ponto de partida
e além desses pontos o nada
ao nascer fui colocado entre esses dois extremos coincidentes
sobrevivente a esmo a cada dia que passa me reinvento
se por acaso num dado instante desse percurso possa ter
a certeza intuitiva de que não sou o que meus pensamentos
têm inventado para a pessoa que eu penso ser
e perceba que tenho caminhado às cegas por caminhos tortos
e se passe que meus passos têm sido passos de um morto
e olhe ao redor e enxergue a mais completa escuridão
e o medo se aposse de mim para ele busco urgente solução
da profundeza do meu terror invento deus como salvador
e no desamparo que me domina ouso realizar uma façanha
propondo a ele sem o mínimo pudor uma descarada barganha
um ser humano na escuridão torna-se um criador e é
na escuridão das locas que são feitas as grandes trocas
para que não haja possibilidade de nenhuma desavença
proponho trocar minha redenção pela mais abstrusa crença
meu pensamento cego busca a fonte primária mais remota
para agigantar onde nada imagino existir antes força ignota
obediente à lei tão vasta transfigurada pela própria natureza
milagre da transubstanciação em credo da mais pura incerteza
o milagre da cegueira de dizer sim eu creio
tenho tirado o pão da boca de meu irmão mas eu creio
nunca tenho feito um ato de bondade mas eu creio
sou prepotente vaidoso mesquinho ambicioso mas eu creio
não me importa compreender o inexprimível sentido de salvação
abandono tudo o que é individual para me agregar aos salvos
quero me salvar e para isso ofereço minha crença
eis a grande barganha que eu faço
o medo me leva a esse embaraço