Cícero, em
sua obra de retórica, De oratore,
aborda a questão do uso do risível, daquilo que provoca o riso, nos discursos
oratórios, em longo trecho, maior do que o destinado à dispositio, na parte que antecede o encerramento de sua exposição
sobre as características da inuentio.
Esta monografia pretende apresentar, sucintamente, o resultado da leitura
crítica desse trecho, apoiada em Alberti (2002).
Antônio, um dos interlocutores do
diálogo – forma adotada por Cícero para construir o De oratore, fato que dá à obra um caráter dialético – introduz a
questão do risível nos discursos oratórios com a afirmação: “Suauis autem est et uehemeter saepe utilis iocus
et facetiae – Além disso, a brincadeira (iocus) e os gracejos (facetiae)
são agradáveis e frequentemente muito úteis”. Depois, diz que, se outras partes
do discurso são passíveis de ensino baseado numa técnica, o risível não
consegue se submeter a regras e é próprio da natureza do orador.
César, outro interlocutor, considerado
por Antônio um orador mestre no uso do risível em seus discursos, convidado a
tratar do assunto, concorda quanto à impossibilidade de estabelecer uma
doutrina sobre o uso do risível nos discursos, e justifica seus argumentos
dando como exemplo certas obras gregas que tratam de coisas risíveis (‘de ridiculis”) que, quando contam
piadas, conseguem agradar, mas, quando pretendem reduzir o risível a preceitos,
ficam insípidas, a ponto de tornarem-se risíveis pela sua insipidez, e diz crer
que é impossível estabelecer uma doutrina em tal matéria que possa ser ensinada
– “Qua re mihi quidem nullo modo uidetur
doctrina ista res posse tradi.” Embora tendo feito tal afirmação, César
passa a expor suas ideias sobre o assunto, tratando-o de acordo com um plano bem
preciso. Primeiramente diz que há dois tipos de gracejos (“duo genera facetiarum”): a zombaria (“cauillatio”), que pode estender-se uniformemente por todo o
discurso; e a mordacidade (“dicacitas”),
que deve ser usada de maneira sutil e breve. A cerca do riso cinco questões
devem ser colocadas (“de risu quinque
sunt quae quaerantur”):
1ª
o que é o riso?
2ª
de onde vem o riso?
3ª
convém ao orador querer provocá-lo?
4ª
até que ponto?
5ª
quais são os gêneros do risível?
A resposta à primeira questão: o que
é o riso, com sua explosão repentina, produzindo agitação nos flancos, na boca,
nas veias, nos olhos, na fisionomia – é deixada para Demócrito, o filósofo que
ri das loucuras humanas, responder, porque não é assunto pertinente ao orador.
Quanto
à segunda questão, a proveniência do riso está em uma torpeza (“turpitudine”) e em uma deformidade (“deformitate”), sendo o jeito mais eficaz
de provocar o riso apresentar a torpeza de uma forma que não pareça torpe.
Cícero, associando o risível à torpeza e à deformidade, coloca suas ideias
sobre o riso na tradição de Aristóteles, conforme apresentado na Arte Poética (ARISTÓTELES, s/d:246),
para quem essas torpeza e deformidade do risível não devem apresentar caráter
doloroso ou corruptor, como, por exemplo, a máscara cômica feia e disforme,
que, porém, não é causa de sofrimento.
À
questão, se convém ou não ao orador querer provocar o riso, a resposta é
afirmativa, pois ele traz diversos benefícios ao discurso a saber:
a)
capta a benevolência do ouvinte;
b)
provoca surpresa tanto nas ações de defesa quanto de
ataque;
c)
abate, embaraça, enfraquece, intimida, refuta o
adversário;
d)
indica que o orador é homem polido, erudito, urbano;
e)
mitiga a tristeza e a severidade;
f)
relaxa as coisas odiosas.
Os
limites dessa utilização, de que trata a quarta questão, devem ser
estabelecidos, porém, com muito critério. O primeiro cuidado a ser observado é
a moderação (“moderatio”). Deve
evitar atacar as pessoas que são estimadas. No âmbito da torpeza, nem a extrema
perversidade, que leva ao crime, nem a extrema miséria se prestam ao risível;
os assuntos nos quais o risível se manifesta com facilidade são aqueles que não
provocam nem grande ódio nem extrema misericórdia. Assim, desde que evite
atacar os indivíduos estimados, os miseráveis e os facínoras, que deveriam ser
levados ao suplício, em todos os outros vícios o orador encontra matéria para o
risível. Quanto às deformidades e aos defeitos do corpo, são eles, frequentemente,
bons temas para o risível, mas aqui, como em outros assuntos, a medida justa
deve ser observada. O orador deve evitar os ditos insípidos, a bufonaria e a
mímica. Em resumo, o uso do risível, e as limitações a esse uso, no discurso
oratório, devem adequar-se de maneira tal a satisfazer ao objetivo principal da
retórica que é o de conseguir persuadir aqueles que recepcionam o discurso a
acatar as ideias que o discurso defende. A presença do riso retórico
subordina-se a um fim sério: o objetivo não é divertir, pelo prazer do
divertimento, mas ser útil à causa maior da retórica que é a persuasão. O
risível deve, então, obedecendo às prescrições da retórica, contribuir para que
o discurso se ajuste às pessoas e às circunstâncias (espaço-tempo), isto é,
observe – a oportunidade, “occasio”,
“kairós” e a adequação, “decorum”, “prepón” – a fim de que esse discurso seja mais persuasivo.
A quinta questão proposta – quais
são os gêneros do risível? – é respondida por César dizendo que há dois gêneros
de gracejos (“duo genera facetiarum”):
um em que o risível se dá pelo fato (“re”), outro, pelo dito (“dicto).
O primeiro caracteriza-se por uma maneira contínua de descrever os caracteres
humanos e assim, poderia ser aproximado à zombaria (“cauillatio”), o segundo tem um caráter mais pontual e poderia ser aproximado à mordacidade (“dicacitas”), de acordo com a tipologia
de gêneros descrita anteriormente, contudo essa aproximação não é apresentada
de forma explícita no texto.
O
gênero do risível pelo fato (“re”)
refere-se a um argumento do discurso
que tem natureza risível e que depende muito mais da ideia contida nesse
argumento do que das palavras empregadas no mesmo e à ação do orador durante o discurso: a voz, os gestos, o tom, a
postura, enfim, a performance do
orador. O risível pelo fato não está estritamente vinculado às palavras,
mas vinculado à prova ou demonstração e à ação. No risível pelo fato a graça pode subsistir
independente das palavras empregadas, pois a graça está na ideia e na ação.
Dentro desse gênero podem ser distinguidas as seguintes espécies:
a)
a anedota (“fabella”),
cuja virtude deve estar no realce: dos fatos narrados, dos costumes da
personagem, de suas falas e de sua fisionomia, fazendo com que pareçam reais
aos ouvintes;
b)
a imitação cômica (“deprauata imitatio”), que “consiste em caricaturar o ar e a voz do
adversário ou ainda copiar qualquer coisa de seu gesto”, devendo, porém, o
orador evitar atitudes que possam aproximá-lo dos “etólogos mímicos” (“mimorum ethologorum”)(1), pois o
resultado seria exagero e obscenidade;
c)
a narração em forma de apólogos (“narrationes apologorum”);
d)
o uso de símile ( “similitudo”),
por meio de : comparação (“collatio”)
e imagem (“imago”);
e)
a atenuação ou o exagero dos fatos acarretando
admiração inacreditável ( “quae minuendi
aut augendi causa ad incredibilem admirationem efferuntur”);
f)
a vinda à luz de um pensamento obscuro e secreto
mediante uma circunstância e uma palavra insignificante (“cum parua re et saepe uerbo res obscura et latens inlustratur”);
g)
o uso de ironia em toda a fala, dissimulando com um
tom sério, para dizer uma coisa contrária daquilo que se pensa realmente (“dissimulatio quom toto genere orationis
seuere ludas, quom aliter sentias ac loquare”);
h)
o homem ilustrado dizer uma asneira (“non stultus quasi stulte cum sale dicat
aliquid”);
i)
a reversão da brincadeira contra aquele que a fez (“qui dixit, inridetur quo dixit”);
j)
a atitude de deixar as intenções maliciosas aparecerem
sem explicitá-las (“quae habent
suspicionem ridiculi absconditam”);
k)
a permanência em atitude calma e imperturbável (“ridiculi genus patientis ac lenti”);
l)
a explicação de fatos por conjecturas totalmente
falsas, mas de maneira arguta e engenhosa (“quae
coniectura explanantur longe aliter atque sunt, sed acute atque concinne”);
m)
o uso de frase de contraste (“discrepantia”);
n)
o emprego de certos avisos dados de forma amigável (“admonitio in consilio dando familiaris”);
o)
a brincadeira apropriada ao caráter de tal ou tal (“quom quid cuique consentaneum dicitur”);
p)
a expectativa frustrada (“praeter exspectationem”);
q)
o conceder ao adversário aquilo que ele recusa a dar
(“concedere aduersario id ipsum quod ille
detrahit”);
r)
o desejar uma coisa impossível (“fieri non possunt, optantur”);
s)
as imprecações, as surpresas, as ameaças ( “exsecrationes, admirationes, minationes”).
O
gênero do risível pelo dito (“dicto”)
consiste em palavras ou expressões picantes (“uerbi aut sententiae acumine”). O risível pelo dito está
estritamente vinculado à palavra ou à expressão empregada e nele, a graça não
subsiste se as palavras forem alteradas, pois toda a graça está contida nas
palavras empregadas; são essas que trazem o sal do risível, e se modificadas,
fazem com que se perca esse sal (“salem
amittit”). Se o orador, na imitação
cômica, deve evitar comportamentos que o aproximem dos “etólogos mímicos”, no
risível pelo dito, deve fugir do uso de expressões comuns à mordacidade
oratória bufonesca (“scurrilis oratori
dicacitas”), devendo estar atento às circunstâncias, moderando sua
mordacidade, controlando sua fala, sendo senhor de sua língua, qualidades que
distinguem o orador do bufão. Para o orador o risível sempre deve ter uma
justificativa; seu objetivo não é agradar por agradar, mas ser útil a uma
causa, ao contrário do bufão que faz graça o dia todo e sem razão. Neste
gênero, entre outras, podem ser distinguidas as seguintes espécies:
a)
a alegoria (“immutata
oratio”);
b)
a metáfora ( “translatum
uerbum”);
c)
a antífrase (“inuersum
uerbum”);
d)
a antítese (“relatum
contrarie uerbum”);
e)
a palavra de duplo sentido (“ambiguum dictum”);
f)
a paronomásia (“parua
uerbi immutatio”);
g)
o criar uma expectativa e concluir outra (“aliud expectare aliud dicere”);
h)
o explicar um nome próprio (“interpretatio nominis”);
i)
o intercalar citações engraçadas (“uersus facete interponitur”);
j)
o usar provérbios (“prouerbia”);
k)
o tomar uma palavra literalmente (“ad uerbum non ad sententiam”).
O
grande número de espécies apresentadas por Cícero tanto dentro do gênero do
risível pelo fato, quanto do risível pelo dito é prova inequívoca de que o
assunto riso é caso sério, complexo, escorregadio. Estabelecer-se princípios ou
ideias gerais que deem conta do tema é tarefa das mais difíceis, senão
impossível, tendendo a sistematização dessas ideias para a fragmentação, com a
apresentação de um grande elenco de casos ou exemplos. De uma maneira geral,
grande parte das espécies de risível apresentadas “são figuras de estilo, divididas, no ensinamento retórico, em figuras
de coisas e de palavras.” (ALBERTI, op.
cit., 60). As figuras de coisas
tenderiam para o gênero do risível pelo fato e as de palavras para o pelo dito. Poder-se-ia
também, ainda numa tentativa de visão generalizadora da questão, dizer que o risível de Cícero,
uma vez que têm como fontes primárias uma torpeza e uma deformidade, alinha-se
à tradição da comédia segundo Aristóteles no que restou da Arte Poética (2).
A
inserção da análise do risível dentro da inuentio
e com um espaço maior do que o destinado à dispositio
sugere que para Cícero o assunto tinha bastante importância (3). Outro ponto a
ser lembrado é que para Cícero o risível deve ter sempre uma razão, seu
objetivo não é divertir, mas ser útil; os oradores podem até mesmo observar que
algumas fontes de risível servem também a pensamentos sérios (“quoscumque locos unde ridicula ducantur ex
isdem locis grauis sententias posse duci”), a diferença estando na
aplicação: o pensamento grave aplica-se às coisas honestas e sérias, o risível
ao que é um tanto torpe e disforme (“grauitas
honestis in rebus seuerisque, iocus in turpiculis et quasi deformibus ponitur”).
Cícero coloca, assim, sua “teoria do riso” em estreita ligação com os
fundamentos da Retórica, nos quais não há lugar para diletantismo vago e
inútil. O riso na Retórica de Cícero é arma que o orador usa para aumentar o
poder de persuasão do seu discurso.
Notas
1.
Os gregos chamavam “hqologoi”
aos saltimbancos grotescos que, seja na rua, seja no teatro, levavam alegria à
multidão por meio de imitações burlescas (CÍCERO, op. cit., 107). Os “etólogos mímicos” eram os “etólogos romanos”
presentes nas encenações dos mimos.
2.
No que restou da Arte
Poética, Aristóteles, no breve tratamento que dá a comédia, diz que o
risível reside numa torpeza e num defeito que não apresentam caráter doloroso
ou corruptor, devendo ser anódinos e inocentes, não devendo ser causa de
sofrimento. E também na Arte Retórica
(ARISTÓTELES, op. cit., 128), no Cap. XII, do Livro II, ao tratar dos
caracteres dos jovens diz que é próprio dos jovens rir por serem propensos a
gracejar, sendo o gracejo uma espécie de insolência polida. Aristóteles, assim,
não atribui uma natureza disfórica, negativa para o riso; em nenhum momento
afirma, conforme apresentado por SKINNER (2002: 8,9), que “o gracejo é uma injúria para desonrar a outro para nosso divertimento,
... o riso é sempre expressão de nosso desprezo” “o riso
reprova a falha de caráter, ... e pede sentimentos de desprezo”, sendo
essas afirmações, provavelmente, ilações desse último autor.
3.
A inuentio é
a primeira fase a ser observada na construção de um discurso oratório. “Por um lado é o “inventário”, a detecção
pelo orador de todos os argumentos ou procedimentos retóricos disponíveis. Por
outro, é a “invenção” no sentido moderno, a criação de argumentos e de
instrumentos de prova:” ( REBOUL, 1998:54). Cícero inserindo sua análise do
risível dentro da inuentio dá ao assunto
status elevado, de natureza genérica,
sendo elemento gerador de discurso que pode entrar em ação a qualquer momento,
em qualquer parte do discurso. Ao contrário do que faz, posteriormente,
Quintiliano na Institutio Oratoria,
livro VI, em que trata da peroratio,
última parte do discurso, cuja função principal é apresentar um balanço do
discurso, ao abordar a questão das paixões que devem estar presentes no
discurso e ser suscitadas no público e no juiz, aí então, faz uma análise do
risível “A questão do riso está portanto, inserida na discussão sobre as
paixões, sendo o risível um dos últimos (grifo nosso) recursos para convencer e seduzir o ouvinte.”(ALBERTI,
op. cit., 63).
Bibliografia
ALBERTI,
Verena. O riso e o risível: na história
do pensamento. 2ª ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
ARISTÓTELES.
Arte Retórica e Arte Poética.
Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Ediouro, 14ª ed.,
s/d.
CÍCERO. De oratore. Texto estabelecido e
traduzido por Edmond Courbaud. Paris: “Les
Belles Lettres”, livro II, LIV-LXXI,290, pp. 96-128.
REBOUL,
Olivier. Introdução à retórica.
Tradução Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
SKINNER,
Quentin. “A arma do riso” em
Revista Mais!, Folha de S. Paulo, 4 de agosto de
2002.
(em "Ensaios Desnecessários" - inédito)