domingo, 31 de maio de 2015

NESTE ESFACELO SEM FIM E SEM FORMA

Neste esfacelo sem fim e sem forma
A corrupção gangrenosa que sempre
Impregna o poder que ora
Firmemente
Procuramos reter nas mãos
É a chave que nos faz triunfantes sobre nossos adversários
Triunfo que nos torna herdeiros de suas ruínas

(do livro “Poesia... Afinal pra quê?”)

domingo, 24 de maio de 2015

O banquete

De um canto escuro do jardim espreita, pela fresta de uma das enormes janelas laterais, o interior do deslumbrante salão.
A luz dos suntuosos candelabros
As porcelanas. Os cristais. A prataria.
Os assados. Os vinhos. As sobremesas.
O ir e vir dos serviçais subservientes.
As gargalhadas. Os alvos dentes. As joias magníficas.
O burburinho incessante.
Só bem poucos convidados.

Está boquiaberto.
Pelos cantos da boca escorrem dois finos fios de baba visguenta negro-esverdeada.

 — Nossa, é muita comida pra pouca gente!

Mais adiante (do outro lado mal iluminado da rua) uma chusma ignara lentamente segue cabisbaixa sem sequer saber da sua existência.

(do livro “Contos Medonhos”)
https://books.google.com.br/books?id=ZZcuBQAAQBAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r#v=onepage&q&f=false

domingo, 17 de maio de 2015

BRANCOLIM

Era uma vez, na Terra-do-Faz-de-Conta, um urso que tinha os pelos completamente brancos. Aliás, ali onde ele morava todos os ursos tinham os pelos completamente brancos. Mas ele era tão branco que quando ele nasceu seus pais lhe deram o nome de Brancolim.
Brancolim vivia feliz brincando, nadando, caçando, pescando juntamente com os membros da sua família e também com os outros ursos brancos dali daquele lugar onde todos eles moravam.    
Um dia, quando Brancolim já era crescidinho, ele chegou à conclusão que devia correr mundo para conhecer outros lugares. Conversou com os pais para expor sua ideia.
Os pais de Brancolim, num primeiro momento, não concordaram em deixar o filho partir. Achavam, principalmente a mãe, que ele era ainda muito criança para sair pelo mundo afora sozinho.
Brancolim ponderou que não era mais tão criança assim. Ele já tinha idade suficiente para levar avante o projeto. Além do que seria uma oportunidade dele se desenvolver e aprender sobre a vida.
Tanto conversou com palavras tão sensatas e equilibradas que os pais acabaram concordando com a ideia. Brancolim fez então os preparativos necessários para a viagem; despediu-se da família e dos amigos e partiu.
Viajou por muitos lugares. Conheceu coisas superinteressantes que ele nem imaginava que pudessem existir.
Os dias, as semanas, os meses foram passando e Brancolim continuava sua viagem sem um destino determinado. Ia na direção que o vento soprava. Ia pra onde lhe desse na cabeça. E assim foi indo até que um dia...
Depois de uma jornada cansativa chegou  num lugar conhecido como a Terra dos Ursos Negros. Como o próprio nome indicava, na Terra dos Ursos Negros, todos os ursos tinham o pelo completamente negro.
Os ursos negros ao verem Brancolim acharam-no muito esquisito. Ele tinha corpo de urso; cara de urso; jeito de urso; mas aquele pelo todo branco era mesmo muito estranho.
Como Brancolim era muito simpático logo fez amizade com alguns ursos negros jovens como ele e isso acabou causando confusão. Muitos ursos negros, principalmente os mais velhos, começaram a dizer que os ursos negros não deviam se misturar com aquele urso branquelo.
Brancolim ao saber de tudo o que diziam a respeito dele só porque ele tinha pelo branco, ficou muito triste e pensou em abandonar aquele lugar que o rejeitava  e voltar para casa. Porém, ele tinha feito uma amizade muito legal com Neia, uma ursa negra de mesma idade que ele, e decidiu seguir os conselhos dela e não foi embora.
Neia era uma jovem ursa negra muito bonita, muito inteligente e esclarecida. Ela convenceu Brancolim a não abandonar a terra dos ursos negros só porque tinha alguns ursos negros que não gostavam dele porque ele tinha pelo branco.
Se ele quisesse ir embora por vontade própria, tudo bem, mas se fosse por causa dos ursos que não gostavam dele aí, tudo mal, ele devia ficar e enfrentar a situação. E foi o que Brancolim fez.
Brancolim continuou vivendo na terra dos ursos negros. Pouco a pouco foi conquistando seu espaço; tendo o respeito e a amizade de todos. Não foi fácil, mas ele acabou conseguindo.   
Mais tarde a amizade entre Brancolim e Neia se transformou num grande amor e então eles resolveram se casar. Foram morar numa caverna no alto da Montanha Pedregosa, que era a montanha mais alta que tinha na terra dos ursos negros.
Depois de um tempo de casados Brancolim e Neia tiveram um filhote. Ele nasceu com o pelo todinho cinza! Era lindo! 

(do livro "54 histórias que minha avó contava na kombi")
http://www.asabeca.com.br/detalhes.php?sid=29032015151549&prod=6201&friurl=_-54-HISTORIAS-QUE-MINHA-AVO-CONTAVA-NA-KOMBI-_&kb=1073#.VViK8flVikp

domingo, 10 de maio de 2015

Uma gentil mulatinha

         Machado de Assis, no conto “Mariana” (1), publicado pela primeira vez no Jornal das Famílias em janeiro de 1871, oferece-nos a oportunidade de perceber aspectos relevantes da sociedade brasileira urbana do século XIX no período do segundo império. Sociedade escravocrata fortemente piramidal (2) que abrigava em seu topo os privilegiados proprietários, endinheirados, ociosos, donos do poder — aqueles que podiam ficar (exagero irônico machadiano à parte) quinze anos (!) viajando pelo mundo; ou então ficar num bate papo com amigos durante horas em torno de uma mesa de hotel degustando um suculento almoço arrematado a cognac e charuto — e que soterrava em sua base uma imensa multidão de escravos desprovidos praticamente de qualquer direito, muita vez até mesmo do direito de amar.
Nessa sociedade desigual podia haver, em dadas circunstâncias, entre os membros pertencentes a esses dois polos sociais extremos uma articulação de cunho paternalista (3) da camada superior em relação à inferior que permitia a essa auferir certos privilégios e ser parcialmente cooptada por aquela. Tal paternalismo, fruto da mera liberalidade de quem o praticava, vinha cercado por uma aura de pretensa benevolência, mas de fato era autoritário e arrogante. Os privilégios auferidos pelos inferiores não tinham o respaldo, a força de uma conquista advinda de uma luta de classes. Eram privilégios parcos, frágeis, que a qualquer momento podiam ser suspensos se assim bem entendesse quem os concedia porque baseados em puro favor. A cooptação de inferiores no meio superior alguma vez dava origem a tensões entre os indivíduos envolvidos sendo que, como seria natural esperar, a corda arrebentava sempre do lado do mais fraco, ou seja, do agregado. Este nosso conto objeto de análise muito bem mostra isso.   
            Devido à aparente bondade e ao espírito humanitário da matriarca, a mãe de Coutinho — neste conto a cabeça da família é uma mulher (a mãe que dava afagos; a mãe que era bondosa; a mãe que tinha o poder de conceder liberdade; a mãe que sabia interrogar; a mãe que ficava triste ou indignada; a mãe que perdoava), não há sequer menção ao patriarca, exceto numa única passagem quando o narrador diz, referindo-se à sua noiva, a prima Amélia: “Meus pais aprovaram a minha escolha” — Mariana, uma jovem e bela escrava, fora, nas palavras do próprio filho “criada como filha da casa”, recebendo da mãe do rapaz “os mesmos afagos que ela dispensava às outras filhas”. A menina, por seu lado, procurava retribuir à altura tanto pelo comportamento quanto pela natureza todos aqueles favores: era uma mulatinha gentil, inteligente, bem dotada fisicamente, cheia de encantos, talhe esbelto, colo voluptuoso, pé pequeno, “apreciada por todos quantos iam a casa”. A bela e gentil escravazinha, porém, não “se sentava à mesa, nem vinha à sala em ocasião de visitas”. Vemos aí instaurada uma contradição. A mocinha era tratada como se fosse um membro da família. Só que não era um membro da família. Era um membro “parcial” da família até o limite imposto pela família de acordo com seus interesses, desejos e convenções. A gentil mulatinha pertencia à família no dia-a-dia para fazer companhia à matrona e suas filhas, para costurar (“Mariana era excelente costureira”), prestar algum serviço doméstico. Entretanto, na hora do sentar-se à mesa, momento de congregação efetiva da família ou da reunião com parentes e amigos sofria estúpida segregação. Seu livre-arbítrio dependia do arbítrio da família que a agregava. Sua liberdade era liberdade de um criminoso em liberdade condicional.     
            A plenitude dos 18 anos, como era natural e normal de se esperar, acendeu em Mariana o fogo do amor. O desabrochar da maturidade associado à proximidade da convivência fizeram seu amor canalizar-se para o nhonhozinho da casa um machinho certamente mimado nos privilégios de sua casta superior, sujeitinho bem na vida, ocioso, egoísta, vaidoso, cheio de si. Esse amor poderia ser aceito como um amor plausível em circunstâncias “normais”, ou seja, se ela gozasse de fato do privilégio de estar no mesmo extrato social do rapaz, como era o caso de Amélia, sua prima e noiva, poderia estar até um tanto abaixo na escala social, mas no caso de Mariana não. No caso de Mariana era um amor proibido Um amor impossível. Mariana era uma escrava. Embora ela fosse tratada como da família, ela não era da família. Ela era quase da família. E esse quase era o tudo do nada que efetivamente lhe cabia. Ela continuava a ser o que sempre fora desde o início: uma escrava. A ela como companheiro efetivo quando muito poderia ser destinado o copeiro ou talvez o cocheiro. O sinhozinho? Nunca!
            Coutinho antes que soubesse ser ele o responsável pelo fogo que ardia no peito da jovem, escarneceu do sentimento dela: “seria o namorado o copeiro ou o cocheiro?” Desvendado o mistério, embora se sentisse galanteado, entre a incredulidade e um riso de mofa não creu no atrevimento da mulatinha. Sem anuir de modo nenhum com os sentimentos de Mariana passou a olhá-la, contudo, com outros olhos, passou a achá-la “interessante”. Mas sem nunca perder seu ar de superioridade condescendente; imbuído alguma vez de paternalismo, mas um paternalismo por via de regra acompanhado de arrogância. Aquele interesse fez surgir por um momento em seu espírito a ideia de tirar proveito da situação, afinal numa sociedade machista impregnada de injustiças, principalmente contra as mulheres, inda mais escravas, esses costumes foram sempre aceitos perfeitamente. O comportamento de Mariana provou estar acima de veleidades o que fez nosso nhonhô enfiar sua viola no saco.
            Mariana tinha consciência de sua situação. Sabia que seu amor era impossível. Sabia ser uma infeliz escrava que amava seu senhor, mas que não poderia jamais ser amada dignamente por ele. Poderia quando muito ser sua amante para lhe servir carnalmente. E depois a derrocada total, talvez até, a prostituição. Para companheiro só poderia almejar algum mulatinho igual a ela.
Mesmo tendo consciência da sua situação de inferioridade, mesmo assim, diante da iminência do casamento de Coutinho com a prima Amélia, entrou em desespero e perdeu o controle sobre si mesma.  Seus gestos de rebeldia, porém, eram gestos a priori sabidamente inócuos, conduzidos pelo estado mental conturbado em que se encontrava provocado pela situação de inevitável inacessibilidade ao ser amado. Gestos de desespero sem possibilidade de lograr êxito. Inúteis para alcançar o fim desejado. A saída que encontrou, então, foi uma saída radical. O suicídio. Sucumbiu à sua condição fatídica e num último gesto extremado suicidou-se ingerindo violento veneno em presença daquele que amava. Mariana percebeu que a realização afetiva entre ela e o sinhozinho jamais ocorreria e daí entendeu como única alternativa de ação o fim da existência; o suicídio como solução catártica para o seu mal. E sua conclusão foi:
 “— Nhonhô não tem culpa: a culpa é da natureza.
Que alternativas teria Mariana? Mariana poderia ter dado vazão a seus desejos e ter-se entregado ao sinhozinho (ele até chegou a conjeturar essa possibilidade). A seriedade do amor da jovem bloqueou esse caminho. Poderia ter refreado os desejos e se mantido em sua insignificância. Teria sido um comportamento convenientemente passivo. Rebelou-se contra a adversidade que a vida lhe impunha, mas por meio de uma revolta destrutiva contra si mesma. Não enxergou a possibilidade de lutar pelos seus direitos. Embora tivesse consciência da sua condição escrava não teve consciência da possibilidade de lutar pela sua liberdade. Sua revolta foi para dentro, contra de si mesma e não para fora, contra o mundo. Sua revolta não foi revolucionária, foi reacionária. Egoísta, não social. Mariana eximiu de culpa o nhonhô, metonímia da classe senhorial, e atribuiu ingenuamente a culpa dos seus males à natureza, como se a condição social devesse ser considerada pré-determinada e imutável, uns, poucos, escolhidos para senhor, outros, muitos, para escravo. Determinismo que não problematiza o lugar social do indivíduo e faz o fato social estar contido no natural. Mariana teve uma consciência alienada de sua condição na sociedade, confundindo uma situação cultural com um estado natural. Mariana tinha consciência da impossibilidade do seu amor, tinha consciência que era ele impossível porque ela era uma escrava, mas tirou uma conclusão errônea da situação: considerou sua posição um fato natural e não social condicionado pelo destino. 
Para a família o comportamento de Mariana anterior ao suicídio em lugar de provocar compaixão provocou mágoa e indignação entendidas que foram como ingratidão. Ora, teria cabimento tanta insolência partindo de uma escrava tratada que sempre fora como se fosse gente? Era ingratidão demais! Depois do suicídio, a matriarca, ao tomar conhecimento da causa da morte, pela boca do filho, benemeritamente, decidiu perdoar a infeliz. Afinal, ela morrera em homenagem a seu varãozinho. 
Coutinho manteve o mais das vezes um frio humanismo apaziguador procurando colocar as coisas nos seus lugares: a mãe novamente tranquila; a noiva acalmada; e a mulatinha, com toda consideração que lhe era condescendentemente dispensada, na sua real posição de escrava. E se ela não compreendesse tal fato por bem haveria de compreendê-lo à força. Disse que sofreu muito com a morte da mulatinha; entretanto considerou o ocorrido como um “incidente” de sua vida do qual a impressão mais forte que lhe restou foi o sentimento egoísta de ter sido amado in extremis. Ou seja, puro paternalismo impregnado de vaidade machista.
Interessante, talvez, para ilustrar esse arrazoado de ideias, fosse a transcrição de alguns trechos da cena em que Coutinho tentou obter de Mariana a confissão de quem seria o seu amado (MA, OC, op.cit. p. 775-777):
... Anda, fala; tu és estimada por todos cá de casa. Se gostas de alguém poderás ser feliz com ele porque ninguém oporá obstáculos aos teus desejos.
...
— Não falemos nisso, nhonhô. Não se trata de amores, que eu não posso ter amores. Sou uma simples escrava.
— Escrava, é verdade, mas escrava quase senhora. És tratada aqui como filha da casa. Esqueces esses benefícios?
— Não os esqueço; mas tenho grande pena em havê-los recebido.
— Que dizes, insolente?
— Insolente? Disse Mariana com altivez. Perdão! continuou ela voltando à sua humildade natural e ajoelhando-se a meus pés; perdão se disse aquilo; não foi por querer: eu sei o que sou; mas se nhonhô soubesse a razão estou certa que me perdoaria.
...
Não posso dizer.
— Por quê?
— Porque é um amor impossível.
— Impossível? Sabes o que são amores impossíveis?
Roçou pelos lábios da mulatinha um sorriso de amargura e dor,
— Sei! disse ela.
...        

Mariana e Coutinho são os protagonistas da história. As outras personagens fazem papel meramente secundário. Macedo abre a narrativa com lucubrações sobre velhos amigos — “filosofias inúteis” no pensamento cético (ceticismo machadiano genérico em relação às coisas da vida?) da personagem — seguidas de suas boas impressões sobre os melhoramentos urbanísticos (engajamento do autor nas ações do Estado?) havidos em sua cidade, o Rio de Janeiro, sem dispensar um comentário irônico tipicamente ao estilo machadiano acerca da supremacia de uma casa de modas em relação a um escritório jornalístico (“Não admira; poucos lêem, mas todos se vestem”), ao regressar “de Europa depois de uma ausência de quinze anos”. E Macedo fecha a narrativa com duas observações contrastantes que nos levariam a pensar que talvez o autor usasse a personagem para ironizar daqueles indivíduos, burgueses ociosos, bem na vida e sem maiores compromissos: todos ouviram com tristeza a história de Coutinho, mas logo em seguida saíram à rua para examinar “os pés das damas que desciam dos carros”. Macedo não conduz o fio do cerne da história, isto é, da história dentro da história. Isso, quem o faz é Coutinho. Macedo serve de elo entre as duas histórias — o conto propriamente dito e a história de Coutinho — e o leitor.
A prima Amélia, nos poucos momentos que entrou em cena sugeriu ser uma mocinha também mimada das altas rodas. Embora bem postada na hierarquia social, era insegura de si, deixou que os ciúmes que sentia da escravazinha lhe corroessem a alma e a levassem a romper o pacto de casamento. Demonstrou ser uma pessoa de índole má ao afirmar que os escravos deviam ser tratados com severidade e que era um mau exemplo mandar-lhes ensinar alguma coisa. Provavelmente, se nos fosse permitida uma divagação, acabou virando uma fazendeirazinha inútil, incapaz de distinguir uma cabra duma vaca. As restantes personagens são inexpressivas.   

O espaço em que se desenvolve o conto é um espaço urbano típico de uma cidade desenvolvida do século XIX: o jardim público; o boulevard; prédios; hotéis; grande movimento comercial e popular. A ação se dá em dois planos: num primeiro plano, no tempo presente do conto, um bate-papo entre ociosos, despreocupados e provavelmente bem colocados na vida amigos ao redor de uma mesa de um hotel da cidade, após “um suculento almoço” arrematado a cognac e charuto; num segundo plano, no tempo passado, reminiscências de Coutinho, de fatos ocorridos em pouco mais que um par de meses, distantes acerca de quinze anos,  reminiscências confidenciadas a Macedo e a mais dois inominados amigos, um bem sucedido comerciante e um nem tanto escrivão de vara cível O encontro durou algo em torno de duas horas.

O foco narrativo adotado pelo autor em primeira pessoa, tanto de Macedo, quanto de Coutinho, como sói acontecer neste caso, procura dar verossimilhança ao discurso e colar o leitor ao texto. É artifício estilístico literário para tentar envolver o leitor na história que passaria a ter um caráter testemunhal, circunscrita às ações das personagens e aos pensamentos limitados do narrador, preferencialmente livre da inevitável interferência onisciente de um narrador externo. O texto, desta forma, ficaria democratizado, instaurando-se uma polifonia na qual cada personagem teria oportunidade de apresentar sua percepção do mundo, livre do engessamento imposto pela visão unilateral de um narrador em terceira pessoa onisciente (CUNHA, 2007) (4). Entretanto, podemos perceber a todo instante a sombra do autor pairando sobre o texto, escarnecendo com brandura, sutilmente, o comportamento das personagens superiores (viajando quinze anos pelo mundo vendo apenas o lado belo da natureza humana; após a história do suicídio sair “pela Rua do Ouvidor fora, examinando os pés das damas que desciam dos carros, e fazendo a esse respeito mil reflexões mais ou menos engraçadas e oportunas.”) e tomando as dores da mulatinha gentil, digna representante do substrato social (algumas falas de Mariana: “— Nhonhô, eu saí porque sofria muito...; O que eu queria, é que nhonhô não fosse tão cruel... porque enfim eu não tenho culpa se... Paciência!... Eu estou disposta a tudo... Ninguém tem que ver com as minhas desgraças...).  A história pessoal do autor justificaria essa postura de amenizar a crítica aos superiores sem se esquecer de apontar os infortúnios dos inferiores? (5)
O distanciamento das lembranças narradas por Coutinho do momento presente do reencontro dos velhos amigos — lembranças que acompanham na linha do tempo o período de afastamento de Macedo da cidade (quinze anos) — tem o efeito de provocar no leitor um abrandamento emocional na recepção dos fatos narrados, procurando cobri-los com a poeira dos tempos, embora eles pudessem ser representativos de experiências bem próximas.  
“Mariana” é um conto que pode ser considerado um produto da chamada primeira fase do escritor anterior à publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas em 1881. Primeiro por um fato cronológico: o conto é de 1871. Depois, e principalmente, porque é um conto que tem as marcas características da primeira fase: o tema central é a desigualdade social tratada de forma conservadora; a idealização da família, de preferência a abastada, depositária da ordem e do sentido da vida e agenciadora da prática multiforme e universal do paternalismo, ao contrário da segunda fase em que, à sua maneira, integra em abundância o temário liberal e moderno, as doutrinas sociais e científicas, a política da nova civilização burguesa à sua obra (SCHWARZ, 2003, p. 83-94).
Neste conto embora a situação matriz (BOSI, 2007, p.76) seja, coerentemente à característica da primeira fase — o desequilíbrio social, o desnível de classe ou de estrato — o conflito não se resolve, ao contrário do que propõe o crítico como únicas soluções para a trama, nem pelo patrimônio nem pelo matrimônio. A solução é radical. A solução é dada pelo suicídio da personagem. Embora nosso caro professor afirme que “Machado nunca foi, a rigor, um romântico (o Romantismo está às suas costas)” (op.cit. p.79) podemos dizer que a gentil mulatinha foi punida romanticamente (6). Resultado talvez de um melancólico conservadorismo niilista do autor diante do abominável da escravidão, que o motivou a escrever obra em que o suicídio é proposto como desfecho possível para a condição escrava, acrescida de fina ironia no trato do humanismo hipócrita da classe dominante em relação às mazelas de seus dominados.  
 

Notas

1. O texto utilizado neste estudo foi o que está publicado no volume II, de Obra completa de Machado de Assis, organizada por Afrânio Coutinho, publicação da Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, décima reimpressão da 1ª. edição, de 2004. Está ali contido no conjunto denominado “Outros contos” às páginas 771-783, conjunto de contos esse cujas publicações ficaram dispersas pelos jornais e revistas da época e que não foram reunidos pelo autor em livro, como ele fizera com: Contos fluminenses (1869); Histórias da meia-noite (1873); Papéis avulsos (1877-1882); Histórias sem data (1884); Várias histórias (1896); Páginas recolhidas (1899); e Relíquias da casa velha (1906).

2. Em Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio, 4ª. ed. rev., 1ª. reimp., Editora Globo, São Paulo, 2006, Raymundo Faoro analisa por meio da obra de MA (“no Machado de Assis impresso”) a estrutura da sociedade brasileira na última metade do século XIX — não a vida real, mas o homem e a época criados pela tinta do autor. Afirma Faoro: “Ninguém se engane com o painel aparente da sociedade na obra de Machado de Assis. Enchem a vista do leitor desprevenido as figuras dominantes, barões, conselheiros, comendadores e patentes da Guarda Nacional. Ministros, regentes, barões perpassam na superfície, sobretudo os ministros, alvo de ambições caladas e de ambições descobertas. Todos, barões e capitalistas, conselheiros e banqueiros, comendadores e comerciantes, coronéis e fazendeiros — todos estão, para quem olha de longe, no ápice da pirâmide, confundidos e misturados, como se fossem membros de uma só confraria. Nitidamente, há uma estrutura de classes — banqueiros, comerciantes e fazendeiros — sobre outra estrutura de titulares, encobrindo-a e esfumando-lhe os contornos. É a camada da penumbra que decide os destinos políticos, designa deputados e distribui empregos públicos. São as “influências”, os homens que mandam, que se entendem com os executores e dirigentes das decisões do Estado... Há uma sociedade de classe em plena expansão, cifrada, nas expressões mais gloriosas, nos banqueiros, nos prósperos comerciantes, nos capitalistas donos de rendas, nos senhores de terras e de escravos. O dinheiro é a chave e o deus desse mundo, dinheiro que mede todas as coisas e avalia todos os homens”(p.14). 

3. Richard Graham em Clientelismo e política no Brasil do século XIX, Editora UFRJ, Rio de Janeiro, 1997, analisa o paternalismo no âmbito rural; suas considerações poderiam ser estendidas ao ambiente urbano sem perda de precisão: “Essas técnicas de controle – premiar a obediência com benevolência e usar a força para punir a desobediência – foram elaboradas de modo específico para os escravos. O escravocrata, mais do que qualquer um, embora da mesma forma que todos aqueles que pertenciam às camadas superiores, enfrentava o problema fundamental de como fazer os outros agirem de acordo com a sua vontade e não segundo a deles mesmos. Com essa finalidade, os senhores combinavam a disciplina rígida ao transgressor com favores ao dócil e obediente. A gentileza do patrão, vale repetir, adquiria sentido conquanto acompanhada de seu direito de exercer força máxima... Tais relações entre senhores e escravos simplesmente exageravam os controles que os pais exerciam sobre suas famílias e unidades domésticas, e assim a família fornecia a linguagem da escravidão... Por conseguinte, o relacionamento de senhores e escravos refletia a família, embora de maneira distorcida. Como meio de controle isso nem sempre funcionava: os escravos resistiam de várias forma, desde trabalhar “indolentemente” a fugir, da sabotagem à revolta, do infanticídio ao suicídio...” (p. 44-45). No nosso caso, temos o suicídio, não infanticídio. Esta Mariana (1871) de Machado, poderíamos considerá-la uma Amans dolorosa, num paralelismo com a Mater dolorosa (1865) de Castro Alves. A morte provocada como forma de alcançar a liberdade. A mãe mata o próprio filho diante da perspectiva de um viver subumano. A amante põe fim à própria vida diante do amor impedido pelo estatuto da escravidão.
  
4. Coutinho, narrador em primeira pessoa a rigor não teria a onisciência que, por via de regra, está presente num narrador em terceira pessoa. Ele não teria acesso ao estado mental das demais personagens, particularmente, de Mariana. Narraria de um centro fixo, limitado às suas percepções, pensamentos e sentimentos, servindo-se da cena (diálogos) e do sumário (intervenções do narrador) para regular a distância entre a história e seu receptor, aproximando-os ou afastando-os. Entretanto, Coutinho tudo sabe, já que está rememorando o passado, condição que lhe pode atribuir onisciência. Mas nesse rememorar procura também captar – encenando – as suas próprias impressões, reações, pensamentos e sentimentos na época em que os fatos se passaram, seguindo a ordem de suas descobertas, sem adiantar a conclusão aos ouvintes (e leitores) (LEITE, Ligia Chiappini Moraes – O foco narrativo. 10ª. ed. 2ª. imp. Editora Ática, São Paulo, p.43-44, 2001). 

5. Valentim Facioli no cap. XIV – Perseguindo fantasmas de “Várias histórias para um homem célebre (Biografia intelectual)” in Machado de Assis – Alfredo Bosi et al. São Paulo, Ática, 1982 p. 24-25, a esse respeito afirma: “Machado de Assis pôde sair do subúrbio, provindo de uma família proletária, mestiço descendente de escravos, pardos forros, e mais proximamente de homens livres mestiços, ou homens livres brancos açorianos, cuja condição era também proletária. Essa origem de Machado de Assis na sociedade brasileira da época tem um peso maior do que se tal fato ocorresse mais recentemente, porque se tratava de uma sociedade rigidamente estratificada e de mínima permeabilidade... O que deve ficar claro é que numa sociedade de classes tão demarcadas como o Brasil de meados do século passado, cuja base da mão-de-obra estava no trabalho escravo, e cujas formas de dominação de classe eram estruturadas pelas relações paternalistas, de favor e clientelas, foi impossível o aparecimento de qualquer modelo social alternativo, ou a manifestação de uma consciência de classe foras das ideologias que sustentavam o poder oligárquico... Machado de Assis desde cedo deve ter compreendido a força dessas determinações e para ultrapassá-las teve que travar um duro combate... a biografia intelectual de Machado de Assis ... Só pode reconstruir um fantasma persistente nos textos, movendo-se no espaço do risco e da aventura. Movimentos que vão da obra para o autor e deste para aquela, de ambos para o social, e para a sociedade, e nesta para os mecanismos do mercado, do prestígio e da glória.  A mistura da vida do autor, não só com Machado, mas também com tantos outros, na obra, tem, desde sempre, confundido a crítica e deleitado leitores. Creio não devermos incorrer nesse erro. Claro que ignorar cegamente a presença do autor na sua obra é esteticismo ingênuo. É considerar o autor um ser totalmente autônomo do ser pessoa, um ser que é pura imaginação, só literatura. Contudo torná-la compulsória é biografismo reducionista. É não confiar na capacidade de imaginação do autor. É não levar em conta, muitas vezes, a inserção da obra na tradição literária (a esse respeito ver, por exemplo, (ALVES, 1998) acerca da recepção da obra de Álvares de Azevedo).

6. O suicídio é um tema recorrente na literatura de todos os tempos sendo o amor impossível um dos seus motes preferidos. Neste caso, é comum desenvolvermos a compreensão que as personagens buscaram a morte voluntária motivadas por impulso meramente individual. E como impulso individual é uma atitude tipicamente romântica, dado que Romantismo é subjetivismo, é supremacia da emoção face à razão, é o primado do inconsciente, o suicídio da personagem passaria a ser considerada uma solução romanticamente engendrada. Enveredando pelo cipoal do psicanalismo, podemos lembrar, ainda que superficial e imprecisamente, de Freud que, em “Além do princípio do prazer”, propõe a ideia de que todo ser humano vivencia intimamente um permanente conflito entre Eros, a pulsão de vida, e Thanatos, a pulsão de morte e que, quando a força de Thanatos supera a de Eros, surge no indivíduo o impulso de destruição contra o mundo exterior ou contra si mesmo. Ainda Freud em “Luto e melancolia” sugere que, quando o ego julga sofrer alguma agressão do ambiente, desenvolve um sentimento agressivo contra o ambiente; na impossibilidade do ego concretizar a agressão contra o ambiente, volta a agressão contra si mesmo, identificando-se com o objeto agressor. No limite, essa agressividade conduziria ao suicídio. 

Bibliografia

ALVES, Cilaine (1998) – O belo e o disforme: Álvares de Azevedo e a ironia romântica. São Paulo: EDUSP/FAPESP.
ASSIS, José Maria Machado de (2004) – Obra completa.  Afrânio Coutinho (org.), v. II, 1ª. ed., 10ª. reimp. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar.
BOSI, Alfredo (2007) – Machado de Assis: o enigma do olhar. 4ª. ed., rev. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora.
CUNHA, Cilaine Alves (2007) – “Notas de aula” in Curso de Literatura Brasileira IV. Período matutino, 1º. horário, 2º. semestre. São Paulo, FFLCHUSP.
FACIOLI, Valentim (1982) – cap. XIV – Perseguindo fantasmas – “Várias histórias para um homem célebre (Biografia intelectual)” in Machado de Assis – Alfredo Bosi et al. São Paulo: Editora Ática.
FAORO, Raymundo (2006) – Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio, 4ª. ed. rev., 1ª. reimp. São Paulo: Editora Globo.
GRAHAM, Richard (1997) – Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes (2001) – O foco narrativo. 10ª. ed., 2ª. imp. São Paulo:  Editora Ática. 
SCHAWRZ, Roberto (2003) – Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos início do romance brasileiro. 5ª. ed., 2ª. reimp. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34.

(em “Ensaios Desnecessários” – inédito)

domingo, 3 de maio de 2015

AS APARÊNCIAS PODEM ENGANAR

Doroteia comentando com Dulcineia, uma de suas inúmeras amigas íntimas, acerca das reduzidas dimensões do membro (fálico) de Carlão, seu (de Doroteia) mais recente bombado namorado puxador de ferro, fumo e pó, recebeu da escolada amiga esta singela observação: “É querida, são os pequenos prazeres oferecidos em grandes embalagens”.


(em “Crônicas Anacrônicas – Grotesca Filosofia Mediocridade Sublime” (inédito))