Carlota do poeta criada vivia sonhando acordada
certa que um dia encontraria o tesouro que havia
de ter sido escondido no fundo do mar
em algum canto de suposto castelo de areia
formado de colunares etéreos elos em cadeia infinita
de efêmeros corais organizados quais disciplinados animais
eu ouvia a história nada dizia apenas sorria
enquanto Carlota do poeta criada sonhava
Reconheço a estranheza do referido sonho
porém juraria de pés juntos que ela era lúcida
embora apresentasse comportamento fluido
ora com maciço empenho ora toda descuido
me levando às vezes ao estado de alerta
mas aquele seu jeito espontaneamente lúdico
criando em torno de si um campo magnético
dispunha-me a encará-la como joia rara
espairecia e as ideias pareciam ficar claras
Momento houve que merece ser mencionado
achado o tesouro dizia iria dourar-me todinho
para que ficasse parecido com um anjinho barroco
isso era o que ela mais ambicionava
Confesso temia não desse certo o processo
enquanto Carlota do poeta criada sonhava
e ambos ficávamos cativos daquela ambição
talvez desmedida a nos impor disciplina severa
Entrementes floresciam serenos dias de dulcíficos versos
mesmo tendo o universo mantido sua substância criadora de entropia
Eu do meu lado me sentia um tanto apaziguado
embora não raro me invadisse desejo de partir
ir para longe em outra terra com outra gente
mas sem abandonar Carlota evidente
que em seu mundo lunar perseguia firme sua rota
em busca de possíveis portulanos arcanos
perdidos por velhos marinheiros caídos do alto da gávea no alto mar
trazia amiúde sob um dos braços monte de mapas
única forma concreta de encontrar o tesouro
O liame espiritual que existia entre nós era de tal ordem intenso que
para rompê-lo seria preciso primeiro colhê-lo para só depois sorvê-lo
límpido era nosso relacionamento envolvido numa mágica química
Se alguma vez por acaso ocorresse algum falar obscuro
bem depressa pelas ações ele ia se iluminando convertendo escuridão em luz
e se permeasse cansaço com atitudes meigas era quente o regaço a nos acolher
Nossos gestos eram diamantes raros
lapidados a partir de preciosas sementes
provindas não da superfície rasa
mas de profundo carinho resgatado
Carlota do poeta criada assim sonhando seguia
e eu feliz junto dela naquele sonho além de mera quimera
via o fim das práticas degradadas
o fim da impostura vencida pela decência
da falência da inclemência
via todos enfim vivendo tranquilos
física e mentalmente sem grilos
na verdade tecelões de felicidade com fios do amor
nosso salvador do cadafalso
via e aprendia ademais que a ilusão da razão
vale muito menos do que um trocado falso