domingo, 22 de fevereiro de 2015

PODER DE AUTOCRÍTICA

Se Deus, que é deus, deixou para julgar os homens somente no longínquo (e sempre adiado) Dia do Juízo Final, como é que eu — que sou apenas mais um insignificante mísero mortal — poderia me atrever a pretender julgar-nos, nós, imbecis insanos, aqui e agora, nesta limitada vida terrena tão curta e mesquinha? Eu? Cruz credo! Nem morto!

(em “Crônicas Anacrônicas – Grotesca Filosofia Mediocridade Sublime (inédito))

sábado, 14 de fevereiro de 2015

RALO CAGUETÃO

reclinado confortavelmente na chaise longue
à beira da magnífica piscina de um hotel de luxo
bebia eu um blended whisky twenty years old
quando sinto um fedor de revirar o bucho

fustigado pelo desconforto de tamanho mau odor
busco a origem de incômodo tão desagradável
e rapidamente constato sem nenhum labor
ser o ralo da água pluvial o responsável

localizado pouco mais ao lado o maldito desembocava
bem dentro de um esgoto pestilento que por ali passava
esgoto que por sua vez supria de bosta um ribeirão
que alimentava a represa fonte de água da região

(do livro “Poesia... Afinal pra quê?)
http://books.google.com.br/books?id=WesXBAAAQBAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false

sábado, 7 de fevereiro de 2015

O cão e os carrapatos

Havia muito tempo atrás num reino distante um cão vira-lata de nome Brazica. Como era gigante pela própria natureza e tivesse costa larga a cachorrada do lugar queria mais era trepar nele pra gozar como se ele fosse uma cadela no cio. E ele deixava. Ou porque também gostasse de gozar aquele gozo. Ou porque não tivesse outra opção. Ou por outra razão qualquer.
Dada a sua mestiçagem, além de diversos outros fatores, Brazica apresentava um corpo bastante heterogêneo. Alguns poucos constituintes anatômicos eram até legais, bonitos, saudáveis, bem cuidados, embora a genética de tal estado benfazejo tivesse origem, com frequência bem maior do que o admissível, nos cromossomos da ilegalidade. Porém, a maior parte do corpo do Brazica era mal-ajambrada, principalmente as partes periféricas que, desde seu nascimento estavam em petição de miséria.
Dentre todos e tantos males que afetavam o Brazica um em particular dava sintoma de gravidade maior. Ele vivia infestado de carrapatos. Eram carrapatos de diversas espécies, mas os principais, os que tinham maior poder de sucção sanguínea eram os da classe Argasidea, da ordem Maxima Lucra, da espécie Liberalia. Esses carrapatos além do seu elevado poder de sucção sanguínea estavam instalados no corpo do Brazica há muito, muito tempo e não abriam garra de jeito nenhum do seu espaço chupatório.
Certa feita, algumas pessoas aparentemente bem intencionadas chegaram à conclusão que aquele estado de coisas precisava mudar para o bem e felicidade geral do Brazica. Para tanto, aplicaram-lhe um banho de aparente ação inseticida na esperança de tentar livrá-lo dos parasitas chupões e assim possibilitar que ele ficasse mais saudável por  melhor distribuição de sangue pelo seu corpo até então com tantas partes tão enfraquecidas.
Qual não foi, porém, a estupefacção geral quando, bem pouco tempo depois do aparente banho profilático, o Brazica apareceu de novo todinho infestado por carrapatos. Desta vez carrapatos da classe Ixodidea, da ordem Máximae Potestates, da espécie Laborantes. Esses carrapatos se revelaram com tal sede sanguínea, com chupação de tal magnitude, possivelmente por provirem de regiões áridas e estarem com os organismos carentes de alimentação que, se a tal chupação não fosse estancada – estancada não, estancada seria um exagero impossível, mais apropriado seria dizer: arrefecida temporariamente – levaria o pobre do Brazica de vez pro beleléu. Do meio da pasmaceira do povo boquiaberto diante de tamanhos descalabros alguém chegou a fazer um comentário, quiçá até um tanto ingênuo: “Coitado do Brazica, só dá zica.”.
O Imoral da História arrematou: —“Enquanto tiver sangue a gente chupa.”.


(do livro “Contos Medonhos”)