Dentre as quatro dicotomias da
Lingüística de Ferdinand Saussure uma delas é a que opõe parole e langue. Parole é o ato particular e
individual de pôr em execução, oralmente ou com a escrita, a langue, que é o sistema linguístico, o
conjunto de signos linguísticos impessoais e sociais (SAUSSURE, 2000). Na
esteira do conceito de parole pode-se definir enunciação como o ato através do qual um conjunto de
frases é produzido por um dado emitente, em circunstâncias espaciais e
temporais determinadas, isto é, num dado contexto; o resultado do ato de
enunciar é o enunciado, ou o discurso. Enunciação é assim, o processo de
transformação da língua em enunciado ou discurso. Enunciado ou discurso é um
conjunto de frases num dado contexto
(ANDRADE, 2001).
Discurso, no campo da Retórica,
tem também o significado particular de texto oral ou escrito destinado a ser
proferido em público (FERREIRA, 1999), com o objetivo de persuadir. É com este
significado que deve ser entendido discurso, no título do presente ensaio.
De acordo com LEITE (2001:87 –
90), no âmbito da narrativa, termo geral para prosa de ficção, discurso
representativo, mimético, que evoca um universo de experiência, que pode
englobar também a História (grifo meu), entendida tanto como movimento do real,
quanto no sentido de historiografia, ou
discurso do historiador o discurso, em
seu significado linguístico pode ser:
- direto:
reprodução direta da fala e/ou pensamentos das personagens;
- indireto:
onde o autor conta indiretamente, com as palavras do narrador, o que uma
personagem pensou ou disse;
- indireto
livre: combinação dos dois anteriores, com o resultado ambíguo de modo a
confundir a fala e/ou os pensamentos das personagens e os do narrador.
Na Historiografia Antiga, os
historiadores utilizaram, largamente, o recurso estilístico de narrativa em
discurso direto, com determinado personagem assumindo a enunciação através de
um discurso, peça oratória, não necessariamente verídico, construído dentro dos
paradigmas da Retórica Clássica (REBOUL, 1994: 55 - 80), como maneira de
aumentar a força persuasiva dos seus argumentos (do personagem
orador e por consequência do historiador). Esta técnica construtiva do texto
evidencia o caráter literário – narrativo dessa historiografia antiga, sendo o
discurso um elemento estranho e diferenciador em relação às Historiografias
Modernas. Esse estranho procedimento, no entender contemporâneo permite que se
resgate o conceito apresentado por Beard e Henderson (1998: 19 – 22) de
defasagem entre o mundo contemporâneo e o mundo dos gregos e romanos; defasagem
que gera dificuldade e relatividade de
compreensão, pelo homem moderno, de obras produzidas há mais de 2.000 anos numa
sociedade muito distante e diferente da atual.
Para a História Positivista, do
século XIX, a construção do enunciado devia ser baseada em fatos, com muitos
detalhes concretos, como prova de sua existência, buscando uma visão de mundo
cientificista. É a adoção da maneira de mostrar o passado “como realmente
aconteceu”; é a História adotando um paradigma “científico” ( BANN, 1994:
51-64).
Até o século XVIII, para os
historiadores a construção artística do texto era fundamental; com a História
“científica”, iníciada no século XIX, o
historiador deve menos narrar e mais relatar, construindo o texto com
especificação completa das fontes sobre as quais se apoia, devendo estas ser,
tanto quando possível, documentos originais, fazendo-se a separação entre
fontes primárias e secundárias, de tal forma que o leitor possa reconstruir o
texto e criticar os processos de inferência e discussão que o historiador
utilizou. “O texto histórico apresenta-se como uma síntese: isso quer dizer que
ele é composto das fontes originais especificadas nas notas e referências, e
nesta medida sua particularidade está aberta ao exame minucioso e ao desafio.
Mas ele também se apresenta como uma réplica do real.” (BANN, op. cit. p. 58).
Apesar de que esta é a receita
que dá origem a boa parte da História que ainda hoje se estuda nas escolas,
muitos historiadores buscaram alterar este quadro, com a criação de uma “nova
História”, que teve origem a partir da fundação da revista Annales, em 1929, na
França, movimento que a partir dos anos 70 e 80 espalhou-se pelo mundo. Peter
Burke (BURKE, 1992: 7-37) resume em seis pontos o contraste entre a antiga
história (positivista, ”científica” do século XIX) e a nova história:
1º - pelo paradigma tradicional a
História deve tratar essencialmente de política; a nova História interessa-se
por toda atividade humana.
2º - os historiadores tradicionais
constroem a História como um relato linear cronológico dos acontecimentos; a
nova História preocupa-se com a análise estruturalista dos fenômenos,
procurando entendê-los como componentes de um macro-sistema, onde as partes
relacionam-se entre si e formam um todo.
3º - a História tradicional
oferece uma “visão de cima”, concentrada nos chamados grandes feitos dos
grandes homens; a nova História tem procurado oferecer uma “visão por baixo”
analisando, por exemplo, a cultura popular, mudanças sociais e fatos envolvendo
pessoas comuns.
4º - pelo paradigma tradicional a
História deve ser baseada em documentos os quais, em maioria, provêm de
registros oficiais, preservados em arquivos governamentais; os registros
oficiais em geral expressam o ponto de vista oficial e a “História vista de
baixo” tem exposto as limitaçóes desse tipo de documento.
5º - os historiadores
tradicionais estão preocupados em encontrar resposta para atitudes individuais
dos protagonistas da História; os historiadores da nova História estão
preocupados tanto com atitudes individuais quanto coletivas, tanto com
acontecimentos quando com tendências.
6º - de acordo com o paradigma
tradicional a História é objetiva, cabendo ao historiador apresentar aos
leitores os fatos “como eles realmente aconteceram”; a nova História considera
irrealista este idealismo fatual, comprendendo que não se pode deixar de olhar
o passado sob determinado ponto de vista particular.
“O relativismo cultural
obviamente se aplica, tanto à própria escrita da história, quanto a seus
chamados objetos. Nossas mentes não refletem diretamente a realidade. Só
percebemos o mundo através de uma estrutura de convenções, esquemas e
estereótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra.” (BURKE,
op.cit. p. 15).
Como afirma Stephen Bann ( op.
cit. p. 61) “ Os historiadores estão
conscientes de que não existe um único e privilegiado processo para exprimir a
realidade do passado.”.
A Historiografia Greco-Romana Arcaíca, de
acordo com GENTILI e CERRI (1975), já apresentava contraposições tanto no plano
das intenções e das enunciações programáticas, quanto naquele dos procedimentos
narrativos. Preocupação da busca da verdade dos fatos, como em Tucídides e
depois, em Políbio, com a rejeição de material herdado da tradição oral mítica,
não sujeito a confirmação. Na fala de Tucídides, in GENTILI e CERRI (op. cit.
p. 22): “Forse l’assenza del favoloso
renderà la narrazione meno piacevole all’auditorio; ma chi vorrà conoscere
chiaramente la realtà dei fatti accaduti e di quelli identici o simili che
potranno accadere conformemente alla natura dell’uomo, mi basterà che la
giudichi utile.”. Se, para Tucídides, havia uma rejeição absoluta a qualquer
elemento que não fosse passível de verificação crítica e estabelecimento da
ideia do útil, como fim último do discurso historiográfico, para os seguidores
de Isócrates, o discurso histórico era prolixo, com tendência à reflexão
filosófica e moralizante, em linguagem sentenciosa e aforística, porém, num
estilo áspero e frio (observar adiante posição divergente a esta assumida por
Cícero). A esses se opunham historiadores como Duride de Samo para quem, o
discurso histórico pertencia à esfera da mimesis, isto é, da representação
icástica e fiel da vida humana; narração mimética, com todos os elementos
agradáveis ao público, trazendo pela sugestão da palavra, a verdade da vida
humana.
Duride enfatizava a exigência da
palavra histórica escrita possuir a tensão e a concentração dramática da
performance trágica. Seguindo os passos de Aristóteles, na Poética, mas com uma
conotação teórica diversa, tirando a História do particular aristotélico, e
colocando-a no plano da generalidade trágica, com a verdade mimética, como
concentração dramática das paixões humanas.
“ In questa antinomia tra storia
come narrazione del particolare e storia come individuazione del generale si
definiscono, in termini ancor oggi attuali, i doveri dello storico riguardo ai
fatti, cioè il problema del particolare e del generale, dell’oggettivo e del
soggettivo, che è quanto dire del rapporto dialettico tra fatti e
interpretazione.” (GENTILE e CERRI op. cit. p.33).
Na Antiga Historiografia, o uso
do discurso, peça oratória, tinha força de elemento estilístico da narrativa histórica e “ toda organização
daquela fala deve-se ao ingenium do historiográfo. Mais do que verdadeiros,
importa à narrativa que os discursos sejam verossímeis, isto é, que tenham
credibildade (fides).” (MARTINS, 2002). Mas, afinal, o que é a fides?
Fides estava no centro da ordem
política, social e jurídica de Roma. Seria uma manifestação de respeito aos
compromissos assumidos, aos contratos, aos tratados. Juntamente com a pietas,
que seria a atitude de respeito no relacionamento entre as pessoas ligadas por
natureza, como por exemplo, a obediência
que um filho devia a um pai, e a uirtus, que seria a manifestação da
virilidade, da coragem, formava uma trilogia que dominava todos os aspectos da
vida militar, familiar, econômica e social na Urbs (GRIMAL, 1965).
“A fides é um conceito central no
núcleo dos valores que regulam o organismo ideológico da sociedade romana; em
linhas gerais, pode ser definida como o valor que garante o relacionamento
entre duas partes. O relacionamento pode ser entre sujeitos iguais: como a
amizade, o matrimônio, as alianças, os tratados internacionais e de uma maneira
geral, os negócios jurídicos e comerciais. Mas a fides garante também (e talvez
mais rigorosamente) os relacionamentos entre desiguais: entre patrono e
cliente, entre vencedor e vencido, entre potência hegemônica e cliente
estrangeiro, entre magistrado e cidadãos, entre juiz e réu.” ( E. Narducci, em
nota à p. 93 de CICERONE, 1989).
A raiz etimológica da palavra teria vindo do
indo-europeu *bheidh que significaria tanto persuadir quanto confiar, dando
origem no grego arcáico a “peitho”, eu persuado, como a “peithomai”, eu tenho
confiança (ERNOUT,1951:414 – 416). Admitida essa origem, pode-se deduzir que a
fides está no centro do relacionamento
entre indivíduos no qual, alguns passam a dar crédito, passam a confiar em outros
que, por alguma razão, conseguiram persuadir os primeiros a procederem daquela
forma.
Na literatura do período republicano o
significado corrente da palavra era “garantia” com um deslocamento do polo
relacional, indo daquele que confia, por ter sido persuadido, para
aquele que prática a ação; era a prática da ação o
aval, a garantia do relacionamento: “ Fundamentum autem est iustitiae fides, id
est dictorum conventorumque constantia et veritas... quia fiat quod dictum est,
appellatam fidem – Fondamento della giustizia è la fede, cioè la osservanza e
la sincerità degli impegni e degli accordi ... la fede si chiama così, perché
si fa ciò che è stato detto.” ( CICERONE, 1989:92 – 93). Sob esse ponto de
vista, pode-se associar fides com a qualidade de “sinceridade” da
ação.
Visto, porém, em seu caráter
amplo, o relacionamento de confiança que
necessariamente deve prevalecer entre as partes, deve ser bilateral, deve ser
selado, ainda que de maneira simbólica, pelo pacto, pelo tratado, pela aliança,
pela foedus: “ accipe daque fidem foedusque feri bene firmum/ quod mihi reque,
fide, regno uobisque, Quiritis, se fortunatum, feliciter ac bene uortat.”
(ENNIO, 1923:28). Virgílio (1993:360), na Eneida, segue, literalmente, os passos de Ennio: “Accipe daque fidem.Sunt
nobis fortia bello/ Pectora, sunt animi et rebus spectata iuuentus.” A fides é então um “juramento que compromete
ambas as partes na observância de um pacto “bem firme”” (PEREIRA, 1989:324), no
qual alguém, pelo seu comportamento, pela sua ação garante o cumprimento do pacto (foedus), e
outrém, face àquele comportamento, confia no cumprimento do mesmo.
Numa escala de responsabilidade
moral, é razoável admitir-se que aquele que pratica a ação tem a primazia em
fazer o pacto funcionar, pois é a partir de seu comportamento que o
relacionamento criará condições de se dar com ou sem fides. Em outras palavras,
o agente da ação deverá tomar a iniciativa em demonstrar “sinceridade” de
propósitos a fim de que germine
“confiança” no outro, estando claro, porém, que este deverá receber a
ação também com “sinceridade” para que a conexão adequada seja efetivada
estabelecendo-se o “pacto de lealdade” (foedus) entre as partes. Retomando as
palavras de Cícero supracitadas, concluí-se sem muito esforço que nada é mais
embaraçoso à concretização desse “pacto” do que o comportamento espelhado no
adágio popular: “ faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Porém, é o
receptor da ação quem determina, “dá a última palavra”, no relacionamento com
ou sem fides. O agente da ação toma a iniciativa para um relacionamento com
fides, o receptor da ação sela, ou não, o relacionamento com fides.
Exemplos de fides são encontrados
nas lendas e na história romanas, como por exemplo, a celebração da paz entre
latinos e sabinos e o castigo que Meto, rei albano, sofre devido ao seu
perjúrio (ofensa à fides), cenas descritas no escudo de Enéias ( Eneida, VIII);
ou a lenda envolvendo o cônsul Régulo, que durante a Primeira Guerra Púnica,
após obter diversas vitórias é feito prisioneiro, no norte da África; é então
enviado a Roma para negociar sua libertação em troca de prisioneiros
cartagineses, sob o juramento de que retornaria a Cartago caso não obtivesse
êxito na missão. Régulo, em Roma, persuade o Senado a não entregar os
prisioneiros, e volta para Cartago, para os suplícios da prisão, honrando assim
seu juramento, pois era homem de fides
(PEREIRA, op. cit. p. 327).
Tito Lívio (1996: 43 – 46) relata
episódio da luta dos romanos com os faliscos no qual um professor leva seus
alunos para longe da escola, a fim de traiçoeiramente os entregar ao comandante
do exército romano, o general Camilo; este não aceita a oferta, respondendo ao
inimigo traidor que não eram com aquelas armas que o exército romano combatia;
a população falisca entusiasmada com o procedimento leal do comandante, com a
fides romana, pede a paz. Saindo do
contexto heroico e passando ao do quotidiano, pode-se lembrar o gênero de
relação social tipicamente romano, aquele que unia cliente e patrono, no qual a
fides também brilhava ( PEREIRA, op. cit. p. 327).
A literatura antiga latina,
alicerçada na Retórica, dá, porém, para a fides um conceito bem diverso daquele
até aqui descrito; abandona o significado de natureza moral, ética, assumindo
significado de caráter eminentemente técnico, ligado à composição da obra.
Cícero (1988: 480 – 481) discorrendo sobre as características oratórias dos
diversos tipos de discurso afirma: “ Ergo in allis, id est in historia (grifo
meu) et in eo quod appellamus “épideiktikón”, placet omnia dici Isocrateo
Theopompeoque more illa circumscriptione ambituque, ut tanquam in orbe inclusa
currat oratio, quoad insistat in singulis perfectis absolutisque sententiis ...
Nam cum is est auditor qui non vereatur ne compositae orationis insidiis sua
fides attemptetur, gratiam quoque habet oratori voluptati aurium servienti.
Genus autem hoc orationis neque totum assumendum est ad causas forensis neque
omnino repudiandum (grifo meu); si enim semper utare, cum satietatem affert tum
quale sit etiam ab imperitis agnoscitur; detrahit praeterea actionis dolorem,
aufert humanum sensum auditoris, toliit funditus veritatem et fidem (grifo
meu).Cícero recomenda assim, para a narração da história, para os discursos
epidíticos, e para os discursos forenses, embora para esses com moderação, o
uso de recursos retóricos que visem agradar os ouvidos dos ouvintes, sem
destruir o fundamento de verdade e de sinceridade que o discurso deve possuir.
Quintiliano (1998: 204 –205), discorrendo sobre as características da oratória,
afirma que a narratio, como qualquer outra parte do discurso deve ser ornada o
máximo possível de todo embelezamento e sedução: (“Ego uero ... narrationem, ut
si ullam partem orationis, omni qua potest gratia et uenere exornandam puto.”).
Contudo, segundo o conselho de Horácio (1944: 246 – 247), os exageros devem ser
evitados para não diminuir a autoridade das palavras: (“Multa fidem promissa
levant, ubi plenius aequo / Laudat venales qui uult extrudere merce.”.
De acordo com a análise de Achcar
(1994: 44):”Como termo técnico, fides descreve uma relação, não entre autor e
obra, mas entre esta e o público. Fides é uma disposição que a obra deve
suscitar no receptor, quer se trate de uma peça oratória, quer de um poema. É,
portanto, resultado da composição adequada do texto” .
Fides deve nascer do
relacionamento entre obra e receptor. O “ pacto de lealdade” (foedus)
deve se dar entre obra e público que a recepciona, cabendo ao autor, através de
sua persona artística criar as condições
para que seu discurso conecte-se a seu público. Fides associa-se à ueritas que
o discurso deve produzir, não tendo necessariamente nada a ver com a
personalidade do autor, a qual pode ou não corresponder aos requisitos exigidos pela obra para que se
estabeleça a fides. A obra é que deve conter “sinceridade” para que o público
possa recepcioná-la com “confiança”.
“Portanto, em sua aplicação literária, fides designa um efeito da mimese
bem realizada e não corresponde à ideia de sinceridade no que esta possa ter de
extrapolação psicológica ou biografista.” ( ACHCAR, op. cit., p. 45).
João Ângelo Oliva Neto, na
Introdução a O livro de Catulo (CATULO, 1996: 36) analisando esse tema assim
comenta: “Na verdade, esses artifícios são inerentes ao agenciamento da
linguagem, com vistas a maior eficiência, segundo os preceitos da Retórica, que
na Antiguidade incluía teoria e crítica literárias. Dessa forma, discursos em praça
pública e poemas eram tanto mais eficientes quanto mais parecessem verdadeiros,
quanto mais verossímeis.”.
Na Historiografia Romana Antiga,
como já mencionado anteriormente, os autores, usando de seu ingenium, lançavam mão de recursos da Retórica, para
dar fides a sua ars. Dentre esses
historiadores encontra-se Salústio que, embora pudesse apoiar-se em fatos,
criava discursos e colocava-os na boca de personagens históricos. A veracidade
dos discursos não era o fator relevante. O importante era que os discursos
dessem à narrativa verossimilhança, impressão de verdade, impressão de
sinceridade, impregnando-a com
credibilidade, criando fides e levando o público a sentir confiança na mesma, a
ser persuadido por ela, dando fides a ela, selando o pacto (foedus) entre obra
e público.
Na obra A conjuração de Catilina,
Salústio (1990) apresenta quatro exemplos magníficos de discursos, construídos
com o ingenium do autor usando a ars da Retórica Clássica, para compor a obra
historiográfica: o 1º discurso de Catilina; o discurso de César; o discurso de
Catão: e o 2º discurso de Catilina. Esse discursos, como já se afirmou, têm o
objetivo de fazer com que a obra historiográfica, como um todo, receba e dê credibilidade ( accipe daque fidem); a
veracidade dos mesmos não é relevante, o que importa é que pareçam verossímeis
ao público, que dêem impressão de sinceridade, para que a recepção da obra seja
mais intensa. Construir os discursos dentro dos preceitos da Retórica é um dos
meios que o autor usa para tentar fazer com que os mesmos pareçam verossímeis.
A seguir, faz-se breve análise dos discursos: 1º de Catilina, de César e de
Catão. sob a égide da Retórica Clássica.
O 1º discurso de Catilina (SALÚSTIO op. cit.
pp. 106 – 108 (20)) quanto à inventio, permite que o mesmo seja classificado no
gênero deliberativo: Catilina reúne um grupo de pessoas, numa parte reservada
de sua casa, para deliberar sobre a conjuração, com o intuito de exortá-las,
aconselhá-las a aderirem à conjuração; os frutos oriundos dessa conduta serão
as benesses futuras de poder e riqueza; e o auditório é restrito.
O “ethos” do orador é coerente
com o retrato do mesmo traçado pelo
autor (op. cit. p 99 (5)): apresenta-se
com destemor (“espírito atirado”) e muita eloquência; não dissimula sua ambição
(“sempre a ambicionar coisas sem limites”) – “... as riquezas, a honra, a
glória,... os magníficos espólios de guerra... quando chegar ao consulado (“o
desejo desenfreado de se apoderar da república”)” – levada avante não
importando por que meios; valoriza a astúcia – “... não deixaria o certo na
busca do incerto” -; o incitamento à revolta e ao ódio (“... as discórdias
entre cidadãos”) – “... os mesmos ódios”. Para inspirar confiança (fides) ao
seu auditório procura se mostrar: sensato, dando conselhos pertinentes,
fundamentados em fatos; sincero, não dissimulando suas ideias, pelo menos
aparentemente; simpático, disposto a ajudar o auditório (a cada um caberá uma
parte do butim)
Catilina apresenta, como prova
extrínseca para validar a conjuração, a injustiça social que assola a
República, provocada pela oligarquia no poder. Salústio ao traçar o retrato de
Catilina endossa, coerentemente, esse mesmo ponto de vista, da situação
decadente da República, e aponta essa situação como agente motivador da revolta:
“Estimulavam-no ainda os costumes corruptos da nação sobre a qual se abatiam
dois vícios diferentes entre si, mas dos mais funestos: o luxo e a cobiça.”.
Como prova intrínseca, Catilina usa o recurso da amplificação (de uso corrente
nos discursos do gênero demonstrativo), levando ao limite do exagero uma
situação, como maneira de validar seus argumentos : “ ... construindo dentro do
mar e aplainando montanhas ... o que nos resta senão um mísero sopro vital?”.
Na busca por argumentos, Catilina
utiliza vários “topoi” (Cf. REBOUL op.cit., pp.62 - 63): argumento tipo, na
peroratio – “... a não ser talvez que eu esteja enganado e vós estejais
dispostos mais a servir do que a mandar.”; tipo de argumento, de caráter
positivo – “... eu vos asseguro diante dos
deuses e dos homens: a vitória está em
nossas mãos ... Ei-la, eis a liberdade com que sonhastes”; questão tipo – “Até
quando enfim suportareis isso tudo, gente brava? Não é melhor morrer ... ? Por
que então não vos despertais?”.
Por tratar-se de um discurso
deliberativo, de acordo com Aristóteles, na dispositio, não haveria necessidade
nem de exortium, nem de narratio, pois neste gênero de discurso, o auditório já
sabe do que se trata e o discurso trata do que virá. Contudo, podemos
considerar que o trecho: “ Se eu já não conhecesse bem vossa coragem... se nós
mesmos não conquistarmos nossa liberdade.”, constitui um breve exordium.
Catilina dá indicação de que por ser discurso deliberativo, o exordium seria
desnecessário (“Meus projetos, vós todos já antes os ouvistes separadamente” –
Salústio mostra que é conhecedor do gênero), a questão não é expor os fatos que
serão tratados ou a tese que se vai tentar provar, o objetivo do exordium, no
caso, é envolver o auditório no objetivo comum, a conjuração, mediante os
“topoi” do enaltecimento, da confiança, da amizade : “ ... vossa coragem e
fidelidade ... vossa coragem e lealdade a mim ... são iguais para vós as coisas
que para mim são boas e más ... os mesmos anseios e os mesmos ódios ... amizade
inabalável.”. A estratégia retórica de Catilina é clara: conquistar o auditório
para sua causa, procurando agradá-lo (delectare) , num estilo ameno (medium) e
enfatizando a equivalência de caráter (ethos) entre ele e o auditório.
Por ser discurso deliberativo a
narratio pode aglutinar-se à
argumentatio, sendo o tipo de argumento a exemplificação, característico desse
gênero de discurso. A narratio-argumentatio pode ser dividida em dois blocos,
nos quais os exemplos sucedem-se em pares de oposições “nós-eles” – “os nossos
problemas(nós)-a causa desses problemas(eles)”. O primeiro vai de “Depois que o
centro das decisões...” até “os riscos,
os processos, a miséria.”. O segundo bloco é aberto pelos “topoi”: “Até
quando... Não é melhor... Ora, eu vos asseguro ...” e retoma os exemplos em
pares sequênciais de oposições “nós-eles” – “ Temos o vigor - ao contrário ...;
eles sobrem riquezas -a nós faltem recursos ... Eles fazem casas - a nós não e
dado ...; Embora comprem ... - Mas nós temos a penúria ... sopro vital?”. Essas
oposições servem, pelo contraste que apresentam entre a situação privilegiada
dos que detêm o poder, e a situação de penúria da massa de excluídos, como exemplos para
explicar (docere) num estilo direto, simples (tenue) usando a razão
(logos) para justificar a revolta.
A conclusão do discurso, a
peroratio inicia-se com dois “topoi”: “Por que...? Ei-la... sonhastes;” e
desenvolve-se no sentido de elevar o ânimo do auditório para conquistá-lo,
acenando com as recompensas a serem alcançadas; recompensas que têm poder de persuasão muito maior do que
qualquer discurso. O orador coloca-se numa posição de subserviência (cínica):
“Como comandante ou soldado, estou à vossa disposição... quando chegar ao
consulado” e finaliza com um “topos” que procura atingir o amor-próprio do
auditório, num tom perverso que dá à renuncia de adesão à revolta caráter de
pusilanimidade. O estilo é elevado (grave), visa incitar o auditório à ação
(movere) elevando sua emoção (pathos).
O discurso de César ( op. cit.
pp. 123 – 126 (51)) é deliberativo, dirigido aos membros do Senado, reunidos
para decidir sobre as penas a serem aplicadas aos traidores envolvidos na
Conjuração. César, como é característica do discurso deliberativo, argumenta
mediante série de exemplos tomados da História de Roma, conjeturando sobre o
futuro. O “ethos” do orador é pautado pela ponderação, pelo equilíbrio e, tanto
quanto possível, pela clemência. Esse “ethos” é perfeitamente coerente com o
retrato do orador traçado por Salústio (op. cit. p.130 (54)): “César se
distinguia pelos favores e generosidade... ilustre pela doçura e pela
clemência... amparando, perdoando)”. Seus conselhos são para que se tenha
isenção, ponderação:” ... questões controvertidas devem estar isentas de ódio,
amor, rancor, compaixão ... ponderai bem o que decidis para os outros.”. Vários
“topoi” disseminam-se pelo texto: “Mas – pelos deuses imortais! – a que visa
esse tipo de discurso?; A nenhum ser humano as injustiças que lhe fazem parecem
de pouca monta; quanto maior é a fortuna, menor é a liberdade; Mas – pelos deuses imortais – por que não
acrescentaste ao teu parecer que em primeiro lugar fossem eles açoitados?; Pode
haver punição rigorosa e cruel demais para homens culpados de tais crimes?”.
Na dispositio, há um breve
exordium (“Todas as pessoas... agiram corretamente e com coerência”), como é
característica do discurso de gênero deliberativo. César procura envolver o
auditório em sua tese decidir com ponderação (“Quando concentramos nosso
esforço na razão, o espírito mantém toda sua força) , sem ódio, longe do
impulso da ira, agindo corretamente, com coerência. A narratio e a argumentatio
(“Durante a guerra da Macedônia ... a
custo conservamos o que eles tão bem criaram.”) desenvolvem-se simultaneamente,
como é, também, característica do gênero deliberativo de discurso, sendo a
argumentação baseada em exemplos, tirados da História de Roma e construindo a
confirmatio de sua tese: decidir sem extremismo, sem emoção, com sensatez, com
a razão; todos os argumentos resumem-se ao
argumento único de decidir com sabedoria. Na peroratio (“Meu voto ... e
a salvação de todos.”) César dá seu parecer sobre a pena mantendo seu “ethos”
equilibrado, propondo castigos severos aos revoltosos mas evitando a pena de
morte.
Quanto à elocutio pode-se dizer que o discurso de
César tem estilo simples (tenue), com objetivo de explicar (docere) usando como prova a razão (logos). É coerente
com o “ethos” do orador caracterizado pela benevolência e pelo equilíbrio.
O discurso de Catão é pronunciado
logo após o discurso de César é, também, do gênero deliberativo, dirigido,
igualmente, aos membros do Senado (assembléia), reunidos para decidirem sobre
as penas a serem aplicadas aos prisioneiros envolvidos na Conjuração, visando
aconselhar os senadores em sua decisão, sobre o que é útil para o futuro da
República, lançando mão do processo indutivo de argumentação., tomando exemplos
da História de Roma, bem como fatos da vida contemporânea do Estado. O “ethos”
do orador é de integridade moral, severidade, de firmeza de opiniões. Não
admite clemência para os culpados, ataca com dureza os costumes corrompidos da
oligarquia. Esse “ethos” é coerente com o retrato que Salústio traça do orador
(op. cit. p. 130 (54)): ”Catão pela vida
inatacável... a severidade lhe conferia respeito ... desgraça dos maus ...
firmeza ... amor da modéstia, do dever ... da severidade. Em vários momentos
utiliza-se de “topos” para construir seus argumentos: “ Mas – pelos deuses
imortais! – é a vós que eu me dirijo; Mas não nos alonguemos sobre esse
assunto; a situação é grave, mas não a temeis; Quando nos entregamos à preguiça
e à covardia, vãs são as preces aos deuses”.
A dispositio pode ser dividida
num exordium (“Bem diferente é... e a nossa existência corre perigo.” Onde defende a tese de que os inimigos da
pátria devem ser castigados sem clemência, contrária, portanto à de César. Na
narratio-argumentatio usa exemplo da História de Roma no qual a severidade é a
tônica: “No tempo antigo, A. Mânlio Torquato, durante a guerra contra os gauleses,
mandou matar seu filho, por ter ele, contra suas ordens, combatido contra o
inimigo...”. Seus argumentos são diretos, duros, atacando não só os
conspiradores, mas também a oligarquia: “ Aqui alguém vem me falar em clemência
e misericórdia... esbanjar os bens dos outros se chama generosidade; ousadia do
crime se dá o nome de bravura”. Para derrubar os argumentos de César usa a
confirmatio – refutatio: “César discorreu nesta assembléia... tendo, a meu ver,
feito juízo equivocado... Seu parecer foi... Por isso essa medida é inócua...”.
Todos os argumentos formam um argumento único, coeso: punição máxima aos
criminosos. A peroratio (“É por isso que meu parecer... como se tivessem sido
surpreendidos em flagrante delito.” Resume o ponto de vista defendido por Catão
durante todo o discurso de que o crime cometido foi execrável e os envolvidos
devam ser condenados à morte.
Quanto à elocutio pode-se
considerar que o estilo é elevado (grave) com o objetivo de comover o auditório
(movere), aumentando o nível de emoção (pathos) a fim de convencer a assembléia
a acatar seu ponto de vista. E Catão vence: “ Quando Catão se senta, todos os
consulares e grande parte do senado aplaudem sua moção... a decisão do senado é
tomada de acordo com a proposta dele.” .
Conclui-se dessa análise sucinta
que os discursos construídos por Salústio obedecem aos preceitos da Retórica
Clássica; com isso, para o público antigo que tomava contato com a obra
historiogrãfica do autor, os discursos deveriam parecer verossímeis; esse fato
deveria contribuir para o aumento da fides obra-público, intensificando a
recepção da obra.
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APÊNDICE
Complementando algumas ideias
apresentadas no corpo do ensaio, faço as considerações que seguem.
Consideremos um sistema
cartesiano ortogonal de referência; vamos denominar o eixo horizontal de eixo
do conceitual, ou do imaginário, ou do MITO; o eixo vertical de eixo do
empírico, ou do real, ou da HISTÓRIA. Consideremos uma curva hiperbólica que
tende, em cada um de seus extremos, assintoticamente para cada um desses eixos,
tangenciando-os no infinito. Temos a seguinte figura:
Essa curva vamos chamar de curva
de mimesis do emissor. Devemos entender emissor como o autor, não pessoa
física, mas autor persona emissora, isto é, emissor da experiência literária,
enunciador da obra (como esses conceitos não se restringem ao campo da
linguagem verbal apenas, mas podem ser estendidos aos campos da linguagem visual,
auditiva (musical), a persona emissora poderia ser generalizada para uma
persona emissora semiótica). O que representa a curva de mimesis do emissor?
Representa qual a tendência da obra entre os polos conceitual – empírico,
imaginário – real, mítico – histórico na interface da persona emissora com a
obra criada, independente do gênero da obra: épico, lírico, dramático,
historiográfico, epistolográfico; independente de sua estrutura: foco
narrativo, personagens, espaço, tempo, trama. Essa curva representa qual a
tendência do texto: se ele tende para o conceitual, o imaginário, aquilo que
usualmente se denomina de ficção, o mito ou, se ele tende para o empírico, o
real, para a “realtà fattuale”, para aquilo que se costuma chamar de verdade,
ou História.
Uma obra que esteja localizada,
na curva de mimesis do emissor, por exemplo, no ponto (1), é uma obra
fundamentada empiricamente, que tende para o real, para a História. Porém, por
mais real que a obra seja sempre terá um resíduo, um vestígio, pelo menos, de
conceitual, de imaginário, de Mito. O próprio ato de relatar a História, por
mais fiel que seja aos fatos, já introduz um componente imaginário, inerente à
linguagem verbal que é um ato mental racional da persona emissora. E,
analogamente, por mais conceitual que seja qualquer narrativa, por mais
imaginária que seja sua construção, por mais que se apoie no Mito, sempre terá
um resíduo de empírico, de real, de História. Por mais imaginária que seja a
obra, haverá sempre algo de fatual e de real concreto na sua ficção, nem que
sejam as ondas sonoras de sua emissão oral, ou as palavras escritas que a
compõem.
Consideremos um novo sistema
cartesiano ortogonal de referência, no qual o eixo horizontal denominaremos de
eixo da verossimilhança da obra, e o eixo vertical denominaremos de eixo da
fides que se desenvolve entre a persona receptora e a obra. A persona receptora
é a pessoa física (toda e qualquer) que ao entrar em contato com a obra
(qualquer que seja o meio – visual, auditivo, tátil) transforma-se numa persona
e recria a obra (sempre). Neste ato de recriação da obra a persona receptora
associará à obra certa verossimilhança, certa impressão de verdade. É a persona
receptora que dá a palavra final quanto
a verossimilhança da obra, no ato de sua recriação. A obra pode ter sido
construída dentro de padrões de gênero, com engenho e arte pelo autor persona
emissora, na tentativa de dar à obra a máxima
verossimilhança possível porém, se a persona receptora não tiver
condições para perceber as qualidades da obra todo esforço da persona emissora
terá sido em vão.Isso explicaria porque uma obra genial, muitas vezes, leva
décadas para ter seu valor reconhecido. Ou então, por que uma obra
considerada inverossímil para muitos,
para alguém “de muita imaginação” ou de conduta tendenciosa parece verossímil.
O “espírito da época” pode contribuir para a verossimilhança da obra. Isso
explicaria porque muitas obras medíocres têm sucesso retumbante e logo depois
caem no esquecimento. A obra é a mesma o que muda é como ela é recepcionada.
Neste sistema podemos traçar a
seguinte figura:
A curva que, partindo da origem
do sistema de referência e sobe tendendo assintoticamente para um limite de
fides denominamos curva de mimesis do
receptor. Lembremos que receptor não é a pessoa física, mas a persona receptora
que se desenvolve na pessoa física, ao entrar em contato com a obra,
recriando-a. Essa curva representa a interação que se desenvolve entre a
persona receptora e a obra: quanto maior a verossimilhança que a persona
receptora acha que a obra tem maior a fides que ela dá a obra. Maior a
interação, maior a receptividade. A curva de mimesis do receptor é a interface
entre a persona receptora e a obra; ela permite avaliar a intensidade do pacto,
do foedus, entre a persona receptora e a obra. A fides tem um limite máximo
atingido para uma verossimilhança infinitamente grande; essa verossimilhança
infinita podemos chamar de verdade – o que é verdade, é, não admite qualquer
dúvida, sua fides é máxima.
O que Salústio fazia em suas
monografias históricas, ao criar discursos e colocá-los na boca de seus
personagens, era, na curva de mimesis do emissor, deslocar o ponto (1) para a direção do ponto (2), com o texto
perdendo “historicidade” e ganhando “narratividade”. Com qual objetivo? Fazer,
na curva de mimesis do receptor, o ponto (a) deslocar-se para a direção do
ponto (b), para aumentar a receptividade do texto. Salústio devia saber que
procedendo daquela maneira seu público recepcionaria sua obra com mais
verossimilhança, com mais fides.