domingo, 26 de dezembro de 2021

Ser trivial

balanço bambo na corda da mentira

à vontade sem sentimento de dúvida

ignoro essa coisa de consciência

todavia faço o tipo de pessoa tímida


lascivo por natureza

ciumento por insegurança

cobiçoso por desmesura

no festival social me fantasio com manto de monge


devoto a satã acendo velas a deus 

meu bico não fica calado para uma boa maledicência

contudo bem depressa pego leve 

quando ouço tilintar de esporas


nunca gozei das alegrias

que dizem desfrutar os amantes

na plenitude do amor

sem vergonha de sentir felicidade

domingo, 19 de dezembro de 2021

Ser cocô

grotesco 

afundando nas profundezas 

de flutuantes enigmas 

permanentemente

mantém seu espírito espúrio 


arrogante

tornando presente todo mal

num rosto sombrio

amiúde

estampa olhar de desprezo  


egoísta

voltando as costas ao mundo

ensimesmado pronto para o bote

incessante

se abriga sob a própria sombra


alma tensa

buscando ser generoso consigo mesmo

como desesperado derradeiro gesto

às vezes 

tenta sorrir quase sempre com indiferença 

 

domingo, 12 de dezembro de 2021

Ser superficial

como somos

quase tudo 

depende

dos cromossomos

dos pais da gente


como somos

porém contudo 

também depende 

do anseio grave ou agudo

que veio de permeio


como somos

nem tão somente

disso depende

pois o meio

causa seu efeito


malfeito ou não

quiçá daí 

resulte então 

o que foi feito

como somos

domingo, 5 de dezembro de 2021

Sem solução

ninguém há de negar a magnificência da natureza

mesmo o mais obtuso caso a observe se fascina

a tal ponto servir de inspiração pra noção divina

na arte referência permanente de ideal de beleza


e nós somos parte dela mas agindo sem  surpresa

do alto da inteligência que julgamos nos ilumina

pra variar o tema adotamos conduta assaz mofina

a destruímos sem piedade típica postura burguesa


somos espécie por ambição sem limite seduzida

nossa meta maior conquistar o máximo de favores

e ao destruir a natureza destruímos a própria vida


vida é natureza e dela sendo o predador eterno

com prepotência provocamos ainda mais dores

com arrogância ampliamos nosso imenso inferno


domingo, 28 de novembro de 2021

Sem chance

 talvez quem sabe ainda chegue o dia

quando olhando pra trás se verá vão

não foi o longo percurso da árdua via

cada um enxergar no outro um irmão


a voz do real dirá quem assim vaticina

mente ou é demente não há bola de cristal

capaz de prever destino diferente do fatal

ao homem único responsável por sua ruína


segue o ínfimo planeta perdido no eternal

infinito espaço nele este ser que é animal

dito dotado de razão apesar de não ter sido


sempre para ser foi e é preciso esforço ingente

porém não aprendeu como agir piedosamente

daí porque do escrito ali no início eu duvido

domingo, 21 de novembro de 2021

Se um dia

emergisse da tortuosa tarefa imposta por mim a mim mesmo deliberadamente talvez sem compreender bem por que de pretender com voz roufenha cantarolar as inglórias vitórias e derrotas retumbantes que vi vivi sofri impus exultei lastimei inventei supus fui cúmplice voluntário arrastado pela vida afora

falsamente despreocupado com o silêncio mundano diante dela por lhe arrogar valor inerente por definição soberba autoestima vanglória ridícula convencido da ignara alheia incompreensão vacilante frente a algum aplauso ocasional buscando consolo em chã  filosofia  fugaz é o estrépito dos fogos de artifício flébil o alarido saído das vielas da vaidade frouxas ideias disponíveis ao rompimento pronto para entrar no mercado de ilusões

e gritasse sem hesitação com toda a força dos pulmões a cara transbordante de raiva lavada pelo choro da amargura basta não faço mais nada disto chega de tanta inutilidade desisto não vou mais esbanjar meu tempo ele é curto precioso aqui e alhures agora e depois vou atrás de novas distrações continuar às moscas mas decididamente consciente na medida do possível essa atitude a ninguém comoveria nem deveria afinal de contas as pessoas de bem têm contas mais importantes para dar conta e as de mal têm de cuidar dos seus bens em lugar de atentar pras lamúrias de um desocupado

destarte continuo imergido nas ruínas de meus castelos de areia adornados com jardins de escória onde floresce na primavera a doce melancolia e no rigor invernoso a amargosa alegria o olhar cada vez mais enevoado o pensamento cada vez mais embotado nos gestos lentidão beirando o insuportável na curvatura da espinha bem pra lá de madura o desenho de um contorno inconfundível suporte da vestimenta da morte derradeiro presente da vida solitário vou moldando o vazio com nada a espera do dia em que tudo isto afinal definitivamente acabe


domingo, 14 de novembro de 2021

Sacanagem

 o tempo

em sua indiferente crueza dissipativa

se impregnou em mim desde o primeiro instante

zigoto

persistindo assim daí pra frente 

e assim será até o último instante

sempre

pela pele até os ossos

miolos 

principalmente

duro caroço

cada vez mais 

o que esse sem graça pretende afinal

acabar com a graça da gente

liquidar com minhas ações

me fazendo virar pó 

sem piedade nem dó

largado em terra fria

só pra agradar a entropia 

e depois amizade 

como fica minha vaidade

arrogância petulância ganância 

egoísmo mau-caratismo pedantismo

como é que é

acabou-se o que era doce

e amargo também  

sacanagem


domingo, 7 de novembro de 2021

Recorrência

o mundo 

podendo ser eu

achando ser gente

acordada sendo sonâmbula 

na corda bamba 

distendida na flecha do tempo

uma comendo outra

sem estranhamento

na soltura do crime 

inquérito arquivado  

o segredo da justiça

silêncio patife 

permanente instalado

na ordem do dia 

 a sedução do roubo

inspiração vem do alto

mergulhado em temores

sem perceber

o mau odor sob as axilas

e a incapacidade de ser decente

elo mantenedor da corrente humanoide 

domingo, 31 de outubro de 2021

Recompensa cruel

genivaldo sujeito legal veio do nordeste agreste 

de um dos estados mais pobres do imenso país

pra trabalhar sem carteira assinada de pedreiro aprendiz

na megalópole que engole todo tipo de gente

abonada remediada principalmente pobre e indigente


genivaldo era quase ainda um menino

deixou pra trás o pouco que queria e não tinha

embarcou na aventura mesquinha

em busca de um melhor destino


a obra estava há tempo embargada

não tinha alvará não era regularizada

mas mesmo assim seguia em frente

sob conveniente fiscalização leniente


por volta das onze horas 

daquela sexta-feira de agosto

genivaldo e dez companheiros 

foram forçados a certo desgosto

ter de morrer sob os escombros 

da obra desabada sobre seus ombros


receberam como recompensa provisória 

até que seus corpos esmagados 

fossem removidos pelos bombeiros

uma lápide monumental de milhares de toneladas 


domingo, 24 de outubro de 2021

Qualquer coisa

 nesta tarde chuvosa modorrenta de domingo  

distante do burburinho incessante da cidade  

em mim tudo permanece parado e ainda vivo


no almoço extravagâncias salgadas de carboidratos

sucedidas por guloseimas afrontadiças da diabetes

arrematadas por cafezinho de coador sem açúcar 


vem uma vontade de erguer os braços 

momento de contentamento sem culpa

num mundo em que abunda o torto


a vida parece até ter plenitude

ao se descobrir que para viver 

só se necessita pouco de tudo


sou eterno enquanto mortal ignorar a morte

pois estando vivo para mim ela não existe

e uma vez tendo morrido dela nada saberei


domingo, 17 de outubro de 2021

Promessa difícil

de hoje em diante vou me esforçar

de fato para fazer o que até hoje não fiz

dar minha verdadeira contribuição

para o melhoramento da situação 

geral da sociedade do nosso país


não vou mais cuspir no chão

nem jogar bituca de cigarro

pela sacada do apartamento

nem embalagem de salgadinho e

latinha de cerveja pela janela do carro

aliás vou ver se consigo não beber 

bebida alcoólica quando for dirigir 


não vou mais fazer xixi na tábua 

da privada pública ou privada

nem deixar de dar descarga

depois da mijada ou cagada

nem não recolher o cocô

do meu cachorro quando eu 

levar ele fazer suas necessidades

pelas ruas e parques da cidade


outrossim como contumaz motorista 

vou procurar respeitar as velocidades

seus limites definidos pelas autoridades

com ou sem radar por perto me vigiando

e não esquecer quando estiver dirigindo

que tem hora que também sou pedestre

e que pedestre precisa ser respeitado

porque vale muito mais do que carro


sei que vai ser muito difícil

porém vou fazer o possível 

pra ser cada vez um pouco mais honesto

nas mínimas coisas do meu dia a dia

não quero dizer com isso que não presto

mas tentarei ser sincero por favor não ria

sinceridade é coisa séria não é babaquice

nas minhas atitudes na minha conduta


bancar o esperto pra sempre levar vantagem

à custa de malícia má-fé suborno chantagem

justificar as falcatruas particulares

desde as ínfimas aparentemente inocentes

até aquelas bem substanciosas indecentes

pela corrupção existente em todos os lugares

são comportamentos que não tem cabimento

pretender sonhar em eliminar da minha vida

não esqueçamos que pertenço à espécie humana

entretanto se minha postura for menos sacana

me relaciono com o outro de forma mais amena


e dessa somatória de coisas insignificantes talvez

consiga evoluir pra uma pessoa melhor e por sua vez

fazer quem sabe de meu filho um ser também melhor

que saberá quiçá transformar o seu em ainda melhor


e assim sucessivamente ao longo das gerações

possamos formar tomara uma sociedade melhor

e por consequência porventura um país melhor

oxalá contribuindo para um mundo melhor

ou pelo menos menos pior

 

domingo, 10 de outubro de 2021

Porque ninguém é de ferro

 ex-líder estudantil ativista comunista

figadal inimigo da propriedade privada

batalhador dos direitos das massas

hoje proprietário de fábrica de macarrão

e especulador do setor imobiliário

cuja missão é maximizar os seus lucros

explorando salários sonegando impostos

cuja visão é a todo custo ficar milionário

graças à corrupção que se danem os otários

cujos valores estão contidos no corporativismo

comprado a peso de ouro dos congressistas 

sente bastante orgulho em ver seu filho participar

das passeatas pelos plenos direitos humanos

se preparando para sucedê-lo nos negócios bastardos

e quem sabe até um dia se transformar em deputado

domingo, 3 de outubro de 2021

Perdido

me procuro e não me encontro

efêmero dentre os não mortos ainda

na convulsão perene das rudes batalhas

obediente a famigerados ritos

ordem implacável da humana forma

desespero para aniquilar o pensamento 

que insiste em engendrar meu personagem

na agonia do quanto custa viver

enquanto o veneno passa do estômago para o sangue

submerjo na dor sem arquear o corpo

preparo a cama para dormir o derradeiro sono 

na cara sob a máscara social 

pregado o estigma do fim fatal 

domingo, 26 de setembro de 2021

Nunca ficarei rico com isto

quando se chega à última ou penúltima curva

da vida além do tesão também derriba a tensão

que de praxe costuma alimentar o brilho da escuridão

criador da expectativa de que as coisas no futuro

possam ser menos piores creio de potência do monturo

bom nome lhe seja dado por semelhança ao de hoje real

não por mera coincidência mas atitude nada insubstancial

aí então meu velho inês é morta já será tarde demais

não dá pra evitar a noite eterna breve amanhecer jamais

grand finale da árida planície resta rezar pra que deus abençoe

se até aqui a estrada foi lisa ou esburacada que ninguém caçoe 

de nós neste ponto ao menos que façamos jus a esse presente

mínimo decisão sensata de quem espera ser considerado gente

mesmo que se ao olhar meio de esguelha pelo retrovisor

desconfiar que envelheceu sem merecer tal apreço a rigor

e sentindo penetrar pelas narinas o odor de terra fresca

arrastar mais um pouco este chassi que se vai com a breca

respiração ofegante produto de claudicante pulmão  

domingo, 19 de setembro de 2021

Validade vencida

cadê a tal da musa
o quê
ninguém mais usa
como não me avisaram
então estou anacrônico 

caramba
isso explica talvez
esse meu mal-estar crônico
num canto escuro da sala
ensaiando essa dança ridícula
fora do descompasso geral

eu minúsculo poeta 
no papel de palhaço pateta
fazendo careta pro público 
tropico em verso trocado
e saio de pé quebrado

também pudera
com essas asas de barro 
não vou conseguir jamais
seguir o voo supersônico 
desse progresso catatônico
em que a gente foi se meter
sem nem saber bem por que

eu aqui feito um bocó
na procura da verdade
ingenuidade pura só
mais uma de minhas tantas bobagens

na verdade acabei de aprender 
que verdade é a vontade
de quem tem o poder 
de dizer o que é a verdade

isso posto
a contragosto 
deixo por ora
a metafísica de fora
e apenas 
aspiro a uma aspirina
talvez assim
minha cabeça melhore

domingo, 12 de setembro de 2021

Parafuseta de rosca espanada

a entropia conserta os desacertos que o homem faz

dizem deus em seis dias criou o mundo

no sétimo caiu num baita sono profundo

o mais duradouro ente frente ao universo é fugaz


o diabo pelo seu lado é bem mais esperto às vezes vem devagar

mas nunca deixa de chegar essa é a certeza que nos expecta

por mais protejamos a bunda nela uma hora ele espeta sua seta

chova ou faça sol tenha ou não luar


tu és um verdadeiro traste a herança que me doaste

quisera vê-la mas não consigo completamente apagada

da memória melhor fora se não tivesses deixado nada


por ora acredito é o que explicar me baste

um dia a esperança não pode morrer a boa sorte se inclina

pra cima de mim enquanto rodas bolsinha na esquina 

domingo, 5 de setembro de 2021

Poeminho torto do vinho do porto

néctar português se foi inventado por anglo-saxão

ou não me parece irrelevante discutir aqui a questão

o que deve contar é seu sabor supimpa sensacional

joia vinda do vale do douro ao norte de portugal


diferente dos outros vinhos quanto à fermentação

interrompida  por uma aguardente vínica de adição

fica naturalmente doce e mais forte que o normal

pois em álcool não vira das uvas o açúcar natural   

e a aguardente adicionada tem teor de álcool elevado


diversos são os tipos elaborados visando agradar

variados paladares e mais mercados abocanhar


há o branco o tinto e o rosé quanto à cor original

embora seja o tinto de fato aquele mais tradicional


apresenta uma gama bem ampla de doçura 

que vai depender tanto de quanto é que dura

a fermentação além da forma do envelhecimento 

e da mistura dos vinhos usada no processamento

acompanha variados pratos tanto doces como salgados

sendo servido desde ao menos fresco até mesmo gelado


o ano de apanha das uvas serve pra distinguir os tintos

em duas classes os sem data e os com data de colheita

sem data misturam vinhos resultantes de diversas safras   

e dois são os seus tipos o ruby e o tawny


ruby pega pouca madeira não oxidando muito desta feita 

no descanso de três anos em tonéis de milhares de litros

de cor vermelho-escura daí o seu nome é encorpado e frutado


tawny é posto a envelhecer em barricas menores de carvalho 

permitindo maior respiração do vinho aumentando a oxidação  

que lhe dá tons alourados  razão por que tawny são chamados


o envelhecimento durante três anos é considerado padrão

mas têm os tawny especiais que vêm com indicação de idade

por envelhecer ao longo de dez vinte trinta quarenta anos

o que aumenta a complexidade e a riqueza de seus aromas


com data de colheita são usadas uvas de um único ano

particular em que  as uvas são de qualidade excepcional

ao contrário dos dois anteriores têm a característica de 

continuar a envelhecer após serem colocados em garrafa


a rolha é inteira de cortiça sem a tampa de plástico usual  

e para evitar oxidação devem ser guardados na horizontal


distinguem-se duas categorias

o lbv e o vintage


lbv late bottled vintage é envelhecido em tonel 

durante quatro cinco seis anos antes de ir pra garrafa

o que vem explicar o motivo da sua denominação


podem ser consumidos logo após o engarrafamento

pois sua evolução na botelha não é muito acentuada 

devido ao tempo maior no tonel com isso é atenuada  

a desvantagem do maior tempo de espera pro consumo 

tendo características próximas de um vintage legítimo


vintage é sinônimo de coisa antiga de elevada qualidade

o vinho envelhece dois anos em tonel e é logo engarrafado

tem enorme potencial evolutivo no transcorrer do tempo

não deve ser consumido antes de 3 a  4 anos na garrafa 

e vai se tornando suave e elegante com o envelhecimento


pra ser consumido em pequenas doses é coisa rara e cara

embora a orientação dos experts seja lá

uma vez a garrafa aberta deve ser logo sorvida

este vinho oxida fácil perdendo muito da qualidade pá

toma porém cuidado podes perder o porto e acabar à deriva

 

domingo, 29 de agosto de 2021

Permita um aparte

 aqui quando digo

eu sou

não sou

ou sou

a sério


aqui quando digo

eu quero

não quero

ou quero

quiçá


aqui quando digo

eu devo

não devo

ou devo

deveras


aqui quando digo

eu sei

não sei

ou sei

quem sabe


aqui quando digo

eu posso

não posso

ou posso

é possível


aqui quando digo

é verdade

não é

ou é

por vezes


aqui quando digo

vale a pena 

não vale

ou vale

vagamente


aqui é o reino da literatura

e o que importa é o texto

acima de qualquer pretexto

sinceramente sem caradura


não pretendo passar por cara acaciano

mas se assim não fosse não seria arte

nisso creio estar certo salvo engano

de minha parte obrigado pelo aparte


domingo, 22 de agosto de 2021

Para todos

estou

não sou 

sendo ser 

transido

em trânsito 

instantâneos estados  

se sucedendo 

o sangue circulando 

ainda

provisório

provejo  

provisões precisas

tantas

outras

nem tanto

porém 

me permito parlatório 

profetizo o óbvio

um dia termina

para mim

para ti

para todos 

 

domingo, 15 de agosto de 2021

Palavra puxa palavra

deixo a alma na gaveta da cômoda
para mim assim é mais cômodo
visto o melhor terno
visto que o compromisso é coisa séria
e não sou gente de andar por aí
feito um coitado
não é presunção não  
mas na rua só saio no aprumo
gasto mil e mais mil se for preciso 
ignoro o aviso de cobrança do banco 
não me importo de perder o prumo
depois corro pra desfazer o nó
velho com outro novo
antes de sair rodopio no meio da sala
e juro de pés juntos
não permanecer mudo
o assunto sendo política
porque aí o buraco é fundo e escuro
e minha cabeça fica tonta 
chego quase a perder o sentido
mas eu gosto a voz fica fanhosa 
faz parte do aprendizado de mentir
com primor pro povo carente
sempre tão voraz
por uma fala que o embale
e enxugue suas mazelas 
não me envergonho de pensar dessa maneira
todo mundo sabe que é verdade cristalina
todo mundo quer tratamento de cachorro
de madame e barras de ouro
entulhando o cofre de aço 
visto que chegada a hora do velório
toda a ganância vai de embrulho
defunto não pisca mais o olho

domingo, 8 de agosto de 2021

Outrora da minha vida

 saudades não digo que tenho 

também não digo que abomino

os tempos em que era menino

que não foi infância querida

tão pouco foi aurora perdida 

anos passados sem glória

trazidos pela cansada memória


a cidade já turbinava a todo vapor 

mas dava pra ir devagar com o andor

a pressa era menos neurótica

o progresso ainda longe da robótica


religião era católica apostólica romana

com seus dogmas contraditórios 

tinha encantamento na imagem

de nossa senhora cercada de querubim

o padre desfiando a santa missa em latim


não tinha tanto pastor rapinante

bons de bico bem falantes

verdadeiros artistas

decoradores biblistas 

autodenominados bispo apóstolo

exímios comerciantes da fé

amantes de grana em vez de ósculo

milionários vendendo milagres

dizimadores de bolsos crédulos

de infelizes sorvedores de vinagre 


poucas eram as casas 

com bananeira e laranjal

muitos os sobradinhos geminados

espremidos dos dois lados

mas havia na moradia quintal

onde durante o dia batia sol

não se morava empilhado

em prédio de apartamento

escuro mais e mais apertado


era legal

estudar em colégio estadual

onde o ensino era eficiente

não era preciso ir pra escola 

sofisticada nem fazer cursinho 

caro se aprendia o suficiente

até pra entrar na usp direto


não tinha tanta faculdade 

como existe hoje em dia

que pra passar de ano 

e conseguir o diploma

basta passar na tesouraria


nos bairros ruas sem pavimento

permitiam jogo de bola de meia

bolinha de gude e de queimada

se empinava pipa ou fazia nada

tudo bobagem tudo besteira

interação corpo a corpo direta

se podia até andar de bicicleta


não se ficava fechado 

em segurança no quarto 

jogando video game

zoando sozinho na internet 

caminhando pelas calçadas

tão esburacadas quanto as de agora

era menor o risco de ter

braço arrancado por carro

afinal tinha bem menos carro

trafegando pelas vias pavimentadas

tão esburacadas quanto as de agora 


não dava mais pra nadar no rio 

tietê como no tempo do meu avô

o rio já tinha forte odor de cocô

mas nem se compara com hoje

verdadeiro bosteiro a céu aberto

apesar dos bilhões desviados

do tratamento de despoluição 

graças ao crescimento da cidade

nosso desenvolvimento sustentado


o céu em noite escura sem lua

embora a fumaça já fizesse estrago

mostrava orion com as três marias

ver aldebaran era um estouro e

apontando para o sul o cruzeiro

com o incremento do progresso

mais veículos tiveram ingresso

e nos dias de hoje ao contrário

estrela só se for em planetário


as praias da baixada santista

pra onde costuma ir paulista

em férias de fim de ano feriados

e fins de semana muitas vezes

pra tomar banho de fezes

e curtir mega engarrafamentos

apresentavam já naquele tempo

apreciável nível de coliforme fecal

nada porém tão assustador

a ponto de matar banhista

somente vômito e diarreia

diferente dos tempos correntes

em que a situação pode ser séria

mesmo com emissário pra mandar

esgoto de tira-gosto de turista

ir navegar nas águas do alto-mar


pelas matas e campinas do interior

era possível caçar paca perdiz

capivara tatu e passarinho

aquilo era considerado normal

não se tinha noção do mal

do risco de extinção das espécies

conceito absorvido devagarinho

na cachola mas bem rapidinho 

na prática da escola da vida

com a expansão do desmatamento

necessário na formação de pasto pra boi

plantio de soja esteio da exportação 

cana pra combustível de automóvel

por conta do tal de  progresso 

que é danado de estimulante


questão de trocar jatobá por capim paca por boi

questão de necessidade ou vaidade 

questão de humanismo ou dinheirismo 

questão de opção ou não sei lá o quê


por isso é então que eu 

saudades não digo que tenho

sequer pretendo esquecer

a minha vida de outrora 

que não foi aurora querida

tão pouco infância perdida

porque tinha muita coisa boa

mas também muita porcaria

um monte de coisa à toa 

igual como acontece agora


quiçá hoje não seja melhor 

pior fosse ontem talvez

depende do ponto de vista

saudosista ou progressista

depende do gosto do freguês

deixo a decisão pra vocês


domingo, 1 de agosto de 2021

Interstícios

a tiracolo da vacuidade de meu dia 

capturo o que me resta de ânimo e 

me contorço pelas frinchas 

da massa letárgica de automóveis

que entopem implacáveis

o espaço locomotivo 

buracos borrados de asfalto e

alcanço o outro lado da calçada onde

arrastado por acachapante cotidianidade

busco em meu âmago força e

me imiscuo pelas frestas 

da multidão de pessoas 

replicantes permanentemente

avançando avassaladora 

do espaço coalhado de prédios espetados 

no chão não beijado pelo papa 

chego ao condomínio e

me esgueiro numa réstia

do bloco de ocupantes do elevador que

não me apresenta nenhum rosto amigável 

apesar de morar ali há mais de dez anos

no vigésimo me escafedo do antromóvel e

me espremo

pelo lusco-fusco do estreito corredor 

para por fim escorregar

na solidão do cubículo batizado de lar

semi-ileso de corpo plenileso de mente

abro a janela da sala e respiro com peito apertado 

o ar poluído de fim da tarde

depois a água morna do chuveiro

caindo na cuca quente

me faz sentir certo conforto 

encorajador da procura de uma trinca

no monolítico mal-estar

a que a realidade me obriga 

para por ela me infiltrar e tentar alcançar

um sentimento esperançoso

de que o viver humano poderia ser menos penoso

porém 

constrito no exíguo espaço

o ingênuo pensamento sem demora

escorre pela nudez do real 

arrastado pela espuma do sabonete

misturado à sujeira do corpo

para o chão do boxe

e daí para a tampa do ralo

onde flutua por instantes até ser lançado 

através dos orifícios da tampa 

para a fétida escuridão do esgoto


domingo, 25 de julho de 2021

Molusco

 carne dura tenra rija mole

minha boca não engole

cozida temperada ou nua

nem pensar então se crua

sai pra lá coisa mais nojenta

meu estômago não aguenta

polvo lula ostra e outros bichos

é comida em que não me fixo

está aqui alguém que agradece

faça o favor não me oferece

se houver de sua parte insistência

encararei o ato como impertinência

procurarei então a todo custo

se preciso for fugir pra cusco

aproveitando o lusco-fusco

e me livrar do maldito molusco

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Exangue

corpo

engenhosa estrutura 

de ossos músculos vísceras 

que a pele reveste

formando humana figura

conjunto único de gestos

que certo tempo perdura 


mente

frente às circunstâncias mundanas

em lances de guerra e paz

brota do cérebro

que do corpo faz parte


o corpo

em cotidiana postura 

às vezes mole 

frequentemente dura

persiste

movido pela vida que insiste 

em querer viver


a mente

diante dessa postura

segue ou combate a conduta

procura enxergar a esperança

vislumbrada no longe vendo de perto

pulular podridão dominar injustiça 

e luta pra não se tornar árida virar deserto 


domingo, 11 de julho de 2021

Espelho espelho meu

a placenta

já alimenta

a ânsia fútil

viradora de vômito

essa ganância de si


os pés  

não pisam em ponte

ignorante do outro

sem mancha nem culpa

com muita manha 

na fala mansa

dispõe o mundo

a seu gosto


cultua o corpo

na pele e carne  

judia porém do osso


narciso

abre o olho 

o orvalho 

emperra o ferrolho

e tudo vira bagulho


hoje 

o sonho ganha por pontos

amanhã

por nocaute vence o pesadelo 


mas

se acaso 

vem alguém

 lembrar do ocaso

dado o espinhoso caso

faz-se silêncio licencioso 

 

domingo, 4 de julho de 2021

Dilema

mau meter a colher

em sopa que não a da gente 

pior se for de parente

mais pior se pessoa diferente 


bom ligar numa boa o  

não tenho nada a ver com isso

deixando a bunda à toa  

vendo a banda não passar faz tempo


entretanto tem contratempo

difícil de se assumir o omisso

se não se encara o compromisso

se agasalha uma bela trolha grossa


aí a gente vai e encara o serviço

pra não ser taxado de bicho preguiça

pra não ser imputado desse defeito

pra no fim se ferrar do mesmo jeito 

domingo, 27 de junho de 2021

Salvo-conduto

vou embora pro planalto

pra praticar assalto

tudo dentro da lei 


resolvi criar juízo

fazer o que é preciso

encher o rabo de money 


para maior segurança

de toda essa lambança

parte deste dinheiro

transfiro pro estrangeiro


vou embora pro planalto

chega de sobressalto

quero viver vida de rei


lá terei mansão à beira do lago 

protegido de todo estrago

zombando da pobreza 

a bordo do meu jet ski


gozarei tanta mordomia tamanho privilégio

que francamente minha gente

deveria ser considerado sacrilégio


pra me livrar de eventual contratempo

lançarei mão a qualquer tempo  

de minha impunidade constitucional


vou embora pro planalto

conquistar poder cada vez mais alto

lá estarei livre pro mal legal

lá o ano inteiro é carnaval   

 

domingo, 20 de junho de 2021

Algures

 onde tavas tu jeremias que a mim não vinhas

enquanto eu aqui gemia no chão frio da cozinha 

mastigando a cota diária de espinho a mim reservada

temperada com pitadinhas de paciência e humor 

deglutindo sua acuidade sem pressa para engolir

vivente apreendedor de aflições à míngua de alegrias 

nas recorrentes rebordosas da vida me escorando na ribanceira 

cicatrizes na carne apresento poucas sobejam porém na alma

testemunha medíocre desta mundana algaravia de erros

me vendo quase todo consumido em enganos sob o manto do vexame 

sem negar ter tido muitas vezes coração iracundo apto à vingança

mas que no frigir dos ovos poder afirmar talvez sem extrapolar demais 

ser um ser não temente à maldição por não ter negado arrimo a alguém carente  

muito pelo contrário sentindo primeiro para entender depois

o ridículo da pequenez do socorro recebido em troca do tanto feito pros outros

vai daí quem sabe o aprendizado de criar desapego a pessoas 

ingenuidade querer curar as feridas com mel de laranjeira

quando o corriqueiro ofertado é salada de flor de espirradeira

entrementes debaixo de tantas nuvens carregadas de escuridão 

busco uma nega de luz num fundo azul celeste levado por fogo fraco  

um tanto a certo esmo sem compreensão de mim mesmo com ligeira saciedade

no eco de tantas horas perdidas deixo escapar o passante momento 

comendo na mão da melancolia para um dia pra frente 

lembrar pesaroso do instante presente 

sem ânimo para invejar as bravatas de tantos empoderados 

boto no bolso a saudades e sigo à toa pisando rotas rotas que levam a becos escuros 

fedendo a urina e fezes humanas    

sábado, 12 de junho de 2021

Gratidão

 meus passos só sabem seguir

o caminho que me leva a você 

você que é a vida da minha vida

fonte do meu ser

bálsamo que mitiga as feridas adquiridas em minha jornada

luz que faz meus olhos enxergar o mundo menos sombrio

inspiração para eu ter esperança de haver dias melhores 

força motriz que tira meu corpo da cama cada manhã dizendo

vai vence mais este dia

calmante do meu espírito de noite ao me beijar sussurrando 

durma bem meu amor

e assim a todo instante sinto o desejo de lhe segredar

obrigado querida por me fazer existir   

domingo, 6 de junho de 2021

Vida moinho

bem disse agenor de oliveira

compositor maneirinho

da música popular brasileira 

o mundo é um moinho


na trilha de mestre cartola poeta do povo

tenho o atrevimento

de apor outros pensamentos

sem acrescentar nada de novo


a mofina mó do moinho vida

de cada um desde o primeiro instante

sem piedade nem dó dá a partida 

para o passageiro grão moer incessante


gira que gira tenaz girante roda gira

a semeada semente mói implacável 

reduz pouco a pouco a pó descartável

sonhos conquistas amores vaidades ira


lágrimas risos gritos sussurros alegrias ais

ela tritura e de presente um passado fugaz vai

deixando como mesquinho farelo deteriorado 

a espera do momento de na terra ser lançado

 

domingo, 30 de maio de 2021

Si tous les chiens du monde

outro dia caminhava eu pelas trilhas

da praça que tem perto de casa

local onde procuro ir diariamente

na medida do possível tentando prolongar 

um pouco mais minha precária existência 

por recomendação do cardiologista

quando me deparei com uma cena insólita

tendo em vista o comportamento padrão 

da nossa população


um cachorrinho 

desses animais domésticos de estimação que

por falta de condição doméstica adequada

condicionam os seus donos à obrigação 

de ir aos logradouros para alívio 

de suas necessidades fisiológicas  

fazia cocô

agachado sobre as patas traseiras

aliás como a maioria faz


a excentricidade da cena era que 

o cachorrinho fazia suas fezes

diretamente dentro de um saco plástico

convenientemente dobrado e

colocado entre as patas do animalzinho  

à guisa de um peniquinho


imediatamente me veio à mente

não saberia explicar por quê

um filme que assisti há muito tempo

um filme que marcou muita gente

inclusive a mim mesmo

e que tinha o título de

se todos os homens do mundo

si tous les gars du monde


alguns talvez lembrem ainda

é uma história simples mas comovedora 

que tem como tema nuclear a solidariedade

acima de preconceitos ideológicos 

nascida a partir de uma singular circunstância  

contudo de aparente modesta abrangência


à medida que o tempo transcorre 

desde o instante de surgimento do incidente

em poucas horas a situação se agrava tanto 

que se torna premente atingir o objetivo

que vai trazer solução ao problema


desenvolve-se rapidamente 

um amplo movimento solidário

abrangendo pessoas em vários lugares do mundo 

que deixam de lado momentaneamente

diferenças de classe social 

crença religiosa condição política 

e se unem em torno de uma meta humanitária 

verdadeira  com força de intensidade tamanha 

que  uma missão praticamente impossível

é concretizada com pleno êxito

tudo fica bem resolvido 

e todos usufruem de um final feliz


mas voltando ao cachorrinho cagão da praça 

quiçá incitado pela lembrança 

dos bons exemplos de conduta

apresentados na película  

ao vê-lo defecando 

tão bem ajeitado daquela maneira

não resisti e exclamei em pensamento

eis aí um cão cidadão


e continuei minhas conjeturas íntimas 

relativas àquela situação

se todos os cachorros do mundo

seguissem o exemplo desse cãozinho bem-educado 

viver seria talvez um pouco menos desafortunado

viveríamos com um pouco mais de paz 

com um pouco menos de ansiedade

ao caminhar pelas avenidas ruas calçadas da cidade

não precisaríamos mais nos preocupar 

em pisar em cocô de cão

depois ficar nervoso estressado

e falar um monte de palavrão

domingo, 23 de maio de 2021

Trova de uma estrofe só

eis aqui esta trovinha feita numa estrofe só

outras estrofes deviam entrar mas a lei quer uma só

todas elas são consequência do que tenho pra dizer

que eu sou a consequência inevitável de você

gente existe por aí que trava a trova 

em quatro versos rimadinhos

limitados a sete sílabas sem nem 

título permitir pra coitadinha

eu que sempre falo tanto sem dizer nada 

ou quase nada

vou me utilizar em liberdade de mais palavras pra ver se  

no final sobra alguma coisa do tanto que tenho pra dizer

contar com minha estrofe como eu gosto de você

sei que quem quer todas estrofes é abandonado sem dó

fica sempre sem nenhuma vou ficar numa estrofe só  

vou voltar pra minha estrofe como eu volto pra você

domingo, 16 de maio de 2021

Oblação pela ablação

aconteceu tudo bem rápido

era pra ser um simples exame de rotina

mas as imagens do ultrassom

não deixavam margem pra dúvida

o rim esquerdo 

que há seis meses nada tinha de anormal

agora alojava um tumor 

com morfologia tal 

que a malignidade 

confirmada pela biópsia 

feita logo em seguida

podia ser dada como certa


a cirurgia foi marcada às pressas

para sábado cedo antes da tradicional

feijoada na casa do médico urologista 

grande especialista

responsável pela operação 

não coberta pelo plano de saúde

que custou um  dinheirão 

aos bolsos do canceroso cidadão


extirpado o mal pela raiz

mesmo com um rim a menos

o paciente voltou a ser feliz

pelo menos é o que ele assim diz


como prova de reconhecimento

por se livrar da desgraça

embora o tratamento 

não fosse de graça

ao contrário custou uma nota preta 

mal saído do hospital  isento de toda treta

devoto fervoroso da santa padroeira do país  

fez questão de ir em peregrinação

assistir missa na basílica igreja matriz

para humildemente

agradecer o sucesso da ablação

com  uma bem generosa oblação

domingo, 9 de maio de 2021

Semideus

diz que sofre 

com o sofrimento dos outros pode até ser

mas é uma pessoa que 

manda tem poder sem ter nada a perder

prontamente apresenta solução 

pra qualquer tipo de proposta

e não deixa nunca 

nenhuma pergunta sem uma resposta


presunçoso se vangloria de saber resolver tudo

dom inato que o fez assim 

com este senso tão agudo

procura fazer crer ser 

o inventor da paz definitiva

passando a ideia que 

todo perigo é coisa inofensiva


se numa discussão por acaso 

se encontra em dificuldade

enfrenta todos 

com um sorriso amargo experimentado 

fecha os olhos faz cara de quem 

pede a deus por humildade


e diz que desse jeito vai deixar 

o problema inacabado

quer impor ser o autor consciente 

do destino dos momentos

parecendo ser grande por fora 

bem maior do que é por dentro


domingo, 2 de maio de 2021

Que remédio

há situações em que tocamos coisas 

que não se devia mexer

tocamos perto demais a ilusão 

e a tal ponto o fazemos 

que a ilusão fica maior do que devia ser 

e atinge a veracidade de um sonho

e queremos viver tudo que julgamos ter 

o direito de experimentar por estarmos vivos 

e ousamos amar mais do que é possível 

e entregamos além do limite disponível 

e depois percebemos ser tudo um vislumbre


cometemos um ato total esquecendo 

que somos essencialmente parciais

e o melhor a fazer é procurar 

não compreender mais do que o permitido

enquanto aguardamos a ocasião propícia 

para realizar um novo desatino

domingo, 25 de abril de 2021

Quando talvez quem sabe

quando

um deus verdadeiro

se torna incapaz de me socorrer

e o diabo astucioso com disfarçado desprezo

me atrai para seus múltiplos templos

onde cultos profanos me ludibriam


quando

em meus ouvidos moucos 

o passado se transforma num eco mudo

referência nula para um presente pobre

semente infértil para um futuro estéril


quando 

as maravilhosas humanas conquistas

com seus duvidosos amplos benefícios

são fonte borbotoante de angústias insondáveis

resultantes de meus desejos questionáveis 

em busca de vãos prazeres insaciáveis


quando

protegido pelo escudo de bastarda liberdade

o poder concentrado em minhas mãos privilegiadas

serve para que eu plutocrata ali mais me locuplete

alimentando a insuperável miséria insuportável de tantos


quando 

minha irrefreável milenar ganância mais e mais 

descontroladamente crescente na linha do tempo 

a ponto de se aproximar da desmesura irresponsável  

passa a ameaçar de destruição a própria vida


talvez

fosse a oportunidade rara para eu 

deixar de lado ao menos por instantes

as ambições as espertezas as vaidades

invariavelmente infiltradas em minhas ações 

as telas da televisão do computador do celular 

nas quais abduzido me reflito cotidianamente


talvez

despojado de arraigada arrogância

nu em minha limitada humana condição  

refletido no âmago de mim mesmo 

devesse tentar refletir sobre a possibilidade  

de ser apenas um ser humano

pequenina parte fragmento frágil 

abandonado na solidão de um todo

infinitamente maior universal

um ser para o qual uma existência

simples e decente

é necessária mas é também 

mais do que suficiente


talvez

assim pudesse encontrar a trilha utópica que

me levaria perto da tão almejada felicidade


quem sabe

domingo, 18 de abril de 2021

Poema do gato vivo

o poetinha

como costumava ser

carinhosamente chamado

o poeta maior

diplomata de carreira

artista das letras e da música

cantor do amor

encantador de mulheres 

certa feita

em florença

nos idos de mil novecentos e sessenta

escreveu um encômio 

aos felinos domésticos

que denominou de 

soneto do gato morto


entre tantas coisas belas 

como soeu acontecer

com quase tudo que ele escreveu 

naquele particular poema está dito que

um gato vivo é qualquer coisa linda

nada existe com mais serenidade


ora pois

não é que um dia desses

por conta do meu aniversário 

de quem eu considerava 

uma pessoa amiga

ganhei de presente um gato


passemos sem delongas aos fatos

o tal bichano de fato

acorde a opinião do bardo 

sem dúvida era portador

de uma invulgar beleza 

serenidade porém nem pensar

sua educação deixava muito a desejar

sofá poltrona cadeira mesa

o sacana subia sem pestanejar 

quando bem lhe desse na telha

para refestelado ali se aboletar

carpetes e tapetes

além das almofadas de finos tecidos

eram os lugares por ele escolhidos 

para praticar a arte de arranhar

saltava sobre a pia da cozinha e ali

comia o que havia de seu agrado

o restante largava tudo bagunçado

diariamente dava um repasse na fruteira

que ficava em cima da geladeira

rasgava os pacotes de bolacha e de chocolate

ainda dentro do prazo de validade 

guardados na prateleira do armário

era mesmo um bichinho salafrário

espalhava papel higiênico o limpo e o usado

pelo chão do banheiro

eta gatinho abusado

entrava no roupeiro para afiar as unhas

em minhas camisas de seda preferidas

pisoteava delicadamente 

com as patinhas sujas de barro

meus papéis em cima da escrivaninha 

achava sempre um jeito 

de dar uma escapadela

pela porta ou pela janela

e voltava na manhã seguinte 

com a fuça estropiada se fazendo de doente

dormia o dia inteiro acordava no fim da tarde

reclamava da ração miando desesperado o patife

parava só depois de receber um bom naco de bife

pra completar meu desespero

enchia todos os cantos de pelo


as palavras do renomado vate

bem se aplicavam aquele meu gato 

o danado era um disparate

mesmo parado ele caminhava

e parecia que estava sempre rindo da minha cara


pra concluir esta baboseira

deixo aqui registrada

uma confissão derradeira

não consegui suportar a situação

e tive que me livrar do animal

dando ele também de presente

para um parente meio distante 

um cara considerado muito legal

foi a forma que encontrei 

de manter o maldito gato vivo 

sem que eu não enlouquecesse 

e quem sabe até morresse

porque pra falar com franqueza

era ele ou eu aqui nesta casa

domingo, 11 de abril de 2021

Palavras jogadas

a imperfeição com que as almas se tocam

responde pelo guardar-se da entrega de si próprio

e um corpo por mais que tente 

se refugiar em pensamento

se exacerbado pela falta de espírito 

sempre carecerá de pleno entendimento

entendimento que vai além do alcance das palavras


antes de falar é essencial 

pensar em que e como se vai falar

ouvir com atenção e serenidade 

a voz do próprio pensamento

pois não se deve pensar que falar 

consiste em dizer tudo a qualquer preço

falar demais 

sem o hábito de primeiro ponderar 

é volúpia verbal 

frequentemente 

de bem penosas consequências


sabedoria é 

perceber quando as palavras que falam 

são piores do que as palavras silenciosas 

retidas prudentemente na boca

ficar em silêncio para dar 

a um equívoco indiscernível

tempo disponível 

para ser absorvido pelo esquecimento

ao faltar comunicação ter  

a delicadeza instintiva 

de se abster da contenda gratuita


bom é sentir a graça infinita de 

levantar voo numa frase simples

feita de palavras respeitosas e doces 

que quebram trama no peito


conseguir escolher numa fração de segundo 

entre uma palavra ou outra a mais apropriada

alerta quanto ao pensamento dos outros mas

ainda mais quanto aos próprios pensamentos


mesmo sem saber até que ponto os pensamentos

conseguem ser revelados pelas palavras

evitar com tato não ser compreendido

visto que a compreensão torna a pessoa 

de alguma forma transmissível 

sem que ela perca necessariamente 

algo da pessoa que ela é


outrossim até uma frase pouco elucidativa 

pode transmitir compreensão

compreensão feita de palavras perdidas 

e palavras sem sentido 

pois muitas são as palavras perdidas 

por  serem mal ouvidas ou sequer ouvidas

palavras bem ditas ou palavras mal ditas 

não importa mas que foram ditas

e por conta do desdém 

não se costuma dar crédito 

ao milagre das palavras sem sentido


destarte exaurido pelo esforço 

de penosas contorções mentais 

passa-se a ter verdadeira ojeriza das palavras 

e se é levado a considerar que viver 

só vale a pena se for de forma visceral 

literalmente 

com o resto transformado 

num oco desprezível emaranhado

ignorante da essência do que se pretende dizer  

e afinal ter de se reconhecer vencido 

por este inconsequente jogo de palavras

 

domingo, 4 de abril de 2021

O ferro

o ferro

em seu estado original

combina com o oxigênio e

forma uma terra mineral 

que ocupa certas porções da crosta da Terra

é assim que o ferro quer

é assim que o ferro gosta

é assim que está bem para o ferro


o homem 

como único animal 

autodenominado de racional

no uso dessa tal razão

ardilosamente 

inventa mil maneiras de separar 

o ferro do oxigênio

rompendo casamento tão estável

é assim que o homem quer

é assim que o homem gosta

é assim que o homem acha que está bem pra ele


o ferro

submetido a esse humano artifício

se transforma num elemento apto

à produção dos mais diversos artefatos

chapas barras fios

com os quais por sua vez são fabricados

outros tantos objetos

veículos máquinas navios

portões grades edifícios


o homem

para atingir seu fim

principia 

derrubando florestas exuberantes

pondo abaixo belos montes 

cavando buracos profundos

depois 

solta na atmosfera 

que dá vida ao planeta 

volumes imensos de gases tóxicos

lança nas águas 

do meio ambiente 

milhões de litros de líquidos podres   

joga em aterros 

ditos sanitários 

milhares de toneladas de sólidos estéreis

finalmente

mercadeja 

usa 

abusa 

de todos os artefatos e objetos fabricados

para construir obras

algumas úteis 

outras perfeitamente dispensáveis

algumas portadoras de certa beleza 

de outras não se pode dizer o mesmo com certeza


o ferro

a princípio

aceita toda essa situação e

obedece aos caprichos do bicho homem

mas com o tempo

pouco a pouco

com perseverança

lentamente

sem jamais perder a esperança

de voltar a ser feliz como fora um dia

ele vai restabelecendo 

sua antiga união com o oxigênio 

para voltar à condição original  

agora na forma de ferrugem

apesar de não ser a vontade do homem

apesar de tantos sacrifícios

apesar de tantos desperdícios

apesar de tantos malefícios

é assim que o ferro quer

é assim que o ferro gosta

é assim que o ferro fica 

domingo, 28 de março de 2021

O céu da cidade

quando eu era criança

a gente olhava pro céu à noite

em quase qualquer ponto da cidade

e via um espetáculo deslumbrante


o cruzeiro-do-sul 

guia de tantos navegadores

desbravadores no passado


orion

o gigante caçador com seu cinturão

as singelas três marias

sirius magnífica 

a mais brilhante de todas no firmamento

as plêiades

entre nós carinhosamente

a galinha e os sete pintinhos


marte

o planeta vermelho

com seus misteriosos canais

visíveis mesmo com um bom binóculo

a suscitar acaloradas discussões

haveria vida em marte  

seriam os marcianos verdes


a via láctea

era uma das galáxias mais importantes

com suas miríades de estrelas 

em noite escura sem lua

a faiscar aos nossos olhos atônitos


o universo 

se abria profundo

sobre nossas cabeças

aparentemente estático

num espetáculo maravilhoso 

misterioso que nos provocava

assombro arrepio na espinha

que nos obrigava a reconhecer 

nossa insignificância e 

a presença da mão divina  


hoje

transcorridas algumas décadas

eu me transformei num velho

que encolhe a cada dia que passa

mas o universo ganhou nova vida 

ficou muito mais amplo e complexo


a via láctea coitadinha

não passa de uma mísera galaxiazinha

perdida na imensidão sem fim do espaço 

com uns míseros milhões de estrelas 

dentre milhares de milhões de outras galáxias

que contêm bilhões de estrelas


e tudo começou 

pelo que dizem os entendidos

com uma grande explosão  

batizada de big bang

que mandou para os ares

toda matéria existente no mundo

que estava concentrada integralmente

num único ponto infinitesimal   

há quinze bilhões de anos quando

o universo passou a se expandir

e nunca mais vai parar de crescer

ficando mais e mais rarefeito até desaparecer

devido a uma energia escura 

resultante de uma força antigravidade

ufa mal consigo respirar

todos esses inacreditáveis conhecimentos

têm sido obtidos a partir de experimentos

com equipamentos de altíssima tecnologia  

e uma caríssima conta para pagar  

aliados a teorias científicas geniais 

e complexidade matemática tais

que até deus se veria em apuro

se tentasse entendê-las no duro


é o progresso que só quer ir em frente

não admite em hipótese alguma retrocesso

é o crescimento estupefaciente

ânsia inexaurível do ser humano


pena que agora

ninguém olha mais pro céu

não dá tempo

com o corre-corre da vida moderna

e se por acaso 

quando à noite a gente olha 

pro céu da cidade 

mal consegue enxergar

uma ou outra estrelinha fraquinha   

aqui ali a brilhar

o que se vê é um embaçado cinzento

tendendo a um escuro carvão

resultante do progresso acachapante

progenitor de tanta poluição

domingo, 21 de março de 2021

Não me interpreteis mal por favor

meu cinismo

se achais que há algum cinismo nisto

não é para vos ofender por favor

meu cinismo se acaso houver é para vos alegrar

como faz o palhaço

um piparote na cara

uma careta ridícula

uma cambalhota no ar

uma queda espalhafatosa

tudo só para vos divertir

divertir os outros é um dos

modos mais nobres de existir

é um gesto de amor 

de puro amor acreditai

se houver alguma dificuldade

com essa questão do amor

podemos alterar a abordagem

não vamos nos exacerbar por favor

nada de ressentimentos por favor

não é preciso perder o juízo 

pensar em litígio por deus

nada de exageros

é preciso ter escrúpulos

vamos aproveitar pessoal

é um direito que temos afinal

curta é a vida longa é a morte


domingo, 14 de março de 2021

Meu corpo

quem diria que 

a junção daquele óvulo 

de quem viria a ser

minha futura mãe

com aquele espermatozoide 

de quem viria a ser

meu futuro pai

naquele coito tão remoto

resultaria nisto que

hoje 

diante desta tela de computador

cumprindo seu duro fado

vos enfada 

com este palavrório foda


esta carcaça decrépita 

de pele encarquilhada

cobrindo carnes flácidas 

agarradas em desespero

a frágeis ossos porosos

sustentando variadas vísceras 

velhas e viscosas

esta carcaça ambulante

produtora de desagradáveis odores

pelos poros dos pés das axilas 

pela boca pelo ânus


esta carcaça angustiosa 

que  pratica o mal sem hesitar

usa máscara de sério 

pra cobrir miolo salafrário

tem desejos fúteis e prazeres pobres

que lhe trazem alegrias sofrimentos 

anseios e frustrações 


um animal natural

tremendo depredador

um animal social 

tremendo egoísta


um exemplar corriqueiro 

do misterioso fenômeno

denominado vida

apenas mais um cadáver adiado

que no caso não mais procria

domingo, 7 de março de 2021

Lento divagar vespertino

se tudo está redondo e realizado com dignidade  

na tarde clara o ar suave provoca um leve arrepio

e a teimosia azul do céu é quase uma dádiva nada 

surpreende sentir um pouco de branda tristeza e

uma sem razão vontade de um vão filosofar


quando uma pessoa decente falha

passa logo a ser olhada de soslaio

vira uma ameaça para os outros é a

tirania do bando de pronto operando


para se estar apto a amar os outros

é preciso primeiro a si próprio amar  

chegar até si mesmo antes para 

depois poder os outros encontrar 


abandonar a arrogância a ganância

olhar de igual para igual o outro

sem que isso implicasse ofensa mútua

utópica redenção da natureza humana


se o amor está enraizado profundo o 

coração bate tranquilo tudo se enche de graça 

menos desprezível a gente acaba se sentindo 

aumenta a coragem para continuar ir vivendo  


o primeiro passo para uma boa reconstrução

é a reforma de si mesmo como pessoa

recuperar o respeito pela própria vida

para respeitar a vida que há nos outros


quando uma pessoa se respeita pode olhar  

os outros nos olhos sem constrangimento

mas principalmente o que é mais importante

pode se olhar no espelho sem vergonha

 

domingo, 28 de fevereiro de 2021

Júbilo

arrogante andava pelo mundo 

como se soubesse para onde ia

imbuído da pretensão própria 

dos que por terem saciado a sede

em seca fonte de árido saber

acham que tudo sabem da vida 

sem perceber que abrigado 

pela nudez aguda da incompreensão 

estava embaraçadamente entregue 

ao recurso solitário de mim mesmo


incapaz  de ver a transparência da verdade tornada

tão inassimilável quanto o azul imaginário do céu

nem de captar o rumo dado pela plenitude do silêncio 

usava como bússola para obter orientação arraigado  

desamparo tendo como arma apenas o fato de estar vivo


a luta dura e sutil ameaçava prolongar-se indefinidamente

com a avidez que vai formando o destino dos instantes   

para conquistar  vãs ilusões perseguidas a vida inteira

iluminadas por intensa clarividência vazia e rasteira


mas como se por acaso fosse alcançada a mais profunda 

realidade o coração voltasse a bater outra vez esperançoso

e uma luz radiante transcendesse todo o mistério era de

novo possuído por uma atmosfera de vertiginoso júbilo

 

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Inventário

de manhã

cometo um quase suicídio

ao deixar a lâmina de barbear

escorregar mal pelo pescoço 


de tarde

sofro o tempo todo de azia

ao tentar levar avante o bolo 

estomacal resultante do almoço


de noite

sinto o peso do lençol sobre o corpo

ao procurar conciliar no sono visão

espectral carregando meu sonho de alvoroço


resultado

nonada

mais um dia riscado

do meu calendário

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Inútil procura

como quando num sonho acordado

de repente nascesse um vago desejo 

de tentar ao menos remotamente 

entender o que está acontecendo 

conseguisse distinguir apenas vultos 

sob uma luz amarelada que se esvai

ainda assim procurasse divisar

desesperadamente 

ao menos um rosto na penumbra que 

fornecesse algum mínimo indício 

o próprio desespero dificultasse a procura

fosse capaz de captar somente que

o tom geral é de completo descontrole 

e

sentisse entrementes um círculo  

se fechando em torno obrigando 

a ficar imóvel com cara de tacho

parecendo não poder mais contar 

com o auxílio nem do pensamento  

e

a zoeira do sangue nos ouvidos

impedindo de perceber palavras 

e

ao mesmo tempo a desordem interna 

deixando como agudo alerta  

que o vago desejo se perdera no vácuo

e

concluísse que nada disso tudo poderia ser real

 

domingo, 7 de fevereiro de 2021

Fuga

ainda que não sendo
embora 
não se possa afiançar
que
talvez 
de fato
não queira ser
quem sabe

permanece
parado à porta do tempo
que
entretanto
impassível implacável
não para de passar
sequer
um mínimo instante
que seja

sem propósito
aguarda a vez do impossível
que
gratuito espera
há de vir um dia
em imaginária realidade
enquanto 
vai indagando ao vago
como captar inacessíveis certezas

tem o poder 
de esgotar os planos
antes mesmo 
de os haver planejado

incapaz de
iniciar o primeiro passo para a ação
só sabe pensar o mundo 
através de frases fáceis
feitas de massa irreal
que 
arranham a pele do ar
cravam com agudas unhadas
o cerne do nada

arvora-se senhor da
previsão clara do depois
que
perplexo 
descobre sempre
em estado de saturação
passando a degustar de antemão
o amargo sabor da derrota
sem nem ao menos esboçar 
um mínimo sinal de luta

domingo, 31 de janeiro de 2021

Epifania

em um instante se nasce

em um instante se morre

entre esses dois instantes

uma sucessão de instantes 

bastantes para passar uma vida inteira


antes mergulhado em amorfa escuridão 

de repente em primeira mão

vir à tona e inquietantemente se sentir

com um modo arrebatado de se reconhecer

e supor compreender o sentido próprio de tudo

pretendendo se tornar o próprio sentido de tudo

como se alguma coisa parecendo dizer alguma coisa

provocasse o desvelar de seu obscuro significado

como se o futuro estivesse ali todinho definido

e houvesse autonomia para decidir 

ser aquele e não outro o destino

como se uma lei obrigasse haver

consciência de estar vivendo


depois mergulhar de novo na escuridão

restando apenas talvez o sentimento 

da inutilidade de ter emergido

 

domingo, 24 de janeiro de 2021

De pernas pro ar

francamente

não sei o que se passa

com esse mundo progressoso

tão cheio de ciência e desenvolvimento


as pessoas só querem saber de consumismo

é gastação a dar com pau banho de shopping 

alguma coisa até de certa utilidade

a maioria tranqueirada perfeitamente dispensável


é o sistema que assim exige impõe esta necessidade

não se pode parar de pedalar a bicicleta entendeu

enrascada muito boa esta em que a gente se meteu


humanidade por seu lado é artigo cada vez mais raro

diante dos fatos pra falar com toda a clareza

este mundo está mesmo de pernas pro ar


domingo, 17 de janeiro de 2021

Digressão tautológica

a morte apenas a conheceremos 

senão quando ela nos ocorrer

não é preciso muita audácia

para se conseguir tal fato compreender

vai ver que não queremos morrer 

por não entendermos a morte

dizem que só poucos privilegiados 

conseguem aceitar o mistério da morte

então só esses privilegiados 

é que deviam morrer assim me parece justo

talvez uma maneira de encarar a situação 

seja admitir que a partir do 

momento que temos um corpo 

esse corpo tem vocação para viver mas

seu destino inelutável 

destino que nos ultrapassa

é um dia desaparecer

para que isso possa acontecer 

precisamos morrer 

domingo, 10 de janeiro de 2021

Filantropismo

 quando um alguém tem

vontade de fazer um bem para um outrem 

esse alguém quer praticar filantropia para o outrem

um dicionário da nossa língua pátria é quem

vem com esse nhe-nhe-nhem


quando então esse alguém 

pratica certo bem para o outrem

pode haver benefício para o outrem 

ainda que restritamente vejam bem

do ofertado bem


ocorre porém que também

o gozo do bem pelo alguém

costuma ser maior e melhor que o do outrem

por ter o alguém condição de oferecer o bem

amém

domingo, 3 de janeiro de 2021

Amor visceral

quando a gente faz amor 

e você se entrega toda a mim

e me diz cheia de volúpia

vem me come

e eu obediente faço 

o que você me manda

na verdade ao lhe penetrar 

não sou eu quem lhe come 

mas eu é que sou comido 

deglutido 

digerido 

e me incorporo em 

seu sangue  

seus ossos 

seus músculos

sua pele 

suas entranhas 

e passo a fazer parte de

seus pensamentos 

seus movimentos

e me transformo em você


quando a gente faz amor

eu não sou eu

quando a gente faz amor

eu sou você

antes e depois também