domingo, 28 de fevereiro de 2016

“SORRIA VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADO”

Enquanto com muito siso lia o aviso:
“Sorria você está sendo filmado”
por uma mão leve ligeira
foi desavisadamente aliviado
do peso de sua carteira


(do livro “Poesia... Afinal pra quê?”)

domingo, 21 de fevereiro de 2016

O riso na Retórica de Cícero

             Cícero, em sua obra de retórica, De oratore, aborda a questão do uso do risível, daquilo que provoca o riso, nos discursos oratórios, em longo trecho, maior do que o destinado à dispositio, na parte que antecede o encerramento de sua exposição sobre as características da inuentio. Esta monografia pretende apresentar, sucintamente, o resultado da leitura crítica desse trecho, apoiada em Alberti (2002).
            Antônio, um dos interlocutores do diálogo – forma adotada por Cícero para construir o De oratore, fato que dá à obra um caráter dialético – introduz a questão do risível nos discursos oratórios com a afirmação: “Suauis autem est et uehemeter saepe utilis iocus et facetiae – Além disso, a brincadeira (iocus) e os gracejos (facetiae) são agradáveis e frequentemente muito úteis”. Depois, diz que, se outras partes do discurso são passíveis de ensino baseado numa técnica, o risível não consegue se submeter a regras e é próprio da natureza do orador.
           César, outro interlocutor, considerado por Antônio um orador mestre no uso do risível em seus discursos, convidado a tratar do assunto, concorda quanto à impossibilidade de estabelecer uma doutrina sobre o uso do risível nos discursos, e justifica seus argumentos dando como exemplo certas obras gregas que tratam de coisas risíveis (‘de ridiculis”) que, quando contam piadas, conseguem agradar, mas, quando pretendem reduzir o risível a preceitos, ficam insípidas, a ponto de tornarem-se risíveis pela sua insipidez, e diz crer que é impossível estabelecer uma doutrina em tal matéria que possa ser ensinada – “Qua re mihi quidem nullo modo uidetur doctrina ista res posse tradi.” Embora tendo feito tal afirmação, César passa a expor suas ideias sobre o assunto, tratando-o de acordo com um plano bem preciso. Primeiramente diz que há dois tipos de gracejos (“duo genera facetiarum”): a zombaria (“cauillatio”), que pode estender-se uniformemente por todo o discurso; e a mordacidade (“dicacitas”), que deve ser usada de maneira sutil e breve. A cerca do riso cinco questões devem ser colocadas (“de risu quinque sunt quae quaerantur”):
1ª o que é o riso?
2ª de onde vem o riso?
3ª convém ao orador querer provocá-lo?
4ª até que ponto?
5ª quais são os gêneros do risível?    
            A resposta à primeira questão: o que é o riso, com sua explosão repentina, produzindo agitação nos flancos, na boca, nas veias, nos olhos, na fisionomia – é deixada para Demócrito, o filósofo que ri das loucuras humanas, responder, porque não é assunto pertinente ao orador.
     Quanto à segunda questão, a proveniência do riso está em uma torpeza (“turpitudine”) e em uma deformidade (“deformitate”), sendo o jeito mais eficaz de provocar o riso apresentar a torpeza de uma forma que não pareça torpe. Cícero, associando o risível à torpeza e à deformidade, coloca suas ideias sobre o riso na tradição de Aristóteles, conforme apresentado na Arte Poética (ARISTÓTELES, s/d:246), para quem essas torpeza e deformidade do risível não devem apresentar caráter doloroso ou corruptor, como, por exemplo, a máscara cômica feia e disforme, que, porém, não é causa de sofrimento.
      À questão, se convém ou não ao orador querer provocar o riso, a resposta é afirmativa, pois ele traz diversos benefícios ao discurso a saber:
a)      capta a benevolência do ouvinte;
b)      provoca surpresa tanto nas ações de defesa quanto de ataque;
c)      abate, embaraça, enfraquece, intimida, refuta o adversário;
d)     indica que o orador é homem polido, erudito, urbano;
e)      mitiga a tristeza e a severidade;
f)       relaxa as coisas odiosas.
    Os limites dessa utilização, de que trata a quarta questão, devem ser estabelecidos, porém, com muito critério. O primeiro cuidado a ser observado é a moderação (“moderatio”). Deve evitar atacar as pessoas que são estimadas. No âmbito da torpeza, nem a extrema perversidade, que leva ao crime, nem a extrema miséria se prestam ao risível; os assuntos nos quais o risível se manifesta com facilidade são aqueles que não provocam nem grande ódio nem extrema misericórdia. Assim, desde que evite atacar os indivíduos estimados, os miseráveis e os facínoras, que deveriam ser levados ao suplício, em todos os outros vícios o orador encontra matéria para o risível. Quanto às deformidades e aos defeitos do corpo, são eles, frequentemente, bons temas para o risível, mas aqui, como em outros assuntos, a medida justa deve ser observada. O orador deve evitar os ditos insípidos, a bufonaria e a mímica. Em resumo, o uso do risível, e as limitações a esse uso, no discurso oratório, devem adequar-se de maneira tal a satisfazer ao objetivo principal da retórica que é o de conseguir persuadir aqueles que recepcionam o discurso a acatar as ideias que o discurso defende. A presença do riso retórico subordina-se a um fim sério: o objetivo não é divertir, pelo prazer do divertimento, mas ser útil à causa maior da retórica que é a persuasão. O risível deve, então, obedecendo às prescrições da retórica, contribuir para que o discurso se ajuste às pessoas e às circunstâncias (espaço-tempo), isto é, observe – a oportunidade, “occasio”, “kairós” e a adequação, “decorum”, “prepón” – a fim de que esse discurso seja mais persuasivo. 
           A quinta questão proposta – quais são os gêneros do risível? – é respondida por César dizendo que há dois gêneros de gracejos (“duo genera facetiarum”): um em que o risível se dá pelo fato (“re”), outro, pelo dito (“dicto). O primeiro caracteriza-se por uma maneira contínua de descrever os caracteres humanos e assim, poderia ser aproximado à zombaria (“cauillatio”), o segundo tem um caráter mais pontual  e poderia ser aproximado à mordacidade (“dicacitas”), de acordo com a tipologia de gêneros descrita anteriormente, contudo essa aproximação não é apresentada de forma explícita no texto.
   O gênero do risível pelo fato (“re”) refere-se a um argumento do discurso que tem natureza risível e que depende muito mais da ideia contida nesse argumento do que das palavras empregadas no mesmo e à ação do orador durante o discurso: a voz, os gestos, o tom, a postura, enfim, a performance do orador. O risível pelo fato não está estritamente vinculado às palavras, mas vinculado à prova ou demonstração e à ação. No risível pelo fato a graça pode subsistir independente das palavras empregadas, pois a graça está na ideia e na ação. Dentro desse gênero podem ser distinguidas as seguintes espécies:
a)      a anedota (“fabella”), cuja virtude deve estar no realce: dos fatos narrados, dos costumes da personagem, de suas falas e de sua fisionomia, fazendo com que pareçam reais aos ouvintes;
b)      a imitação cômica (“deprauata imitatio”), que “consiste em caricaturar o ar e a voz do adversário ou ainda copiar qualquer coisa de seu gesto”, devendo, porém, o orador evitar atitudes que possam aproximá-lo dos “etólogos mímicos” (“mimorum ethologorum”)(1), pois o resultado seria exagero e obscenidade;
c)      a narração em forma de apólogos (“narrationes apologorum”);
d)     o uso de símile ( “similitudo”), por meio de : comparação (“collatio”) e imagem (“imago”);
e)      a atenuação ou o exagero dos fatos acarretando admiração inacreditável ( “quae minuendi aut augendi causa ad incredibilem admirationem efferuntur”);
f)       a vinda à luz de um pensamento obscuro e secreto mediante uma circunstância e uma palavra insignificante (“cum parua re et saepe uerbo res obscura et latens inlustratur”);
g)      o uso de ironia em toda a fala, dissimulando com um tom sério, para dizer uma coisa contrária daquilo que se pensa realmente (“dissimulatio quom toto genere orationis seuere ludas, quom aliter sentias ac loquare”);
h)      o homem ilustrado dizer uma asneira (“non stultus quasi stulte cum sale dicat aliquid”);
i)        a reversão da brincadeira contra aquele que a fez (“qui dixit, inridetur quo dixit”);
j)        a atitude de deixar as intenções maliciosas aparecerem sem explicitá-las (“quae habent suspicionem ridiculi absconditam”);
k)      a permanência em atitude calma e imperturbável (“ridiculi genus patientis ac lenti”);
l)        a explicação de fatos por conjecturas totalmente falsas, mas de maneira arguta e engenhosa (“quae coniectura explanantur longe aliter atque sunt, sed acute atque concinne”);
m)    o uso de frase de contraste (“discrepantia”);
n)      o emprego de certos avisos dados de forma amigável (“admonitio in consilio dando familiaris”);
o)      a brincadeira apropriada ao caráter de tal ou tal (“quom quid cuique consentaneum dicitur”);
p)      a expectativa frustrada (“praeter exspectationem”);
q)      o conceder ao adversário aquilo que ele recusa a dar (“concedere aduersario id ipsum quod ille detrahit”);
r)       o desejar uma coisa impossível (“fieri non possunt, optantur”);
s)       as imprecações, as surpresas, as ameaças ( “exsecrationes, admirationes, minationes”).

   O gênero do risível pelo dito (“dicto”) consiste em palavras ou expressões picantes (“uerbi aut sententiae acumine”). O risível pelo dito está estritamente vinculado à palavra ou à expressão empregada e nele, a graça não subsiste se as palavras forem alteradas, pois toda a graça está contida nas palavras empregadas; são essas que trazem o sal do risível, e se modificadas, fazem com que se perca esse sal (“salem amittit”). Se o orador, na imitação cômica, deve evitar comportamentos que o aproximem dos “etólogos mímicos”, no risível pelo dito, deve fugir do uso de expressões comuns à mordacidade oratória bufonesca (“scurrilis oratori dicacitas”), devendo estar atento às circunstâncias, moderando sua mordacidade, controlando sua fala, sendo senhor de sua língua, qualidades que distinguem o orador do bufão. Para o orador o risível sempre deve ter uma justificativa; seu objetivo não é agradar por agradar, mas ser útil a uma causa, ao contrário do bufão que faz graça o dia todo e sem razão. Neste gênero, entre outras, podem ser distinguidas as seguintes espécies:
a)      a alegoria (“immutata oratio”);
b)      a metáfora ( “translatum uerbum”);
c)      a antífrase (“inuersum uerbum”);
d)     a antítese (“relatum contrarie uerbum”);
e)      a palavra de duplo sentido (“ambiguum dictum”);
f)       a paronomásia (“parua uerbi immutatio”);
g)      o criar uma expectativa e concluir outra (“aliud expectare aliud dicere”);
h)      o explicar um nome próprio (“interpretatio nominis”);
i)        o intercalar citações engraçadas (“uersus facete interponitur”);
j)        o usar provérbios (“prouerbia”);
k)      o tomar uma palavra literalmente (“ad uerbum non ad sententiam”).

   O grande número de espécies apresentadas por Cícero tanto dentro do gênero do risível pelo fato, quanto do risível pelo  dito é prova inequívoca de que o assunto riso é caso sério, complexo, escorregadio. Estabelecer-se princípios ou ideias gerais que deem conta do tema é tarefa das mais difíceis, senão impossível, tendendo a sistematização dessas ideias para a fragmentação, com a apresentação de um grande elenco de casos ou exemplos. De uma maneira geral, grande parte das espécies de risível apresentadas “são figuras de estilo, divididas, no ensinamento retórico, em figuras de coisas e de palavras.” (ALBERTI, op. cit., 60). As figuras de coisas tenderiam para o gênero do risível pelo fato e as de palavras para o pelo dito. Poder-se-ia também, ainda numa tentativa de visão generalizadora  da questão, dizer que o risível de Cícero, uma vez que têm como fontes primárias uma torpeza e uma deformidade, alinha-se à tradição da comédia segundo Aristóteles no que restou da Arte Poética (2).
     A inserção da análise do risível dentro da inuentio e com um espaço maior do que o destinado à dispositio sugere que para Cícero o assunto tinha bastante importância (3). Outro ponto a ser lembrado é que para Cícero o risível deve ter sempre uma razão, seu objetivo não é divertir, mas ser útil; os oradores podem até mesmo observar que algumas fontes de risível servem também a pensamentos sérios (“quoscumque locos unde ridicula ducantur ex isdem locis grauis sententias posse duci”), a diferença estando na aplicação: o pensamento grave aplica-se às coisas honestas e sérias, o risível ao que é um tanto torpe e disforme (“grauitas honestis in rebus seuerisque, iocus in turpiculis et quasi deformibus ponitur”). Cícero coloca, assim, sua “teoria do riso” em estreita ligação com os fundamentos da Retórica, nos quais não há lugar para diletantismo vago e inútil. O riso na Retórica de Cícero é arma que o orador usa para aumentar o poder de persuasão do seu discurso.  
    
   

               
Notas
1.       Os gregos chamavam “hqologoi” aos saltimbancos grotescos que, seja na rua, seja no teatro, levavam alegria à multidão por meio de imitações burlescas (CÍCERO, op. cit., 107). Os “etólogos mímicos” eram os “etólogos romanos” presentes nas encenações dos mimos.
2.       No que restou da Arte Poética, Aristóteles, no breve tratamento que dá a comédia, diz que o risível reside numa torpeza e num defeito que não apresentam caráter doloroso ou corruptor, devendo ser anódinos e inocentes, não devendo ser causa de sofrimento. E também na Arte Retórica (ARISTÓTELES, op. cit., 128),  no Cap. XII, do Livro II, ao tratar dos caracteres dos jovens diz que é próprio dos jovens rir por serem propensos a gracejar, sendo o gracejo uma espécie de insolência polida. Aristóteles, assim, não atribui uma natureza disfórica, negativa para o riso; em nenhum momento afirma, conforme apresentado por SKINNER (2002: 8,9), que “o gracejo é uma injúria para desonrar a outro para nosso divertimento, ... o riso é sempre expressão de nosso desprezo”  “o riso reprova a falha de caráter, ... e pede sentimentos de desprezo”, sendo essas afirmações, provavelmente, ilações desse último autor.  
3.       A inuentio é a primeira fase a ser observada na construção de um discurso oratório. “Por um lado é o “inventário”, a detecção pelo orador de todos os argumentos ou procedimentos retóricos disponíveis. Por outro, é a “invenção” no sentido moderno, a criação de argumentos e de instrumentos de prova:” ( REBOUL, 1998:54). Cícero inserindo sua análise do risível dentro da inuentio dá ao assunto status elevado, de natureza genérica, sendo elemento gerador de discurso que pode entrar em ação a qualquer momento, em qualquer parte do discurso. Ao contrário do que faz, posteriormente, Quintiliano na Institutio Oratoria, livro VI, em que trata da peroratio, última parte do discurso, cuja função principal é apresentar um balanço do discurso, ao abordar a questão das paixões que devem estar presentes no discurso e ser suscitadas no público e no juiz, aí então, faz uma análise do risível  “A questão do riso está portanto, inserida na discussão sobre as paixões, sendo o risível um dos últimos (grifo nosso) recursos para convencer e seduzir o ouvinte.”(ALBERTI, op. cit., 63).   



Bibliografia

ALBERTI, Verena. O riso e o risível: na história do pensamento. 2ª ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Ediouro, 14ª ed., s/d.
CÍCERO. De oratore. Texto estabelecido e traduzido por Edmond Courbaud. Paris: “Les Belles Lettres”, livro II, LIV-LXXI,290, pp. 96-128.
REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Tradução Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

SKINNER, Quentin. “A arma do riso” em Revista Mais!, Folha de S. Paulo, 4 de agosto de 2002.


(em "Ensaios Desnecessários" - inédito)

domingo, 14 de fevereiro de 2016

POR EXEMPLO

            Um famoso poeta muito antigo escreveu uma frase tristia: “Aquele que se escondeu bem, viveu bem”. Seria isso verdade? Dovidio! Quem se esconde bem ou está metido em alguma encrenca feia e precisa ficar foragido ou é um tremendo cagão, não põe o cu na reta de jeito nenhum, só fica na moita. Eu, por exemplo, camuflado nesta densa selva concreta alimento a esperança de que não há meio que me faça desocupar a moita...


(em “Crônicas Anacrônicas – Grotesca Filosofia Mediocridade Sublime” (inédito))

domingo, 7 de fevereiro de 2016

SOLUÇÃO ECONÔMICA

A solução para os problemas econômicos do país é o jogo.
O jogo de tômbola.
Se o governo oficializasse a tombolação
o povo tombolaria bem mais
esqueceria temporariamente os problemas
ficaria momentaneamente mais feliz
(até a próxima copa)
o dinheiro lavado circularia mais limpo
e a arrecadação de impostos seria ainda maior.
BINGO!


(do livro “Poesia... Afinal pra quê?”)