domingo, 31 de dezembro de 2023

Posologia pulmonar

entre sussurros e grita

de uma sintaxe aflita

almejar recriar nova ordem

entre calma e sobressalto

de um infrutífero assalto

pretender reverter a desordem

gestos inadvertidamente inúteis

visto o único dos factíveis

priorizar a presença dos carros

bom seria se fossem lembrados

os possíveis danos causados

pela fumaça na formação de catarro 

domingo, 17 de dezembro de 2023

Pisada na bola

procurei quanto pude permanecer em silêncio diante do fato 

assumir uma atitude discreta manter um isolamento tolerável

mas parece ser impróprio da espécie ficar com a voz calada 

controlar a indiscrição respeitar a privacidade alheia

reconheço que errei desta vez contudo espero sair dessa ileso 

não posso mais ferir este meu corpo exausto

terminou meu tempo de gastar vida com desperdícios 

minha hora de dar o sumiço de vez não demora

por isso peço perdão a vocês pela minha pisada na bola

domingo, 3 de dezembro de 2023

Pessitimismo

 esta fala não vale uma letra morta

mas me envaidece gozar tal benesse

conhecimento demais me aborrece

pois base flácida é o que nos suporta

das coisas falsas ideias fazemos

prova de firmeza em nossa atitude

e no erro passa ser em que cremos

como o mundo caminha pra plenitude

e que tudo começará a se iluminar de vez

se conseguirmos sair das trevas talvez

pondo fim nesta decadência canônica 

pelo uso de engenho humano bem raro

evitando o dia de não ter mais reparo 

diante desta derrocada crônica 

domingo, 26 de novembro de 2023

Persistir é preciso apesar do impreciso

por mais se pense cometer  desatino

é preciso encarar o destino

e com força enfrentar o seu fado

quiçá até o considerar  aliado


por mais se sinta dificuldade

é preciso conter esta quilha

na direção de desértica ilha 

singrando mares de infelicidade


por mais se sinta o bordejo

por mais seja o navegar salgado

nunca deixar esmorecer o desejo

de sempre viver com vontade

domingo, 12 de novembro de 2023

O céu tornado tinto de cinza

o céu tornado tinto de cinza

indistintos pé e pico de serra

escuras as águas claras

de fuligem coberta a terra

a cobiça domina as mentes

bem e mal acirram a guerra


o céu tornado tinto de cinza 

iguala-se crepúsculo e alvorada

do altiplano ao vale das sombras

caminhos pela floresta ultrajada

vida assim será possível até quando

não sei não me pergunte mais nada


domingo, 5 de novembro de 2023

Pelas quebradas

prazer ao menos um pouco todos podemos conseguir

embora sujeitos sempre à sorte ainda assim lhe sou grata

mesmo que tenha de arrancar com as mãos para construir

furtivos gozos próprios do mundo nesta vida mediocrata

depredando o meu eu e colhendo os consequentes pomos

porém despertando em paz e pondo a dormir o corpo cansado

cada novo dia tendo na boca uma trava e nas costas uma albarda

todavia mudos ou não passageiros todos nós somos

e se afinal gozar é o que importa de nada adianta ficar escondido

inveja cresce como mato ligeiro e um dia emudecemos em definitivo

domingo, 29 de outubro de 2023

Forró do Além

sanfona triângulo e zabumba

sobre minha tumba

fina dança muita festança

de almas amenas e fantasmas do bem

por todos os séculos dos séculos amém

domingo, 22 de outubro de 2023

Pela vida afora

sabedor que sei de ter sido mal-amado

um dia quis entender por quê


peguei meu passado e o fiz desfiar

tanto que pensei jamais iria terminar

concluí que tudo se deu graças ao desamor

que dediquei a uma mulher desalmada

pelo que cansamos de ter a cara molhada

pelo que enfrentamos fúria de vendaval

pelo que teve como seu exclusivo desenrolar

montanhas de melancolias e cólicas estomacais


já separados consultei uma cartomante 

que me deu a explicação seguinte 


tudo foi obra do destino em associação

com nossa desmesurada vaidade

de sonhar sonhos ambiciosos demais

construir castelos de areia de verdade

cavar buracos negros no vácuo universal

querer descobrir por quem os sinos dobravam


certo tempo depois uma mulher especial

me fez ver que a vida não vale nada sem amor

sincero e como é bom passar a mão numa guitarra

deixar o cigarro no cinzeiro e sair por aí a cantarolar

domingo, 15 de outubro de 2023

O mau khayyam

levar a vida de forma lúdica

de tantas outras talvez a única

capaz de deixar a boca úmida

colocar no ar uma boa música


até a torneira pelo aqueduto

a água vem de bem distante

não há poder mesmo absoluto

que não altere seu semblante


estamos aqui frente a frente

eu que estou meio dormente

e tu que ainda matraqueias

estas bobagens em minha orelha


tamanha perda de tempo precioso

em vez de encher de vinho a jarra

desse jeito acabo ficando furioso

não me forces a usar a cimitarra

 

domingo, 8 de outubro de 2023

Peripécia obrigatória

defuntos são uma peripécia obrigatória

em toda família que se diz respeitosa

senão haveria uma situação curiosa

estaria estabelecida a eternidade compulsória


por outro lado com a produção contínua de mortos

é liberado espaço pros nenês que nascem todo dia

como o primo zé parido com os dois olhos tortos


sem contar o caso daquela monja budista

que teve o corpo sepultado ainda meio vivo

e pobre coitada infeliz nunca mais foi vista


pra não perturbar os que ainda têm de viver

fantasmas conscientes residentes em casa

procuram os cantos escuros pro seu métier

evitam salão iluminado pra mandar brasa


a maioria porém prefere antros sepulcrais

onde possam se instalar com conforto

pra sentir o frio do além e curtir seus ais

domingo, 1 de outubro de 2023

Ousadia vazia

qual tipo de sorte 

além da certeza da morte 

nos aguarda amanhã e depois se ele houver 

seguir esta vida malsã para o que der e vier 

caminho sem volta veredas soturnas umas 

outras amenas clareiras ao menos por pouco 

terras estranhas com vales fundos 

entranhas que abafam o eco de um balbucio rouco 

murmúrio sem acolhida em ouvidos moucos de mentes de perdida memória 

do tilintar de rimas 

inutilidade que não mais se prima 

palavras fora do rumo da mercantilidade 

lavra de infecto inseto 

que teima não renegar seu zumbido sombrio 

em campo de ervas daninhas 

sílabas desnutridas cultivadas com cansaço em silêncio 

invenção da existência na permanência da ficção 

ousadia de pretender contar a história da vida pela poesia

domingo, 24 de setembro de 2023

Ordem cruel

e tantas as áridas criaturas

flageladas por inclementes varas

sem estreitar laços de felicidade


pantanosos caminhos percorridos 

e depois de muito seguir

cai o dia e o repouso ao relento


outra deveria ser a ordem da existência

com limites mais estreitos à ganância

todavia não é assim que ocorre 


bem mal dividida é a fadiga da vida

zilhões penam carregando pedras

lançados à margem da sociedade


enquanto outros nem tantos 

recebem a recompensa

de viver uma vida decente 

domingo, 17 de setembro de 2023

O poder da invenção

pelas vias perdidos constantemente

vamos em busca do poder da cura

milagrosa feito doidos frementes

em lugar de levar vida mais pura


esquecemos facilmente da plena

graça para bem estar neste mundo

que é preciso manter sempre serena

atitude frente ao abismo profundo


e ouve lamúrias como se murmúrios

e acode o necessitado que o chama

tudo sem fazer alarde ou barulho


nada lhe afetando nunca reclama

ser humano assim só um em milhão 

ou então concebido pela ficção 


domingo, 10 de setembro de 2023

Metamorfose ambulante

chovia e fazia sol 

fazia sol e chovia

ainda quando e onde devia


às vezes saía do esquema

e logo voltava ao normal


as matas ainda verdejavam felizes

os rios ainda fluíam bojudos 

o ar ainda era limpo e fresquinho


mas a situação vinha mudando  


passou a chover do jeito que não devia 

e o sol mais e mais torrava a terra 


as matas foram minguando

os rios emporcalhados secando

o ar poluído fedia e sufocava


e cada vez mais, mais e mais pior 

até chegar ao ponto em que


a chuva virou pó 

flor só tinha de plástico

os rios transformados em aterros sanitários  

e o ar se escafedeu pra Plutão 


e as pessoas?

bem, as pessoas foram metamorfoseadas 

e evoluíram para algoritmo de aplicativo


segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Grande climatério

do jeito que vai vamos acabar nus

sem grana pra pagar a conta de luz


o mercado exige mais e mais agilidade

motivo por certo de toda essa ansiedade


o verdadeiro sentido do amor

há tempos espera pra entrar em vigor


o que interessa é obter carícias plenas

tanto homens quanto loiras e morenas


difícil achar alguém de fato generoso

provavelmente por ser um ato oneroso


ninguém quer saber de obedecer a lei

herança  dos tempos quando havia rei


recursos pra saúde têm sofrido muitas feridas

devido às bocas dos políticos e suas mordidas


infelizmente essa é a situação corrente

o que me faz cada vez mais indiferente


preocupada apenas em cultivar flores

e superar esta fase etária de tantos calores

domingo, 27 de agosto de 2023

Pessoas normais

é excitante viver cercado de cascavéis

seguindo com cara séria sem zombaria

como pessoas normais sempre cruéis

solidárias na partilha de tanta patifaria

domingo, 20 de agosto de 2023

Passageira mascarada

os ruídos roucos da cidade louca ecoam nos ouvidos moucos 

daí se dispersam entre zilhões de ramos de sulcos cerebrais 

e o corpo onde habitam reflete tudo ─ sintonia de pura matéria putrescível ─

e mesmo se com colares bem enfeitado um dia por vermes será vazado


os inocentes úteis dirão ─ aí só tem pessimismo inútil ─

e os pessimistas inúteis ─ é um justo mau presságio ─

enquanto em cotidianamente mecânicas ações segue enfeitiçada

pelos donos do mundo que a delineiam essa passageira mascarada

domingo, 13 de agosto de 2023

O vazio do oco

nesta megalópole em que transito

fumaça de carro a álcool 

é o que de melhor respiro

o escarro não é tão negro

quanto o de carro a diesel 


nesta quitinete em que habito 

 o corriqueiro palavrório vizinho

passa pelos poros da parede 

misturado a cheiro de peixe frito


nesta vidinha chinfrim assim

celebro minha mediocridade 

sem direito à exclusividade

ela enche meus dias com nada 

domingo, 6 de agosto de 2023

O futuro da criatura

 no frigir dos ovos o que ainda resta

é gozar na cara de tamanhas legiões

de inocentes úteis que desta festa

participamos servindo às dominações

tudo gente boa que numa boa doa

o último vintém pra sair do inferno

cotidiano na ilusão de pôr a mão na coroa

vendida pelo bispo em nome do padre eterno


mas deixemos pra lá toda água passada

mesmo que nosso ovo venha sem gema

tenha apenas clara ou não tenha nada

contentemo-nos com este falso diadema

encaremos a vida como uma beleza pura

vai ver assim nossos ancestrais primitivos

almejassem para o futuro da sua criatura

quem sabe eles também seres humanos cativos

domingo, 30 de julho de 2023

Inseparáveis

não cessa a publicação dos proclamas

do casamento da alegria com o triste

eterna união destinada às chamas

da mundana vaidade que persiste

domingo, 23 de julho de 2023

Bicho papão

cadê o céu azul limpinho que estava aqui

o homem bicho fez fedorento cinza fumarento

que bafeja calor calcinador do planeta 


cadê a floresta verdinha viçosa que estava aqui

o homem bicho fez pasto pra bife comedor de capim

que aniquila vidas valiosas da flora e da fauna nativas 


cadê o rio caudaloso piscoso que estava aqui

o homem bicho fez putrefato esgoto

que assombra a saúde e a sede da gente


cadê o homem humano que devia estar aqui

o homem bicho comeu... 

domingo, 16 de julho de 2023

Nos conformes

exercita a preguiça no balanço da rede
enquanto o tempo passa pela vidraça 
do apartamento de 30 metros que habita

pros outros apertos inventa bamboleios  
para driblar veículos aflitos sem freios
viaja nos trilhos do trem metropolitano 

embora seja preciso moral flexível
em particular nos horários de pico 
o que é praticamente impossível

quotidiano há anos roendo osso
vida bamba corda tesa no pescoço
coração de tripa pra evitar o crime
todavia tem hora falta pulso firme

dança samba pagode
valsa tango e bolero e
tolera encheção de saco 
caso lucre com o caso

pretende ir tocando a lida
sem muito aborrecimento
fazendo de conta
estar satisfeito da vida

domingo, 9 de julho de 2023

No mundo do faz de conta

agora vamos brincar de era uma vez

esquecer as infaustas horas soturnas

e estampar arremedo de alegria na tez

lugar comum de expressões taciturnas

 

pensemos em nossa boa educação e excelente saúde

por podermos beber da fonte da eterna juventude

 

por respirar só saudáveis ares marítimos

dançar no embalo de agradáveis ritmos

 

ouvir sempre o som da mais bela cantiga

fazendo de conta que somos gente amiga


domingo, 2 de julho de 2023

No fim da tarde

longe vai a alvorada 

momento sublime do renascer da luz

fugidia ilusão de nova esperança 

para além do inalcançável


a alegria sempre tão esquiva 

dá lugar às eminências do sofrimento

teimoso em ficar bem próximo

para o assalto do peito no fundo


pensamentos sem começo nem fim

se misturam ao rodopio do vento

que sacoleja a vidraça do quarto 

anunciando a vinda da tempestade

domingo, 11 de junho de 2023

Bilhete na gaveta de uma velha escrivaninha

imprevidentes vós que não cuidais

de ver a gravidade deste estado

tenebroso que vos tem enganado

com o desejo de ter tudo e mais

tornados insensíveis acostumais

com o mal a deixar desesperado

quem tivesse o juízo concertado

então a ele nada de atenção dais

subjugados ao ritmo da impaciência

não percebeis a rapidez da vida

dádiva fugaz como o pensamento

insistis em pôr vossa resistência

lembrando tão somente da subida

esqueceis da descida o sofrimento

domingo, 4 de junho de 2023

Entropia

princípio do fim universal

conflito entre a ordem e o caos

sendo restritas nossas benesses

e imensos os nossos estresses

domingo, 28 de maio de 2023

Justo gesto

meu desejo manifesto
perdido em pesadelos
é não mais vê-los

creio justo gesto
de um homem honesto
que não faz por merecê-los
muito menos de querê-los

pois não perco o resto
de ingênua esperança
de cada dia ganhar o pão 
que a casa levo

sem cair na intemperança
porque sei que posso
mas que não devo

domingo, 14 de maio de 2023

De bem consigo

se não me penso piedoso cruel me dizer desonesto

na vida nunca tive gesto com claro fim duvidoso

visando algo vergonhoso falo franco sou modesto

é meu estado manifesto sem passar por gracioso

melhor agir com brandura em busca de ser sereno

resistente ao sofrimento distante da cavalgadura

imune ao seu veneno tendo livre o pensamento

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Jacobina

trinta anos servia eu à peçonhenta 

em forma de mulher bela e ela 

em nada a mim servia mas só servia a ela 

e dela certamente me livrar eu pretendia 


ansiava pela chegada deste dia  

não suportava mais vê-la todavia 

necessário era ter cautela 

resolver tudo sem fazer estrepolia 


evitar os erros cometidos no passado 

não pensar no desperdício 

de tantos anos mal vividos 

e me aplicar para pôr fim à situação tão impostora 


dar à jararaca a resposta merecida 

ir embora no momento oportuno 

já que antes não fora esperançoso 

ao encontro de uma boa nova vida

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Infância

 todas pareciam tão alegres

todas pareciam tão amigas

depois aprendi eram tão solitárias

como eu aprendi também a ser 


a subida da ladeira do largo da igreja era o calvário

minha tia ia vestida de branco fiel filha de maria

mas o que eu gostava mesmo era de quermesse de largo

achava lindo olhar a roda-gigante mas só olhar... de longe


domingo, 2 de abril de 2023

Hipertensão

solitário sentado à janela semicerrada 

aguço o ouvido e ouço os lobos uivando 

na escuridão permanente da capital do país 


sinto um fluido fervor percorrer as flácidas entranhas 

um sopro mais forte do vento assobia pela frincha da janela 

lembro de meus dons de dançarino na mocidade 

e que preciso controlar mais o sal com a idade avançada 


o orgulho de saciar a gula erguer os copos como se fosse dia de festa 

o gozo intacto só para os privilegiados longe está

tarda ainda a tarde do dia da inalcançável alegria geral 


sozinhos corpos tão franzinos diante de tanta balbúrdia 

que aturde onde sopra o sopro da inocência perdida há tempo 


ouve-se o tic-tac de velhos maquinismos atemporais nas fábricas 

apertando operários parafusos cruzetas falsas promessas 

a tal ponto que me sinto muito confuso diante de tantos aparelhos 

domingo, 26 de março de 2023

Herança capital

igual ao nocaute do boxeador
tal o prêmio dos desapoderados

exauridos até ficar fracos sem cor
pelos trabalhos a que são forçados

para a bonança das figuras ilustres
donas da sociedade que fulgura

pelos salões clareados com lustres
de cristal num carnaval de loucura

domingo, 19 de março de 2023

Fractal

pra livrar o hediondo azar do meu pé 

só mesmo indo num bom candomblé 


preciso me afastar dessas antas 

senão morro com a boca cheia de formiga 


me cansei de atravessar o rio a nado de costas 

tantas decisões indecisas tantas conversas incultas 


depois da confusão que eles aprontaram 

ninguém mais me visitou sequer telefonou 


nem mesmo a gostosona filha do juiz 

o chefão da quadrilha 


a gente costumava sair pra dançar


domingo, 12 de março de 2023

Foi pro brejo

pra mim chega cansei de servir de seu anteparo

em todos seus momentos de precisão estar presente 

situação que muitas vezes me tem custado caro

e como gratidão sua censura que sou inconsequente

sabendo que sua palavra não admite nenhum reparo

mas não nega que amei você perdidamente


decidi que o melhor agora é eu ir embora

nossa união faz tempo foi pro brejo

parto sem sentimento de desforra 

acredite meu sincero desejo

é que viva sua vida em paz enquanto

eu se possível como seu amigo apenas 

tentando esquecer seu tirano encanto

quero gozar dias alegres e noites serenas

domingo, 5 de março de 2023

Finjo logo existo

Carlota do poeta criada vivia sonhando acordada
certa que um dia encontraria o tesouro que havia
de ter sido escondido no fundo do mar 
em algum canto de suposto castelo de areia 
formado de colunares etéreos elos em cadeia infinita 
de efêmeros corais organizados quais disciplinados animais
eu ouvia a história nada dizia apenas sorria
enquanto Carlota do poeta criada sonhava

Reconheço a estranheza do referido sonho
porém juraria de pés juntos que ela era lúcida
embora apresentasse comportamento fluido
ora com maciço empenho ora toda descuido
me levando às vezes ao estado de alerta
mas aquele seu jeito espontaneamente lúdico
criando em torno de si um campo magnético
dispunha-me a encará-la como joia rara
espairecia e as ideias pareciam ficar claras

Momento houve que merece ser mencionado
achado o tesouro dizia iria dourar-me todinho
para que ficasse parecido com um anjinho barroco 
isso era o que ela mais ambicionava

Confesso temia não desse certo o processo
enquanto Carlota do poeta criada sonhava
e ambos ficávamos cativos daquela ambição
talvez desmedida a nos impor disciplina severa 

Entrementes floresciam serenos dias de dulcíficos versos 
mesmo tendo o universo mantido sua substância criadora de entropia

Eu do meu lado me sentia um tanto apaziguado
embora não raro me invadisse desejo de partir  
ir para longe em outra terra com outra gente 
mas sem abandonar Carlota evidente 
que em seu mundo lunar perseguia firme sua rota 
em busca de possíveis portulanos arcanos 
perdidos por velhos marinheiros caídos do alto da gávea no alto mar
trazia amiúde sob um dos braços monte de mapas
única forma concreta de encontrar o tesouro

O liame espiritual que existia entre nós era de tal ordem intenso que
para rompê-lo seria preciso primeiro colhê-lo para só depois sorvê-lo
límpido era nosso relacionamento envolvido numa mágica química

Se alguma vez por acaso ocorresse algum falar obscuro 
bem depressa pelas ações ele ia se iluminando convertendo escuridão em luz
e se permeasse cansaço com atitudes meigas era quente o regaço a nos acolher 

Nossos gestos eram diamantes raros
lapidados a partir de preciosas sementes
provindas não da superfície rasa 
mas de profundo carinho resgatado

Carlota do poeta criada assim sonhando seguia
e eu feliz junto dela naquele sonho além de mera quimera 
via o fim das práticas degradadas 
o fim da impostura vencida pela decência 
da falência da inclemência
via todos enfim vivendo tranquilos
física e mentalmente sem grilos
na verdade tecelões de felicidade com fios do amor 
nosso salvador do cadafalso
via e aprendia ademais que a ilusão da razão
vale muito menos do que um trocado falso

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Filosofia pedestre

 quando subimos no mesmo trem

separamos o que temos de bom 

ajuntamos todos os nossos males 


por isso estimado amigo é que digo 

veja bem a enrascada em que vai se meter 

a vida é curta e o que  mais se quer é curtir 


essa é uma certeza da qual pouca gente duvida 

no amor a gente esquece que a mente delira 

o baixo-ventre queima e é aí que a gente dança

domingo, 19 de fevereiro de 2023

Esperto

se imiscuir nas ações mais ímpias

com traquejo pra sair de mansinho

bem à vontade no meio das harpias

se preciso rápido mudar de caminho


bico calado ser o último que palpita

faro fino manter o olhar bem aceso

puxar a brasa pra sardinha favorita

digno anfitrião do melhor desprezo


decorar algum provérbio ou salmo

fazer parte do grupo dos caridosos

aparentes ar permanente de calmo

por mais sejam os desejos furiosos


fingir compaixão ao alheio sofrimento

fazer de conta que nada o quebranta

se passando por um bom elemento

explorando legal a ignorância santa

domingo, 12 de fevereiro de 2023

Enquanto

anteriormente com seis era jardim da infância

resolveram mudar pra início do fundamental

visando aprimorar a pedagogia nacional 

cujo futuro ficou oferecido à falência


precavidamente uma economia foi inventada

pras silenciosas benesses de uma minoria

pelos bolsos vazios de gente maltratada

que até sem comer consegue ter euforia


lentamente continuam a seguir as lesmas

pelos descuidados jardins da cidade elas mesmas

admiradas com a exímia habilidade dos morcegos

nas noites de lua nova em seus voos cegos


domingo, 5 de fevereiro de 2023

Fartos de desamores

não há como conter o espanto 

diante da maravilhosa selvageria da civilização 

num avanço alucinado levando tudo de roldão

conquistando conhecimentos inimagináveis 

responsáveis por tantos benefícios 

causadores de outros tantos ou mais malefícios

erguendo obras monumentais 

e destruindo impiedosamente o meio ambiente

poucos se apossando de riqueza e poder descomunais 

milhões sendo tão miseráveis 

sequer considerados pobres

poucos saciando o estômago com fartura 

até jogando comida boa fora 

milhões morrendo de fome


enquanto o destino humano 

se emaranha num novelo indestrinçável 

todos desesperados subjugados à matéria impura

sem esperança de cura 

os laços da verdadeira solidariedade 

teimam em não se consolidar 

e seguimos fartos de desamores


domingo, 29 de janeiro de 2023

Elegia a uma ilusão

 neste entrementes 

em opressora liberdade

continuo apto ao oco


persigo palavras pedestres

para inventar histórias 

destinadas ao nada


disperso meu olhar no longe sem fim

arrastado por sinuosos desejos 

que penetram e saem ilesos de mim  


teimoso e quase talvez ainda lúcido 

faço de conta que nada disso me afeta

iludo assim minha vontade de vida  

domingo, 22 de janeiro de 2023

E vamos que vamos

enquanto a dor dos doentes privados 

carece de hospitais públicos decentes

pelos becos e pelos botecos se ouvem 

os ecos de gemidos famintos

abafados pelos gritos de grávidas 

parindo mais desafortunados

cujo infortúnio não será mitigado

pela esmola de uma bolsa 

artefato de caridade  

insulto da fortuna à equidade 


mas tudo bem...

sempre se dá um jeito de relaxar 

bola rolando carnaval chegando

cerveja descendo redondo  

e a gente achando que é tudo normal  

domingo, 8 de janeiro de 2023

Da nossa passagem

bem-aventurados os que mantêm em suas entranhas 

acesa a chama clara do entendimento do inevitável escoamento do tempo

e disso conseguem extrair sábios ensinamentos de vida

nesta nossa viagem com passagem apenas de ida