domingo, 31 de agosto de 2014

AVE RENÚNCIA

A VIRGEM MARIA

O oficial do registro civil, o coletor de impostos, o mordomo da Santa Casa e
                                      [o administrador do cemitério de São João Batista
Cavaram com enxadas
Com pás
Com as unhas
Com os dentes
Cavaram uma cova mais funda que o meu suspiro de renúncia
Depois me botaram lá dentro
E puseram por cima
As Tábuas da Lei

Mas de lá de dentro do fundo da treva do chão da cova
Eu ouvia a vozinha da Virgem Maria
Dizer que fazia sol lá fora
Dizer i n s i s t e n t e m e n t e
Que fazia sol lá fora.

            Este poema de Manuel Bandeira, tirado do livro Estrela da Vida Inteira (1993), foi publicado pela primeira vez em 1930, no livro Libertinagem, conforme relatado pelo  próprio poeta, no livro Itinerário de Pasárgada (1984): “ Libertinagem contém os poemas  que escrevi de 1924 a 1930 – os anos de maior força e calor do movimento modernista. Não admira, pois, que seja entre os meus livros o que está mais dentro da técnica e da estética do modernismo. “ Este dado é importante, pois lançaremos mão dele a seguir, na análise do poema. Outra informação de natureza biográfica, também significativa, no auxílio à interpretação do poema, é que nesta época o poeta morava só, num modesto apartamento, num velho casarão quase em ruínas, na Rua do Curvelo, no morro do mesmo nome, na cidade do Rio de Janeiro. A perda do pai querido, que falecera em 1920 e a residência no morro do Curvelo, de 1920 a 1933, acabaram por amadurecer a personalidade do homem, que adquiriu consciência de sua solidão, com a qual teria de enfrentar a pobreza e a morte. Neste ambiente, não raros deveriam ser os momentos de profundo desânimo, que abatiam a alma do poeta.
            Passando à análise do poema, podemos notar, primeiramente, que o mesmo apresenta uma estrutura complexa. Estrofação irregular, versos com métrica livre, muito variada, sem rimas evidentes, pontuação só no primeiro verso (vírgulas) e ponto final no último verso. Numa estrutura deste tipo, a identificação do(s) ritmo(s) do poema, não é tarefa fácil. O vocabulário, porém, é simples, com palavras do uso cotidiano. É construção formal  dentro da estética do modernismo, segundo o próprio testemunho do poeta, como vimos atrás.
            O poema possui duas estrofes. Uma com nove versos e uma com cinco versos. A  primeira estrofe começa com um verso bárbaro (30 sílabas poética), seguido por quatro versos irregulares, mas dentro das medidas padrões (6/2/3/3 sílabas poéticas). O sexto verso é novamente um verso bárbaro (18 sílabas poéticas). Seguem os três últimos versos, desta primeira estrofe, novamente, versos com métrica irregular, mas dentro dos padrões (8/6/5). A segunda estrofe, também, começa com um verso bárbaro (16 sílabas poéticas), seguido por dois versos com métrica irregular, mas dentro dos padrões (10/9 sílabas poéticas), e o poema termina com duas redondilhas maiores (7 sílabas  poéticas). A métrica dos versos pode ser representada como segue:
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            Na tentativa de encontrarmos o rítmo geral do poema, que nos conduza  ao sentido do poema, dentro desta estrutura complexa, podemos fazer valer a afirmação de JAKOBSON (1973) de que, no verso livre, o  ritmo está, não nos acentos, não nas sílabas, mas sim na entoação da frase; para que esta se revele vamos proceder à análise das categorias gramaticais das palavras, dos seus significados e da sintaxe dos versos livres do poema.
            O  primeiro verso é um sujeito coletivo, formado por enumeração de quatro substântivos concretos, aos quais o título integra-se e dá continuidade (poderia, até, fazer parte do verso: A Virgem Maria, o oficial do registro civil,...).Estes núcleos são acompanhados por artigos definidos, que os determinam e por adjuntos adnominais, que os qualificam. É um verso muito longo (o mais longo do poema - 30 sílabas poéticas), tornando longo o tempo para sua leitura , e o único que tem pontuação, vírgulas (além do ponto final do poema), o que prolonga ainda mais esse tempo. É uma apresentação suscinta dos personagens de um enredo, que se inicia. Uma construção típica de prosa. Observemos agora, as funções exercidas pelos constituintes do sujeito coletivo, na seqüência do verso: o oficial do registro civil, expede  certidões de nascimento; o coletor de impostos arrecada tributos de cidadãos adultos, ativos socialmente; o mordomo da Santa Casa cuida de doentes; mordomo, aqui, é metáfora de enfermeiro, numa conotação fortemente irônica, pois Santa Casa é hospital, tradicionalmente, para pobre, e pobre não tem mordomo; esse tom de ironia é pontual, talvez para quebrar um pouco a monotonia da enumeração; o administrador do cemitério, autoriza enterros. Se unirmos, pela leitura, ao início do verso, o título, conforme discutido anteriormente, teremos,  também, a Virgem Maria, no Céu, cuidando das almas. Esta seqüência enumera, cronologicamente, as fases da vida de um ser humano (cristão): alma no Céu, nascimento, fase adulta ativa, decrepitude física e morte. Assim, o longo  verso, transforma-se numa metáfora da vida, que, na visão do poeta, também. é longa, dura muito. No segundo verso é definida a ação que o sujeito coletivo executa: (eles) cavaram. É feita uma inversão, na sintaxe normal, antecipando o adjunto  adverbial  de instrumento (com enxadas) e postergando a apresentação do objeto da ação transitiva de cavar, criando uma certa expectativa em torno do que está sendo cavado. Os próximos três versos, também, adjuntos adverbiais antecipados ao mesmo objeto direto, são os menores do poema (2/3/3 sílabas poéticas), são encadeados pela preposição com, estruturas que induzem a uma aceleração do ritmo, isto é, o sujeito cava algo com rapidez. A alteração da natureza dos instrumentos utilizados para cavar é significativa:nos  dois  primeiros versos, instrumentos convencionais para cavar – enxadas e pás – que mantêm certa distância entre o sujeito que cava e o objeto cavado; nos dois versos subseqüentes, instrumentos insólitos para cavar – as unhas e os dentes que, por pertencerem aos corpos dos que cavam (os artigos definidos reforçam essa idéia), anulam a distância sujeito – objeto, fundindo-os em uma só coisa. No sexto verso é revelado o objeto da ação:uma cova. No primeiro verso, é apresentado o sujeito da ação, uma metáfora da vida. A ação funde sujeito e objeto, e iguala a vida à cova, que pode ser considerada uma metáfora da morte. Vida é sinônimo de morte. O sexto verso é, novamente, um verso longo (18 sílabas poéticas), forçando a uma diminuição do ritmo. O início do verso,  repetindo o verbo, que define a ação, como que a enfatizá-la, ação esta que provoca a fusão sujeito-objeto, e o éco de Cavaram em cova, reforçam a idéia de que, vida é igual a morte.O grau comparativo de superioridade, em um adjetivo que denota qualidade inferior (mais funda que), a presença de palavra com vogal u em posição de relevo – renúncia -  que, segundo BOSI (2000), por ser vogal grave, fechada, velar e posterior integraria, preferencialmente, signos relacionados a escuridão, a experiências negativas, a tristeza, a morte, todos esses fatores  reunidos, dão a este verso um tom de profunda melancolia – (fundo) suspiro – e sentimento de abandono, entrega, prostração diante da vida – renúncia; é, talvez, o verso mais belo do poema. O pronome possessivo, em primeira pessoa do singular, meu (meu suspiro), revela o “eu” lírico metamorfozeado em narrador dos fatos sucedidos. Os últimos três versos da primeira estrofe, começando com um advérbio de tempo (Depois), dão continuidade à descrição cronológica dos acontecimentos, com o narrador transformando-se em  protagonista da narrativa, sendo colocado dentro da cova (me botaram dentro). A ação continua em terceira pessoa (eles = a vida) agindo agora sobre o “eu” narrador, funde-o com a cova, que é metáfora de morte, e que está fundida à própria vida: a vida do “eu” lírico – narrador é sinônimo de morte.  As Tábuas da Lei  - os Dez Mandamentos da Lei de Deus, que Jeová entregou a Moisés, no alto do Monte Sinai - colocadas por cima, pesam e obstruem  a entrada de luz, nesta vida – morte.
            A segunda estrofe inicia com um verso longo (16 sílabas poéticas) composto quase que exclusivamente por signos, que pertencem aos campos semânticos do fechamento (dentro ), da obscuridade (fundo/treva), inferioridade (chão) e de extrema negatividade, ligada à morte ( cova) que, segundo BOSI (op.cit.), evocam “por analogia, sentimentos de angústia e experiências negativas, como a doença, a sujidade, a tristeza e a morte.”, além da sintaxe: fundo da treva; chão da cova. Novamente, um tom de profunda melancolia e abandono domina o verso, refletindo, provavelmente, os próprios sentimentos do poeta, pois, como já comentamos, à época, passava por momento muito difícil da sua vida, tendo de enfrentar sozinho, a sua doença, a pobreza, a morte do pai e a sombra da sua própria morte, sempre rondando por perto. Analisando, agora, a sonoridade do verso podemos notar a presença de nasalização de vogais , em  fonemas de  algumas palavras, do campo semântico da negatividade, a pouco mencionado: dentro; fundo; chão; esta nasalização abafa o som das vogais, e poderia ser interpretada como um distanciamento entre o “eu” poético e o mundo; nos versos subseqüentes, este sentido fica ainda mais evidente. Outro efeito sonoro  é a aliteração das consoantes oclusivas dentais d e t, presentes em dez das dezesseis sílabas poéticas do verso, algumas delas associadas às vogais nasalizadas:Mas de lá de dentro do fundo da treva do chão da cova. De acordo com CANDIDO (1987), este tipo de aliteração conferiria  um poderoso travamento   ao verso: “Teria o T (apoiado no D), um valor expressivo de frear, pesar, demorar, atardar, segurar?” Provavelmente sim, e no poema em análise, seria uma das maneiras expressivas, encontrada  pelo poeta, para representar o peso e a demora da vida. Este mesmo tipo de aliteração, também, ocorre no sétimo verso da primeira estrofe, juntamente com duas outras oclusivas p e b: Depois me botaram lá dentro, servindo para exprimir noção de travamento, pondo em relevo a idéia de imobilidade. A conjunção adversativa  Mas que dá início ao verso cria, em razão de sua natureza, expectativa do surgimento de nova situação que se oporia à vigente, modificando-a.  Contudo, isto não ocorre e a expectativa se frustra. O “eu” lírico  ouve a voz da Virgem, mas isto não altera a  sua condição. Nos quatro versos  finais do poema, acentua-se o lirismo: 1) a ação passa para a primeira pessoa  (Eu ouvia); 2) muita sonoridade – aliteração de fricativas f,s,v, sugerindo o sussurar da voz (vozinha=voz tênue, fraquinha) da Virgem, reforçando a idéia de afastamento, de isolamento do “eu” lírico; 3) aliteração da oclusiva t, na palavra insistentemente, lembrando o martelar do som, abafado pela nasalização das vogais (in,en); 4) a sugestão de seqüência  de notas musicais , repetidas duas vezes, em fa(zia) sol ; 5) anáfora em Dizer, criando encadeamento; 6) rimas consoantes internas – ouvia, Maria, fazia; 7) metro – dois últimos versos em redondilha maior; 8) ritmo mais cadenciado, reforçando o lirismo. As vogais tònicas, abertas de sol, fora , sugerem idéia de luz, calor abertura, porém distantes; o advérbio de lugar , cria o afastamento, que os torna inacessíveis. O tom de melancolia e abandono continuam fortemente presentes. O advérbio de modo insistentemente, modificando o verbo Dizer, escrito com espaço entre as letras procura dar idéia de prolongamento da ação da Virgem (de dizer que fazia sol lá fora). O uso da disposição espacial das palavras e de outros recursos gráficos, na construção do poema (grafismo), remete aos Calligrammes de Apollinaire, e foi utilizado por outros poetas modernistas, como Oswald de Andrade. Manuel Bandeira explorou, de maneira mais radical, à época da poesia concreta, esse recurso estético, num livro posterior, A Estrela da Tarde.
            Se analisarmos o poema sob o ponto de vista dos gêneros literários, conforme apresentado por ROSENFELD (1985), tendo em conta o exposto até aqui, podemos dizer que, os nove versos da primeira estrofe mais o primeiro verso da segunda estrofe tem uma “ evocação épico-lírica  fortemente visual e plástica ... com   a função construtiva do procedimento da enumeração ... a serviço da organização das sensações numa unidade de tom” (ARRIGUCCI Jr.,1999). No poema em estudo, este tom é a melancolia. O discurso, próximo da ficção, é narrado na primeira pessoa, com a ação em terceira pessoa, num tempo pretérito, como é característico da épica. A heterogeneidade do ritmo, aproxima o discurso da prosa. O  “eu” lírico metamorfozeia-se em narrador, que se comunica diretamente com o leitor, a quem conta um momento de seu passado. Os últimos quatro versos da segunda estrofe, e do poema, evocam lirismo em toda sua força. A ação passa para a primeira pessoa do singular, revelando o “eu” lírico ( numa ação de passividade - ouvir). “A ação inacabada, própria do tempo verbal empregado em seu aspecto “imperfeito”, continua repercutindo no presente.” (ARRUGUCCI Jr.,op.cit.) e a persistência da ação no tempo   dá a este características de perenidade (lírica). O poeta construíndo o poema com uma quantidade de versos épicos-líricos (10), bem maior do que a de  versos essencialmente líricos ( 4 ) está sugerindo que a vida é feita muito mais de momentos prosáicos do que de momentos líricos.
            Resumindo  podemos dizer que no  poema, o poeta cria um espaço irreal e insólito, com imagens de poderosa força plástica, semelhantes a uma visão onírica de uma tela surrealista, através do qual exprime   sentimentos que, provavelmente, se desenrolam em seu íntimo. A vida é longa, dura muito e é sinônimo de morte; a vida pesa , é sinônimo de treva e a tradição cultural judáico – cristã contribui para  este estado de ânimo, ou não é capaz de revertê-la. Os momentos líricos da vida são curtos e mesmo nestes, a questão não se resolve, a melancolia, a tristeza, o abandono, a renúncia persistem.

Bibliografia

ARRIGUCCI Jr., DAVI - “A festa interrompida” in : Humildade, paixão e morte:  A poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, p.207, p.211, 1999.
BANDEIRA, MANUEL - “Libertinagem” in : Estrela da vida inteira. 20ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p.137,1993.
_________________ - Itinerário de Pasárgada.3ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, pp.64 –99, 1984.
BOSI, ALFREDO - “O som no signo” in : O ser e o tempo na poesia. 6ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, p.56, 2000.
CANDIDO, ANTONIO - O estudo analítico do poema. São Paulo: FFLCH – USP p.27, 1987.
JAKOBSON, ROMAN – “O que fazem  os poetas com as palavras” in : Revista Colóquio (nº 12). Lisboa, pp.5 – 9, março de 1973.

ROSENFELD, ANATOL – “A teoria dos gêneros literários” in : O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, pp.15 – 36, 1985.


(do livro "Ensaios Desnecessários" - inédito)

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

como tudo terminou...

   (o meu princípio evidente é atar as duas pontas da história, e restaurar o fim no começo)
     E então, fui ao anjo e lhe disse: dá-me o livrinho. Ele mo estendeu dizendo: toma-o e come-o; mastiga bem. Tomei-o com o casco dianteiro direito e imediatamente o introduzi na boca.   Meu coração disparou. O suor brotava por todos os poros do meu couro. Cerrei as pálpebras e mastiguei bem, devagarzinho, passando e repassando minha longa e áspera língua em cada morfema. Embora não fosse absolutamente minha intenção destruir a coesão que eventualmente o texto pudesse apresentar, por medida de segurança, fui engolindo aos poucos, uma oração de cada vez. Primeiro as independentes, depois as coordenadas, seguidas das principais e por fim as subordinadas. De nada adiantou essa minha precaução. Na boca sentia um gosto doce de mel, mas no estômago, à medida que os sintagmas roçavam as paredes do órgão, uma dor lancinante ia tomando conta de mim. Numa reação instintiva, tentei vomitar o bolo lítero-estomacal. Inútil. O esôfago como que travado, bloqueava a saída da massa palavrória ingerida. A única coisa que saia da minha boca era uma gosma gramatical negro-esverdeada e fétida. Meus olhos reviravam em órbitas loucas, sob as pálpebras que tremelicavam espasmodicamente. Senti as quatro patas fraquejarem sob o peso do meu corpo que desabava ao solo. Um calafrio percorreu minha espinha toda, da cerviz ao cóccix, eriçando os pelos desde a crina até o rabo. Um último estertor exalou das minhas ventas.
     E então, foi assim – creio eu – que morri. E então, foi assim – creio eu – como tudo terminou...  


sábado, 16 de agosto de 2014

Monólogos Intestinos

PRIMEIRO (E ÚNICO) ATO
PRIMEIRA (E ÚNICA) CENA
  
(Toda a ação se passa durante algumas poucas horas (1 a 2 h) num ambiente doméstico de uma família presumivelmente classe média quase alta, numa sala de estar ampla de um apartamento de alto luxo, de uma cidade qualquer de um país qualquer) 

ELA (sentada numa poltrona individual)
Vou te fazer uma pergunta.
ELE (sentado em outra poltrona individual segurando um copo de bebida na mão direita)
É melhor não fazer.
ELA
Vou fazer assim mesmo. Não desvia o rosto, olha pra mim.
ELE
Estou olhando.
ELA
O que é que eu significo pra você? Quero ver se você tem coragem de responder com sinceridade. Vamos fala.
ELE
Já significou muito.
ELA
Só mais uma perguntinha. De quem é que você gosta mais? De mim ou dessas... 


(Trecho inicial da peça "Monólogos Intestinos" http://www.scortecci.com.br/lermais_materias.php?cd_materias=9042&friurl=:-MONOLOGOS-INTESTINOS--Sheik-Spir-:)

domingo, 10 de agosto de 2014

NA CIDADE GRANDE


Na cidade grande
as pessoas vão passando pelas ruas
sem se importar umas com outras
quase sempre ninguém nunca se cumprimenta
caso os olhares se cruzem
no mesmo instante se desviam
procurando outros lugares.

Na grande cidade
as pessoas só param na rua
para satisfazer mórbida curiosidade
alguém foi assassinado numa perseguição
morreu atropelado por veículo na contramão
foi achado morto estendido no chão
atingido no peito por bala perdida
ou caído do alto de uma sacada.

Na cidade grande
as pessoas dia a dia ficam mais pequenas.



terça-feira, 5 de agosto de 2014

TUDO COMO DANTES NO QUARTEL DE ABRANTES

A nova camarilha, matilha de lobos em pele de ovelha –– a camarilha do Partido dos Laboradores – dando continuidade a todas as camarilhas anteriores, finalmente de posse do alto poder posicionado no planalto central do país, não fez por menos, sem a menor cerimônia, com todo despudor, para desencanto de poucos aflitos esclarecidos, outro tanto nem tanto, honrou a irremediável tradição política do país e manteve descaradamente desfraldada a bandeira da desfraudação.   


(em "Crônicas Anacrônicas - Grotesca Filosofia Mediocridade Sublime" - inédito)

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

A Agulha, a Linha e o Alfinete (ou “Outro Apólogo”)

            Ia ter um grande baile na cidade e a rica senhora decidiu, como era seu costume, fazer um vestido novo. Chique. Lindo. Maravilhoso. Mandou então vir a modista à casa para escolher modelo, tecido, adereços etc. Cumprida essa etapa, a modista retornou a seu atelier; traçou o molde conforme o escolhido; reuniu o material necessário, designou a costureira mais experiente de sua equipe para a tarefa e mandou dar início imediato ao importante trabalho. A costureira cortou o tecido de acordo com o molde; juntou as partes; pegou da agulha; pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Aquele vestido era pra ser feito à mão, com o máximo capricho possível. Iam, Agulha e Linha, andando pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos ágeis da costureira quando a Agulha teceu as seguintes considerações:
            — E aí prezada Linha? Você não repara não que esta distinta costureira só se importa comigo? Que sou eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, cosendo...
            — Cosendo? – disse a Linha. Você fura o pano, e olhe lá, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço de tecido a outro, dou feição aos babados...
            — E daí? Se eu não furasse o pano não haveria costura. Eu é que vou adiante, puxando você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...
            — Faz e manda? Ora essa!  Quem controla você é a costureira. Nesta peça, minha cara, você tem um papel secundário; vai adiante, mas tem que seguir o caminho do molde. Eu não; eu uno as partes e formo o todo. É por isso que nesta peça sou eu a artista principal, alinhavou a Linha.
            — A senhora é vaidosa ambiciosa, isso é o que a senhora é; quer sempre só ajuntar, ajuntar mais e mais pano, disse a Agulha com agudeza.
            — E a senhora o que é? Uma pretensiosa volúvel que acha que faz um grande serviço e mal chega num lugar já quer logo ir embora, em busca de novas aventuras. Enquanto a senhora passa, eu permaneço, replicou a Linha sem perder a linha. Além disso, a senhora devia era cuidar da sua vida e deixar os outros viver em paz. Perdeu uma boa oportunidade de calar o bico, arrematou a Linha.
            — Eu disse e repito: ambiciosa, ambiciosa, ambiciosa; e direi sempre que me der na cabeça.
            — Dar na cabeça? Que cabeça? Não seja ridícula, minha cara. E a senhora tem lá cabeça? Quem tem cabeça é alfinete e a senhora não é alfinete, é agulha. E agulha não tem cabeça...
            Diante de resposta tão contundente, mesmo para uma agulha, a Agulha se calou. Dali pra frente o silêncio tomou conta da sala de costura. Terminada a jornada de trabalho daquele dia, a costureira dobrou a costura para o dia seguinte; continuou nesse e no outro, até que no quarto dia acabou a obra.
            Veio a tão esperada noite do baile. A rica senhora vestiu-se com o vestido novo com a ajuda da costureira que trazia a Agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. A Linha, para provocar a Agulha, ironizou:
            — Me diga agora, dona pretensiosa volúvel, quem é que hoje vai ao baile, no corpo da rica senhora? Quem é que vai dançar e se divertir a noite toda, enquanto a senhora volta pra caixinha de costura? Vamos, diga lá.
            A Agulha não disse um a, mas um Alfinete, desses de cabeça grande, que tinha ouvido toda a conversa pensou com seus botões:
            — Uma, porque vai à frente furando o caminho, acha que é grande coisa, mas esquece que sempre acaba logo, logo voltando abandonada aqui pra caixinha de costura. Outra, porque prende um monte de pano fica cheia de si e não leva em conta que na próxima festa a rica senhora vai usar outro vestido novo e ela vai acabar mofando esquecida no escuro do armário. Pensando bem, nesta história toda, posso me considerar mais feliz. Eu furo e fico. Eu desbravo e uno. E de tempos em tempos mudo de paisagem.