A
VIRGEM MARIA
O oficial do
registro civil, o coletor de impostos, o mordomo da Santa Casa e
[o
administrador do cemitério de São João Batista
Cavaram com
enxadas
Com pás
Com as unhas
Com os dentes
Cavaram uma cova
mais funda que o meu suspiro de renúncia
Depois me
botaram lá dentro
E puseram por
cima
As Tábuas da Lei
Mas de lá de
dentro do fundo da treva do chão da cova
Eu ouvia a
vozinha da Virgem Maria
Dizer que fazia
sol lá fora
Dizer i n s i s
t e n t e m e n t e
Que fazia sol lá
fora.
Este poema de Manuel Bandeira,
tirado do livro Estrela da Vida Inteira
(1993), foi publicado pela primeira vez em 1930, no livro Libertinagem, conforme relatado pelo próprio poeta, no livro Itinerário de Pasárgada (1984): “ Libertinagem contém os poemas
que escrevi de 1924 a 1930 – os anos de maior força e calor do movimento
modernista. Não admira, pois, que seja entre os meus livros o que está mais
dentro da técnica e da estética do modernismo. “ Este dado é importante, pois
lançaremos mão dele a seguir, na análise do poema. Outra informação de natureza
biográfica, também significativa, no auxílio à interpretação do poema, é que
nesta época o poeta morava só, num modesto apartamento, num velho casarão quase
em ruínas, na Rua do Curvelo, no morro do mesmo nome, na cidade do Rio de
Janeiro. A perda do pai querido, que falecera em 1920 e a residência no morro
do Curvelo, de 1920 a 1933, acabaram por amadurecer a personalidade do homem,
que adquiriu consciência de sua solidão, com a qual teria de enfrentar a
pobreza e a morte. Neste ambiente, não raros deveriam ser os momentos de
profundo desânimo, que abatiam a alma do poeta.
Passando à análise do poema, podemos
notar, primeiramente, que o mesmo apresenta uma estrutura complexa. Estrofação
irregular, versos com métrica livre, muito variada, sem rimas evidentes,
pontuação só no primeiro verso (vírgulas) e ponto final no último verso. Numa
estrutura deste tipo, a identificação do(s) ritmo(s) do poema, não é tarefa
fácil. O vocabulário, porém, é simples, com palavras do uso cotidiano. É
construção formal dentro da estética do
modernismo, segundo o próprio testemunho do poeta, como vimos atrás.
O poema possui duas estrofes. Uma
com nove versos e uma com cinco versos. A
primeira estrofe começa com um verso bárbaro (30 sílabas poética),
seguido por quatro versos irregulares, mas dentro das medidas padrões (6/2/3/3
sílabas poéticas). O sexto verso é novamente um verso bárbaro (18 sílabas
poéticas). Seguem os três últimos versos, desta primeira estrofe, novamente,
versos com métrica irregular, mas dentro dos padrões (8/6/5). A segunda
estrofe, também, começa com um verso bárbaro (16 sílabas poéticas), seguido por
dois versos com métrica irregular, mas dentro dos padrões (10/9 sílabas
poéticas), e o poema termina com duas redondilhas maiores (7 sílabas poéticas). A métrica dos versos pode ser
representada como segue:
______________________________
______
__
___
___
__________________
________
______
_____
________________
__________
_________
_______
_______
Na tentativa de encontrarmos o rítmo
geral do poema, que nos conduza ao
sentido do poema, dentro desta estrutura complexa, podemos fazer valer a
afirmação de JAKOBSON (1973) de que, no verso livre, o ritmo está, não nos acentos, não nas sílabas,
mas sim na entoação da frase; para que esta se revele vamos proceder à análise
das categorias gramaticais das palavras, dos seus significados e da sintaxe dos
versos livres do poema.
O
primeiro verso é um sujeito coletivo, formado por enumeração de quatro substântivos concretos, aos quais o
título integra-se e dá continuidade (poderia, até, fazer parte do verso: A
Virgem Maria, o oficial do registro civil,...).Estes núcleos são acompanhados
por artigos definidos, que os determinam e por adjuntos adnominais, que os
qualificam. É um verso muito longo (o mais longo do poema - 30 sílabas
poéticas), tornando longo o tempo para sua leitura , e o único que tem
pontuação, vírgulas (além do ponto final do poema), o que prolonga ainda mais
esse tempo. É uma apresentação suscinta dos personagens de um enredo, que se
inicia. Uma construção típica de prosa. Observemos agora, as funções exercidas
pelos constituintes do sujeito coletivo, na seqüência do verso: o oficial do
registro civil, expede certidões de
nascimento; o coletor de impostos arrecada tributos de cidadãos adultos, ativos
socialmente; o mordomo da Santa Casa cuida de doentes; mordomo, aqui, é
metáfora de enfermeiro, numa conotação fortemente irônica, pois Santa Casa é
hospital, tradicionalmente, para pobre, e pobre não tem mordomo; esse tom de
ironia é pontual, talvez para quebrar um pouco a monotonia da enumeração; o
administrador do cemitério, autoriza enterros. Se unirmos, pela leitura, ao
início do verso, o título, conforme discutido anteriormente, teremos, também, a Virgem Maria, no Céu, cuidando das
almas. Esta seqüência enumera, cronologicamente, as fases da vida de um ser
humano (cristão): alma no Céu, nascimento, fase adulta ativa, decrepitude
física e morte. Assim, o longo verso,
transforma-se numa metáfora da vida, que, na visão do poeta, também. é longa,
dura muito. No segundo verso é definida a ação que o sujeito coletivo executa:
(eles) cavaram. É feita uma
inversão, na sintaxe normal, antecipando o adjunto adverbial
de instrumento (com enxadas) e postergando a apresentação do objeto da
ação transitiva de cavar, criando uma certa expectativa em torno do que está
sendo cavado. Os próximos três versos, também, adjuntos adverbiais antecipados
ao mesmo objeto direto, são os menores do poema (2/3/3 sílabas poéticas), são
encadeados pela preposição com,
estruturas que induzem a uma aceleração do ritmo, isto é, o sujeito cava algo
com rapidez. A alteração da natureza dos instrumentos utilizados para cavar é
significativa:nos dois primeiros versos, instrumentos convencionais
para cavar – enxadas e pás – que mantêm certa distância
entre o sujeito que cava e o objeto cavado; nos dois versos subseqüentes,
instrumentos insólitos para cavar – as
unhas e os dentes que,
por pertencerem aos corpos dos que cavam (os artigos definidos reforçam essa
idéia), anulam a distância sujeito – objeto, fundindo-os em uma só coisa. No
sexto verso é revelado o objeto da ação:uma cova. No primeiro verso, é
apresentado o sujeito da ação, uma metáfora da vida. A ação funde sujeito e
objeto, e iguala a vida à cova, que pode ser considerada uma metáfora da morte.
Vida é sinônimo de morte. O sexto verso é, novamente, um verso longo (18
sílabas poéticas), forçando a uma diminuição do ritmo. O início do verso, repetindo o verbo, que define a ação, como
que a enfatizá-la, ação esta que provoca a fusão sujeito-objeto, e o éco de Cavaram em cova, reforçam a idéia de que, vida é igual a morte.O grau
comparativo de superioridade, em um adjetivo que denota qualidade inferior
(mais funda que), a presença
de palavra com vogal u em
posição de relevo – renúncia
- que, segundo BOSI (2000), por ser
vogal grave, fechada, velar e posterior integraria, preferencialmente, signos
relacionados a escuridão, a experiências negativas, a tristeza, a morte, todos
esses fatores reunidos, dão a este verso
um tom de profunda melancolia – (fundo) suspiro
– e sentimento de abandono, entrega, prostração diante da vida – renúncia; é, talvez, o verso mais
belo do poema. O pronome possessivo, em primeira pessoa do singular, meu (meu suspiro), revela o “eu” lírico metamorfozeado em
narrador dos fatos sucedidos. Os últimos três versos da primeira estrofe,
começando com um advérbio de tempo (Depois),
dão continuidade à descrição cronológica dos acontecimentos, com o narrador
transformando-se em protagonista da
narrativa, sendo colocado dentro da cova (me
botaram lá dentro).
A ação continua em terceira pessoa (eles = a vida) agindo agora sobre o “eu”
narrador, funde-o com a cova, que é metáfora de morte, e que está fundida à
própria vida: a vida do “eu” lírico – narrador é sinônimo de morte. As
Tábuas da Lei - os Dez
Mandamentos da Lei de Deus, que Jeová entregou a Moisés, no alto do Monte Sinai
- colocadas por cima, pesam e obstruem a
entrada de luz, nesta vida – morte.
A segunda estrofe inicia com um
verso longo (16 sílabas poéticas) composto quase que exclusivamente por signos,
que pertencem aos campos semânticos do fechamento (dentro ), da obscuridade (fundo/treva),
inferioridade (chão) e de
extrema negatividade, ligada à morte ( cova)
que, segundo BOSI (op.cit.), evocam “por analogia, sentimentos de angústia e
experiências negativas, como a doença, a sujidade, a tristeza e a morte.”, além
da sintaxe: fundo da treva; chão da cova. Novamente, um tom
de profunda melancolia e abandono domina o verso, refletindo, provavelmente, os
próprios sentimentos do poeta, pois, como já comentamos, à época, passava por
momento muito difícil da sua vida, tendo de enfrentar sozinho, a sua doença, a
pobreza, a morte do pai e a sombra da sua própria morte, sempre rondando por
perto. Analisando, agora, a sonoridade do verso podemos notar a presença de
nasalização de vogais , em fonemas de algumas palavras, do campo semântico da
negatividade, a pouco mencionado: dentro;
fundo; chão; esta nasalização abafa o som das vogais, e poderia ser
interpretada como um distanciamento entre o “eu” poético e o mundo; nos versos
subseqüentes, este sentido fica ainda mais evidente. Outro efeito sonoro é a aliteração das consoantes oclusivas
dentais d e t, presentes em dez das dezesseis
sílabas poéticas do verso, algumas delas associadas às vogais nasalizadas:Mas de lá de dentro
do fundo da treva do chão da cova. De acordo com CANDIDO (1987), este tipo
de aliteração conferiria um poderoso
travamento ao verso: “Teria o T
(apoiado no D), um valor expressivo de frear, pesar, demorar, atardar,
segurar?” Provavelmente sim, e no poema em análise, seria uma das maneiras
expressivas, encontrada pelo poeta, para
representar o peso e a demora da vida. Este mesmo tipo de aliteração, também,
ocorre no sétimo verso da primeira estrofe, juntamente com duas outras
oclusivas p e b: Depois me botaram lá dentro,
servindo para exprimir noção de travamento, pondo em relevo a idéia de imobilidade.
A conjunção adversativa Mas que dá início ao verso cria,
em razão de sua natureza, expectativa do surgimento de nova situação que se
oporia à vigente, modificando-a.
Contudo, isto não ocorre e a expectativa se frustra. O “eu” lírico ouve a voz da Virgem, mas isto não altera
a sua condição. Nos quatro versos finais do poema, acentua-se o lirismo: 1) a
ação passa para a primeira pessoa (Eu ouvia); 2) muita sonoridade
– aliteração de fricativas f,s,v, sugerindo o sussurar da voz (vozinha=voz tênue, fraquinha)
da Virgem, reforçando a idéia de afastamento, de isolamento do “eu” lírico; 3)
aliteração da oclusiva t, na
palavra insistentemente, lembrando o
martelar do som, abafado pela nasalização das vogais (in,en); 4)
a sugestão de seqüência de notas musicais
, repetidas duas vezes, em fa(zia)
sol lá; 5) anáfora em Dizer,
criando encadeamento; 6) rimas consoantes internas – ouvia, Maria, fazia;
7) metro – dois últimos versos em redondilha maior; 8) ritmo mais
cadenciado, reforçando o lirismo. As vogais tònicas, abertas de sol, fora , sugerem idéia de luz, calor abertura, porém
distantes; o advérbio de lugar lá,
cria o afastamento, que os torna inacessíveis. O tom de melancolia e abandono
continuam fortemente presentes. O advérbio de modo insistentemente, modificando o verbo Dizer, escrito com espaço entre as letras procura dar
idéia de prolongamento da ação da Virgem (de dizer que fazia sol lá fora). O
uso da disposição espacial das palavras e de outros recursos gráficos, na
construção do poema (grafismo), remete aos Calligrammes de Apollinaire, e foi utilizado por outros poetas
modernistas, como Oswald de Andrade. Manuel Bandeira explorou, de maneira mais
radical, à época da poesia concreta, esse recurso estético, num livro
posterior, A Estrela da Tarde.
Se analisarmos o poema sob o ponto
de vista dos gêneros literários, conforme apresentado por ROSENFELD (1985),
tendo em conta o exposto até aqui, podemos dizer que, os nove versos da
primeira estrofe mais o primeiro verso da segunda estrofe tem uma “ evocação
épico-lírica fortemente visual e
plástica ... com a função construtiva
do procedimento da enumeração ... a serviço da organização das sensações numa
unidade de tom” (ARRIGUCCI Jr.,1999). No poema em estudo, este tom é a
melancolia. O discurso, próximo da ficção, é narrado na primeira pessoa, com a
ação em terceira pessoa, num tempo pretérito, como é característico da épica. A
heterogeneidade do ritmo, aproxima o discurso da prosa. O “eu” lírico metamorfozeia-se em narrador, que
se comunica diretamente com o leitor, a quem conta um momento de seu passado.
Os últimos quatro versos da segunda estrofe, e do poema, evocam lirismo em toda
sua força. A ação passa para a primeira pessoa do singular, revelando o “eu”
lírico ( numa ação de passividade - ouvir). “A ação inacabada, própria do tempo
verbal empregado em seu aspecto “imperfeito”, continua repercutindo no
presente.” (ARRUGUCCI Jr.,op.cit.) e a persistência da ação no tempo dá a este características de perenidade
(lírica). O poeta construíndo o poema com uma quantidade de versos
épicos-líricos (10), bem maior do que a de
versos essencialmente líricos ( 4 ) está sugerindo que a vida é feita
muito mais de momentos prosáicos do que de momentos líricos.
Resumindo podemos dizer que no poema, o poeta cria um espaço irreal e
insólito, com imagens de poderosa força plástica, semelhantes a uma visão
onírica de uma tela surrealista, através do qual exprime sentimentos que, provavelmente, se
desenrolam em seu íntimo. A vida é longa, dura muito e é sinônimo de morte; a
vida pesa , é sinônimo de treva e a tradição cultural judáico – cristã
contribui para este estado de ânimo, ou
não é capaz de revertê-la. Os momentos líricos da vida são curtos e mesmo
nestes, a questão não se resolve, a melancolia, a tristeza, o abandono, a
renúncia persistem.
Bibliografia
ARRIGUCCI Jr.,
DAVI - “A festa interrompida” in : Humildade, paixão e morte: A poesia de Manuel Bandeira. São Paulo:
Companhia das Letras, p.207, p.211, 1999.
BANDEIRA, MANUEL
- “Libertinagem” in : Estrela da vida inteira. 20ª ed., Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, p.137,1993.
_________________
- Itinerário de Pasárgada.3ª ed., Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, pp.64 –99, 1984.
BOSI, ALFREDO -
“O som no signo” in : O ser e o tempo na poesia. 6ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras, p.56, 2000.
CANDIDO, ANTONIO
- O estudo analítico do poema. São
Paulo: FFLCH – USP p.27, 1987.
JAKOBSON, ROMAN
– “O que fazem os poetas com as
palavras” in : Revista Colóquio (nº 12). Lisboa, pp.5 – 9, março de 1973.
ROSENFELD, ANATOL
– “A teoria dos gêneros literários” in
: O teatro épico. São Paulo:
Perspectiva, pp.15 – 36, 1985.
(do livro "Ensaios Desnecessários" - inédito)
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