1.
Introdução
Alcorão
significa na língua árabe “a leitura”, “a recitação” e deve ser entendido como
sendo a palavra de Allah, Deus,
revelada ao profeta Muhammad. A recitação é uma forma de adoração a Allah, composta de cento e catorze
capítulos, suratas ou suras, sendo a primeira a da Abertura e a última a dos
Humanos (Isbelle, 2003:3). O islã ou
islamismo, que significa submissão voluntária a vontade de Deus, é a
religião dos seguidores do Alcorão,
chamados islamitas ou muçulmanos, isto é, crentes em Deus (Vernet, 2004:11)
(1). O islã distingue os povos que têm um livro revelado de escritura santa
daqueles que não o possuem. Quatro são os livros sagrados: a Tora e os Salmos, do judaísmo; o Evangelho
do cristianismo e o Alcorão do
islamismo. Os porta-vozes de Allah
são os profetas. O Alcorão conta com
vinte o oito profetas dentre os quais os cinco principais são: Noé, Abraão,
Moisés, Jesus e Muhammad. Abraão é o primeiro monoteísta, ancestral dos judeus
e dos árabes; Moisés foi o guia severo de seu povo; Jesus aquele capaz de curar
os doentes e ressuscitar o morto; Muhammad é a combinação ideal da força de
Moisés com a ternura de Jesus, tem o poder encantador da palavra, imbuído da
aura de guerreiro e anunciador do juízo final. Ele é o derradeiro profeta tendo
recebido a revelação completa que corrigiu as revelações anteriores (Lucchesi,
2002:52-54).
Jesus
ocupa um lugar único entre os profetas do islã: nasceu de uma virgem (2),
constitui-se em figura quase sobre-humana que operou grandes maravilhas pelo
poder de Deus, mas as doutrinas centrais do cristianismo são postas de lado
pelo islã (Williams, 1964:22-23). Analisemos alguns desses aspectos.
2. O
nascimento de Jesus
Jesus nasceu do ventre de uma mulher virgem,
Maria:
45. E quando os anjos disseram: “Ó Maria, Allah te anuncia o Seu Verbo,
cujo nome será o Messias (3), Jesus,
filho de Maria, nobre neste mundo e no outro, e que se contará entre os
próximos de Allah.
46.Falará aos homens, ainda no berço, bem como
na maturidade, e se contará entre os virtuosos.”
47.
Perguntou: “Ó Senhor meu, como poderei
ter um filho, se mortal algum jamais me tocou?” Disse-lhe o anjo: Assim será. Allah cria o que deseja, posto
que quando decreta algo, basta dizer: Seja!
e é.” (AS, III, 80) (4).
Em outra passagem do Alcorão, ainda
tratando do nascimento de Jesus, podemos ler que Maria, grávida, embora virgem,
separa-se de sua família e refugia-se num local afastado. Um anjo assumindo a
forma de um homem aparece diante dela assustando-a:
18. Ela exclamou: “Guardo-me de ti no Clemente, se és que
temes a Allah.”
19. Explicou-lhe: “Sou tão-somente o mensageiro do teu Senhor,
para agraciar-te com um filho imaculado.”
20.
Disse-lhe: “Como poderei ter um filho, se
nenhum homem me tocou e jamais deixei de ser casta?”
21.
Disse-lhe: “Assim será, porque teu Senhor
disse: Isso Me é fácil! E faremos disso
um sinal para os homens, e será uma prova de Nossa misericórdia.” E foi
uma ordem decretada. (AS, XIX, 365-366)
A face humana de Maria, diante de
situação tão embaraçosa e de tamanho sofrimento físico, sem poder contar com o
amparo de sua família, revela-se no
versículo:
23. As dores do parto a
constrangeram a refugiar-se junto a uma tamareira. Disse: “Oxalá eu tivesse morrido antes disto, ficando completamente
esquecida!” (AS, XIX, 366)
Ela, contudo não está só:
24. Porém, chamou-a uma voz, debaixo
dela: “Não te atormentes, porque teu
Senhor fez correr um riacho a teus pés!
25. E sacode o tronco da tamareira, de onde
cairão sobre ti tâmaras maduras e frescas.
26. Come, pois, bebe e consola-te... (AS, XIX, 366-367)
Podemos comparar essas passagens com
as equivalentes da Bíblia católica:
26. No sexto mês, o anjo Gabriel foi
enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, 27 a uma virgem desposada com
um homem que se chamava José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria. 28
Entrando, o anjo disse-lhe: “Ave, cheia
de graça, o Senhor é contigo.” 29 Perturbou-se ela com estas palavras e
pôs-se a pensar no que significaria semelhante saudação.
30. O anjo disse-lhe: “Não temas, Maria, pois encontraste graça
diante de Deus. 31 Eis que conceberás
e darás à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus. 32 Ele será grande e chamar-se-á Filho do
Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi; e reinará
eternamente na casa de Jacó, 33 e o
seu reino não terá fim.” 34 Maria perguntou ao anjo: “Como se fará isso, pois não conheço homem?” 35 Respondeu-lhe o
anjo: “O Espírito Santo descerá sobre ti,
e a força do Altíssimo te envolverá com a sua sombra. Por isso o ente santo que
nascer de ti será chamado Filho de Deus.” (Evangelho segundo São Lucas, 1,
26-35, Bíblia Sagrada (BS), 1994: 1345-1346).
No Evangelho segundo São Mateus, 1,
18-25 (BS, 1285) podemos ler:
18. Eis como nasceu Jesus Cristo:
Maria, sua mãe, estava desposada com José. Antes de coabitarem, aconteceu que
ela concebeu por virtude do Espírito Santo. 19 José, seu esposo, que era homem
de bem, não querendo difamá-la, resolveu rejeitá-la secretamente. 20 Enquanto assim
pensava, eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: “José, filho de Davi, não temas receber
Maria por esposa, pois, o que nela foi concebido vem do Espírito Santo. 21 Ela dará à luz um filho, a quem porás o
nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo de seus pecados.” Tudo isto
aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor falou pelo profeta: 23 “Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um
filho, que se chamará Emanuel” ((Is 7,14) que significa – Deus conosco). 24 Despertando, José fez
como o anjo do Senhor lhe havia mandado e recebeu em sua casa sua esposa. 25 E,
sem que ele a tivesse conhecido, ela deu à luz o seu filho, que recebeu o nome
de Jesus.
José, esposo de Maria, não aparece
no Alcorão, que privilegia e enaltece
a figura de Maria, cujo nascimento, genealogia e alguns detalhes de sua vida
são tratados nas suras III, vv. 33-37 e vv. 42-44 e sura XIX (5).
3. Jesus
mensageiro de Allah
Sob o ponto de vista do texto
corânico, Jesus não é considerado filho de Allah.
Ele é um profeta. Um profeta especial, concebido de uma maneira insólita, pela
vontade expressa de Allah, mas um
profeta como tantos outros que o precederam e o sucederam, até culminar no
derradeiro profeta, Muhmmad:
49. E (Jesus) será um mensageiro
para os israelitas...
50. “(Eu vim) (Jesus) para
confirmar-vos a Tora, que vos chegou antes de mim, e para liberar-vos algo que
vos estava vedado. Eu vim com um sinal do vosso Senhor. Temei a Allah, pois, e
obedecei-me
51.
Sabei que Allah é meu Senhor e o vosso.
Adorai-o, pois. Essa é a senda reta.”(AS, III, 80-81)
171.
Ó adeptos do Livro, não exagereis em vossa religião e não digais de Allah senão a verdade. O Messias, Jesus,
filho de Maria, foi tão-somente um mensageiro de Allah e o Seu Verbo, que Ele enviou à Maria, e um Espírito d’Ele.
Crede, pois, em Allah e em Seus
mensageiros e não digais: Trindade! (6) Abstende-vos disso, que será melhor
para vós; sabei que Allah é Uno.
Glorificado seja! Longe está a hipótese de ter tido um filho. A Ele pertence
tudo quanto há nos céus e na terra, e Allah
é mais do que suficiente Guardião. (AS, IV, 138)
17.
São blasfemos aqueles que dizem: “Allah é
o Messias, filho de Maria.” Dize-lhes: “Quem
possuiria o mínimo poder para impedir que Allah, assim querendo, aniquilasse o
Messias, filho de Maria, sua mãe e todos os que estão na terra? Só a Allah
pertence o Reino dos céus e da terra, e tudo quanto há entre ambos. Ele cria o
que Lhe apraz, porque é Onipotente.” (AS, V, 146)
46.
E depois deles (profetas), enviamos Jesus, filho de Maria, corroborando a Tora
que o precedeu; e lhe concedemos o Evangelho, que encerra orientação e luz,
corroborante do que foi revelado na Tora, e orientação e exortação para os
tementes. (AS, V, 153)
72.
São blasfemos aqueles que dizem: “Allah é
o Messias, filho de Maria,” ainda quando o mesmo Messias disse: “Ó israelitas, adorai a Allah, Que é meu
Senhor e vosso.” A quem atribuir parceiros a Allah, ser-lhe-á vedada a
entrada no Paraíso e sua morada será o Fogo Infernal! Os injustos jamais terão
socorredores. (AS, V, 158)
75.
O Messias, filho de Maria, não é mais do que um mensageiro, do nível dos
mensageiros que o precederam; e sua mãe era sinceríssima. Ambos se sustentavam
de alimentos terrenos... (AS, V, 158)
6.
(Recorda-te) E de quando Jesus, filho de Maria, disse: “Ó israelitas, em verdade, sou o mensageiro de Allah, enviado a vós,
corroborante de tudo quanto a Tora antecipou no tocante às predições, e
alvissareiro de um Mensageiro que virá depois de mim, cujo nome será Ahmad! (7) Entretanto, quando lhes foram
apresentadas as evidências, disseram: “Isto
é pura magia!” (AS, LXI, 670)
4. A morte de
Jesus
A morte de Jesus está envolta em
mistério, tanto quanto o seu nascimento. Pela doutrina cristã, Jesus foi morto
por crucificação, a pedido dos judeus, após julgamento por tribunal romano em Jerusalém. O Alcorão não aceita
essas idéias:
157. (os judeus serão castigados) E
por dizerem: “Matamos o Messias, Jesus,
filho de Maria, o mensageiro de Allah”, embora não sendo, na realidade,
certo que o mataram, nem o crucificaram, mas o confundiram com outro. E aqueles
que discordam quanto a isso estão na dúvida, porque não possuem conhecimento
algum, mas apenas conjecturas para seguir; porém, certamente, não o mataram.
(AS, IV, 136)
A ascensão de Jesus aos céus, após
sua morte – conforme podemos ler no Evangelho segundo São Lucas (24, 50-51)
(BS, 1383): 50 Depois (Jesus) os levou (os onze apóstolos) para Betânia e,
levantando as mãos, os abençoou. 51 Enquanto os abençoava, separou-se deles e
foi arrebatado ao céu. – é aceita pela Alcorão:
158. Mas Allah fê-lo ascender até Ele, porque é Poderoso, Prudentíssimo (AS,
IV, 136)
5.
Considerações finais
De acordo com a doutrina do islã,
Jesus entra na categoria dos profetas e como tal deve obedecer aos traços
principais do modelo de profeta: enviado de Deus para pregar um monoteísmo
estrito, simples criatura como as demais, ensina o que os outros profetas que o
antecederam ensinaram e anuncia a vinda de um novo profeta: o profeta Muhammad.
Goza, porém, de uma posição relevante dentro do Livro, tendo sido sua concepção
uma vontade expressa de Allah, por
meio de uma mulher muito especial, Maria.
Jesus não traz nenhuma novidade
dogmática que não tenha sido trazida pelos profetas que o precederam, e nada a
mais do que trará Muhammad em seguida. “A mensagem religiosa de todos os
profetas é a mesma e, nesse campo, Adão tinha tanto conhecimento quanto Jesus
ou Mohammad.” (Jomier, op. cit., 192)
Jesus foi enviado por Allah para colocar novamente os judeus
no caminho da verdade, do qual se haviam afastado. Como a missão de Jesus não foi, infelizmente,
completada inteiramente a contento, Allah
deve de enviar Muhammad para, finalmente, colocar judeus, cristãos, ateus e
outros, na senda reta. O derradeiro profeta revelou então a única e verdadeira
fonte de alimentação doutrinária religiosa e de vida do homem: o Alcorão.
Notas
1.
Alcorão.
Tradução de Américo de Carvalho. Portugal, Publicações Europa-América, Ltda,
2002, Parte 1, p. 13.
2.
Jesus é o filho de Maria, que é o único nome
feminino mencionado explicitamente no Alcorão.
As outras mulheres não são nomeadas, são ditas: mulher de Adão, mulheres de
Abraão, mulheres de Jacó etc. (Le Coran.
Tradução de D. Masson. Paris, Gallimard, 1967, p. LIII. A sura XIX é dedicada à
Maria.
3.
Messias é a forma hebraica e árabe de Massih, Christos em grego, e que quer dizer “o ungido”, aquele que foi
sagrado, ou consagrado, simbolismo indicador do seu destino especial (AS, p.
80). “O título de Messias é explicado de diferentes maneiras pelos comentaristas,
mas para o conjunto dos fiéis é um título de honra, sem as ressonâncias que
tinha na Escritura Sagrada.” (Jomier, 1992:201).
4.
A notação (AS) indica a obra: O significado dos versículos do Alcorão
Sagrado, na tradução do Prof. Samir El Hayek; o número em algarismos
romanos indica a respectiva sura, o em arábicos (dentro do parêntese) a página
do livro; fora do parêntese (antecedendo cada frase), o número do versículo da
sura.
5.
Maria era filha de Imran, descendente de Davi e
de Abraão, e foi educada por Zacarias, seu primo, pai de João Batista.
6. Jesus
foi criado pela Palavra de Allah “Sê”(Kun), um espírito procedente de Allah, mas não diretamente por Allah. Assim a doutrina da Trindade:
Pai-Filho-Espírito Santo, em
que Jesus é filho único de Deus, gerado pelo Espírito Santo é
repudiada pelo Alcorão.
7. “Ahmad” ou “Muhammad”, o louvado, “alguém chamado em auxílio de outro” seria o
último profeta, por meio do qual o Alcorão
foi revelado. “Ahmad” equivaleria a
“Periclytos”, “Intercessor”, em
grego. Essa passagem do Alcorão
estabelece uma ligação com o Evangelho segundo São João na passagem (15, 26):
(Jesus falando) “Quando vier o Paráclito,
que vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da Verdade, que procede do Pai,
ele dará testemunho de mim.”
Bibliografia
Alcorão. Tradução de Américo de Carvalho.
Portugal: Publicações Europa-América, Lda, Partes 1 e 2, 2002.
Bíblia Sagrada. Tradução pelo Centro Bíblico
Católico a partir de versão dos Monges de Maredsous. Revisão de Frei João José
Pedreira de Castro, O.F.M. 90ª ed. São Paulo: Editora Ave-Maria
Ltda., 1994.
ISBELLE,
Munzer Armed. Sob as luzes do Alcorão. Rio
de Janeiro: Azaan, 2003.
JOMIER,
Jacques. Islamismo: história e doutrina.
Tradução de Luiz João Baraúna. Petrópolis:
Vozes, 1992.
Le Coran. Préface par J. Grosjean. Introduction, traduction et
notes par D. Masson. Paris:
Gallimard, 1967.
LUCCHESI,
Marco (org.). Caminhos do Islã.
Tradução: Ana Thereza Vieira, Cynthia Marques de Oliveira e Sérgio Guimarães.
Rio de Janeiro: Record, 2002.
O significado dos versículos do Alcorão Sagrado com
comentários. Tradução do Prof. Samir El Hayek. São Paulo: MarsaM Editora
Jornalística Ltda, 11ª ed., 2001.
VERNET,
Juan. As origens do islã. Tradução
Maria Cristina Cupertino; revisão técnica Mamede Mustafa Jarouche. São Paulo:
Globo, 2004.
WILLIAMS,
John Alden. Islamismo. Tradução e
notas de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1964.
(em “Ensaios
Desnecessários” – inédito)