segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Pavio curto

 você anda dizendo que

sou um indivíduo intolerante

que me irrito com facilidade

com comportamento bem mal-educado

que perco o controle à toa e que

sou uma pessoa explosiva

pra resumir tudo numa frase

você tem afirmado por aí que 

meu pavio é muito curto


sem desmerecer seu julgamento

permita que apresente meu argumento

pra que você possa entender então

um pouco melhor a situação


faz mais de 70 que estou na estrada

nesse tempo todo de caminhada

como costuma acontecer com muita gente

em inúmeras ocasiões fui coagido 

a engolir toneladas de sapos

a sofrer injustos impropérios 

a ouvir calado cobras e lagartos 

proferidos  sem razão contra mim


evidentemente

durante essa já longa jornada

derrapei em algumas curvas

provocando sobressaltos

mas um fato deve ser reconhecido

em nenhuma dessas ocasiões 

alguém saiu gravemente ferido

se tanto alguns poucos arranhões


não sei quanto tempo ainda 

me resta permanecer na pista

de qualquer forma seja quanto for

uma coisa precisa ficar bem clara

nesta altura do campeonato

acredito que a rigor de fato

posso ousar não tolerar mais 

qualquer atitude insolente 

em relação a minha pessoa e

em pleno gozo de meus direitos

por apresentar razoável longevidade

cidadão na mal dita melhor idade

me manifestar de maneira

intolerante

irritadiça

e até mesmo

descontrolada

explosiva

caso alguma dessas merdas injuriosas 

me sejam endereçadas


vai ver que é por isso que

ultimamente 

por usar amiúde de certa malcriadeza

tenho causado certo tipo de estranheza

quem sabe


mas pode acreditar cara amiga minha paciência 

na verdade é que sempre foi bem grande

a rigor imensa

poderia dizer sem receio de errar

meu pavio não foi feito curto não

meu pavio foi feito mais comprido 

do que a restinga de marambaia

e tem mais

meu saco foi feito maior do que o pão de açúcar

e com um pouco de exagero talvez 

se pudesse imaginar que daria até 

pra eu ficar de braços abertos ao lado dele 

lá no alto do morro do corcovado

domingo, 23 de agosto de 2020

Abacaxis às claras

muita coisa essencial não se compreende

quem sabe porque tenham sido feitas 

para que não sejam compreendidas

não é a ausência de palavras que faz

deixar de existir o que está existindo

as palavras gostam de vir atrás das coisas

tudo que se imaginasse um dia existisse

de alguma forma preexistia a imitação

é a mola mestra que impulsiona a vida

questão fundamental é saber como imitar 

criativamente pois quando a imitação é 

inovadora passa a ser agregadora    

por mais condição que se tenha só 

se pode criar a partir do que existe

acrescentar ao existente algo mais 

a adição imaterial de si mesmo

a ousadia de transformar o rito

eleva uma pessoa à individualidade

mas por pôr em risco o edifício todo mantido 

com o trabalho servil de tantos é combatida

por que uma pessoa teria como ideal 

então a urgência de ser individual

só alguns sentem a danação de procurar 

inventar os próprios passos um a um 

à medida que avançam constituindo o caminho

a maioria acha que domina o processo   

se escondendo em pernicioso isolamento 

confundido com mentirosa liberdade

o desejo de todos é estar na festa a todo

custo nem que seja só por espalhafato e um

modo de se agarrar a isso é ser alguma coisa

que os outros vejam como sendo eles próprios

para não por em perigo 

a cegueira generalizada 

patrocinada pela homogeneização 

e pasteurização global

por que arrogar-se o direito de revolta

e vir depor gaguejando

cada um é testemunha de si próprio 

não adianta esconder a cara

por que não saber exprimir 

que afinal tudo está certo 

miraculosamente certo 

e o mundo é maravilhoso

por que insistir em entender 

que a grande ascensão não passa de 

reles decadência se só quem se metamorfoseou 

em si mesmo pode entender

por que ter escrúpulos 

por que não aproveitar se a vida é tão curta

sentir o delicioso gosto ignóbil 

que um rato sente ao andar pelos esgotos

em última análise tocar para frente

levar adiante protegidos pela mesquinhez

reconhecer que há um inviolável 

pacto de silêncio em vigor

que todo mundo sabe a verdade 

e o jogo é assim mesmo

agir como se não soubesse nada 

essa é a regra básica do jogo

encetar a dura luta muda 

contra a inapelável natureza humana

por que lutar cada um tem o direito de ser o que é 

e dormir tranquilo ou não

não é possível sentir a fome alheia 

com o próprio estômago

embora por ter engolido 

bem mais do que se pode digerir

se possa estar nauseado de ser gente

estar enfastiado querer refúgio e paz

para encontrar paz ter de esquecer os outros

para encontrar refúgio não ter nada a ver com ninguém

depois de tanto querer 

não saber mais o que se quer

só sentir-se ridículo por ter tido a esperança de que

uma coisa que não tem salvação pudesse ser salva

e diante do vexame 

se retirar na ponta dos pés

procurando não fazer barulho

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Palavras e coisas

 manoel de barros poeta maior 

entendedor de tudo sobre o nada

arauto de sábias ignorãnças  

das grandezas do ínfimo 

num de seus inspirados poemas rupestres  

diz sofrer um encantamento poético

ao olhar a garça-ave e a palavra garça

embalado que fica pela comunhão

do corpo níveo da ave 

em seu voo elegante e livre 

sobre as ainda lindezas do pantanal 

com o corpo sônico da palavra

em sua intrínseca beleza letral


eu eduardo poetastro menor 

bisbilhoteiro de nada se tanto 

neste poemículo citadino me atrevo a pisar  

ao avesso as pegadas poéticas de mestre manoel 

pra dizer que sofro um desencanto profundo

ao ver o estado da pomba-ave nesta cidade

e ler a palavra pomba no dicionário

perturbado que fico pela dissonância

entre o corpo físico imundo da ave 

e o corpo sônico harmônico da palavra


ave símbolo da paz e da pureza

na metrópole moderna se metamorfoseou em rato alado

e se imiscui sem cerimônia por todos os lados

domina o espaço de outros pássaros

caminha atrevidamente pelas calçadas e praças

ciscando lixo em busca frenética por alimento 

aboleta-se em árvores postes monumentos telhados 

defecando procriando espalhando piolhos fungos bactérias

dando com sua presença predatória 

à maioria das cidades do mundo 

valiosa cota de contribuição para a degradação 

da qualidade de vida e do meio ambiente urbano

degradação que vem na cola  

ao que se convencionou chamar de progresso 

domingo, 9 de agosto de 2020

Loucura líquida

o teto sem telhas

o chão batido 

confrontam 

a guerra desigual 

da furiosa correnteza

com as paredes sem reboco 


inseto rastejante sem asas 

preso à cadeia volante

teia da ocasião

acato o acidente 

ajoelhado frente ao desastre

bendigo apaziguado a vida

aceito passivo o despejo


mísero resíduo

no espúrio exílio

aguardo paciente

o recuo das águas


minha força 

há de elevar-se

a necessidade 

é mãe da resistência

em outros lugares 

ocorrem 

iguais ou piores combates

domingo, 2 de agosto de 2020

Otimista

firme e forte feito uma gelatina
versejo estes versos pra latrina

no influxo da abundosa poetagem 
dos comunicativos tempos de hoje 

sem nenhuma fixa ideia
aliás sem qualquer ideia 

busco palavras sem nexo 
deixando fluir reflexos

ciente e certo da mercantilista 
banalização da arte capitalista

indiferente procuro ausente 
registrar o oco da mente

esperançoso que o futuro 
será pior que este monturo

aliviado por saber que nada 
sempre dura graças à indesejada