domingo, 5 de abril de 2015

A presença de Jesus no Alcorão

1.      Introdução

            Alcorão significa na língua árabe “a leitura”, “a recitação” e deve ser entendido como sendo a palavra de Allah, Deus, revelada ao profeta Muhammad. A recitação é uma forma de adoração a Allah, composta de cento e catorze capítulos, suratas ou suras, sendo a primeira a da Abertura e a última a dos Humanos (Isbelle, 2003:3). O islã ou  islamismo, que significa submissão voluntária a vontade de Deus, é a religião dos seguidores do Alcorão, chamados islamitas ou muçulmanos, isto é, crentes em Deus (Vernet, 2004:11) (1). O islã distingue os povos que têm um livro revelado de escritura santa daqueles que não o possuem. Quatro são os livros sagrados: a Tora e os Salmos, do judaísmo; o Evangelho do cristianismo e o Alcorão do islamismo. Os porta-vozes de Allah são os profetas. O Alcorão conta com vinte o oito profetas dentre os quais os cinco principais são: Noé, Abraão, Moisés, Jesus e Muhammad. Abraão é o primeiro monoteísta, ancestral dos judeus e dos árabes; Moisés foi o guia severo de seu povo; Jesus aquele capaz de curar os doentes e ressuscitar o morto; Muhammad é a combinação ideal da força de Moisés com a ternura de Jesus, tem o poder encantador da palavra, imbuído da aura de guerreiro e anunciador do juízo final. Ele é o derradeiro profeta tendo recebido a revelação completa que corrigiu as revelações anteriores (Lucchesi, 2002:52-54).
Jesus ocupa um lugar único entre os profetas do islã: nasceu de uma virgem (2), constitui-se em figura quase sobre-humana que operou grandes maravilhas pelo poder de Deus, mas as doutrinas centrais do cristianismo são postas de lado pelo islã (Williams, 1964:22-23). Analisemos alguns desses aspectos.

2. O nascimento de Jesus

             Jesus nasceu do ventre de uma mulher virgem, Maria:
            45. E quando os anjos disseram: “Ó Maria, Allah te anuncia o Seu Verbo, cujo nome será o Messias (3), Jesus, filho de Maria, nobre neste mundo e no outro, e que se contará entre os próximos de Allah.
            46.Falará aos homens, ainda no berço, bem como na maturidade, e se contará entre os virtuosos.”
            47. Perguntou: “Ó Senhor meu, como poderei ter um filho, se mortal algum jamais me tocou?” Disse-lhe o anjo: Assim será. Allah cria o que deseja, posto que quando decreta algo, basta dizer: Seja! e é.” (AS, III, 80) (4).
            Em outra passagem do Alcorão, ainda tratando do nascimento de Jesus, podemos ler que Maria, grávida, embora virgem, separa-se de sua família e refugia-se num local afastado. Um anjo assumindo a forma de um homem aparece diante dela assustando-a:
            18. Ela exclamou: “Guardo-me de ti no Clemente, se és que temes a Allah.”
            19. Explicou-lhe: “Sou tão-somente o mensageiro do teu Senhor, para agraciar-te com um filho imaculado.”
            20. Disse-lhe: “Como poderei ter um filho, se nenhum homem me tocou e jamais deixei de ser casta?”
            21. Disse-lhe: “Assim será, porque teu Senhor disse: Isso Me é fácil! E faremos disso um sinal para os homens, e será uma prova de Nossa misericórdia. E foi uma ordem decretada. (AS, XIX, 365-366)
            A face humana de Maria, diante de situação tão embaraçosa e de tamanho sofrimento físico, sem poder contar com o amparo de sua família,   revela-se no versículo:
            23. As dores do parto a constrangeram a refugiar-se junto a uma tamareira. Disse: “Oxalá eu tivesse morrido antes disto, ficando completamente esquecida!” (AS, XIX, 366)
            Ela, contudo não está só:
            24. Porém, chamou-a uma voz, debaixo dela: “Não te atormentes, porque teu Senhor fez correr um riacho a teus pés!
            25. E sacode o tronco da tamareira, de onde cairão sobre ti tâmaras maduras e frescas.
            26. Come, pois, bebe e consola-te...  (AS, XIX, 366-367)

            Podemos comparar essas passagens com as equivalentes da Bíblia católica:
            26. No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, 27 a uma virgem desposada com um homem que se chamava José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria. 28 Entrando, o anjo disse-lhe: “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo.” 29 Perturbou-se ela com estas palavras e pôs-se a pensar no que significaria semelhante saudação.
            30. O anjo disse-lhe: “Não temas, Maria, pois encontraste graça diante de Deus. 31 Eis que conceberás e darás à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus. 32 Ele será grande e chamar-se-á Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi; e reinará eternamente na casa de Jacó, 33 e o seu reino não terá fim.” 34 Maria perguntou ao anjo: “Como se fará isso, pois não conheço homem?” 35 Respondeu-lhe o anjo: “O Espírito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo te envolverá com a sua sombra. Por isso o ente santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus.” (Evangelho segundo São Lucas, 1, 26-35, Bíblia Sagrada (BS), 1994: 1345-1346).

            No Evangelho segundo São Mateus, 1, 18-25 (BS, 1285) podemos ler:
            18. Eis como nasceu Jesus Cristo: Maria, sua mãe, estava desposada com José. Antes de coabitarem, aconteceu que ela concebeu por virtude do Espírito Santo. 19 José, seu esposo, que era homem de bem, não querendo difamá-la, resolveu rejeitá-la secretamente. 20 Enquanto assim pensava, eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: “José, filho de Davi, não temas receber Maria por esposa, pois, o que nela foi concebido vem do Espírito Santo. 21 Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo de seus pecados.” Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor falou pelo profeta: 23 “Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um filho, que se chamará Emanuel” ((Is 7,14) que significa – Deus conosco). 24 Despertando, José fez como o anjo do Senhor lhe havia mandado e recebeu em sua casa sua esposa. 25 E, sem que ele a tivesse conhecido, ela deu à luz o seu filho, que recebeu o nome de Jesus.

            José, esposo de Maria, não aparece no Alcorão, que privilegia e enaltece a figura de Maria, cujo nascimento, genealogia e alguns detalhes de sua vida são tratados nas suras III, vv. 33-37 e vv. 42-44 e sura XIX (5).

3. Jesus mensageiro de Allah

            Sob o ponto de vista do texto corânico, Jesus não é considerado filho de Allah. Ele é um profeta. Um profeta especial, concebido de uma maneira insólita, pela vontade expressa de Allah, mas um profeta como tantos outros que o precederam e o sucederam, até culminar no derradeiro profeta, Muhmmad:
            49. E (Jesus) será um mensageiro para os israelitas...
            50. “(Eu vim) (Jesus) para confirmar-vos a Tora, que vos chegou antes de mim, e para liberar-vos algo que vos estava vedado. Eu vim com um sinal do vosso Senhor. Temei a Allah, pois, e obedecei-me
51. Sabei que Allah é meu Senhor e o vosso. Adorai-o, pois. Essa é a senda reta.”(AS, III, 80-81)
171. Ó adeptos do Livro, não exagereis em vossa religião e não digais de Allah senão a verdade. O Messias, Jesus, filho de Maria, foi tão-somente um mensageiro de Allah e o Seu Verbo, que Ele enviou à Maria, e um Espírito d’Ele. Crede, pois, em Allah e em Seus mensageiros e não digais: Trindade! (6) Abstende-vos disso, que será melhor para vós; sabei que Allah é Uno. Glorificado seja! Longe está a hipótese de ter tido um filho. A Ele pertence tudo quanto há nos céus e na terra, e Allah é mais do que suficiente Guardião. (AS, IV, 138)
17. São blasfemos aqueles que dizem: “Allah é o Messias, filho de Maria.” Dize-lhes: “Quem possuiria o mínimo poder para impedir que Allah, assim querendo, aniquilasse o Messias, filho de Maria, sua mãe e todos os que estão na terra? Só a Allah pertence o Reino dos céus e da terra, e tudo quanto há entre ambos. Ele cria o que Lhe apraz, porque é Onipotente.” (AS, V, 146)
46. E depois deles (profetas), enviamos Jesus, filho de Maria, corroborando a Tora que o precedeu; e lhe concedemos o Evangelho, que encerra orientação e luz, corroborante do que foi revelado na Tora, e orientação e exortação para os tementes. (AS, V, 153)
72. São blasfemos aqueles que dizem: “Allah é o Messias, filho de Maria,” ainda quando o mesmo Messias disse: “Ó israelitas, adorai a Allah, Que é meu Senhor e vosso.” A quem atribuir parceiros a Allah, ser-lhe-á vedada a entrada no Paraíso e sua morada será o Fogo Infernal! Os injustos jamais terão socorredores. (AS, V, 158)
75. O Messias, filho de Maria, não é mais do que um mensageiro, do nível dos mensageiros que o precederam; e sua mãe era sinceríssima. Ambos se sustentavam de alimentos terrenos... (AS, V, 158)
6. (Recorda-te) E de quando Jesus, filho de Maria, disse: “Ó israelitas, em verdade, sou o mensageiro de Allah, enviado a vós, corroborante de tudo quanto a Tora antecipou no tocante às predições, e alvissareiro de um Mensageiro que virá depois de mim, cujo nome será Ahmad! (7) Entretanto, quando lhes foram apresentadas as evidências, disseram: “Isto é pura magia!” (AS, LXI, 670)

4. A morte de Jesus

            A morte de Jesus está envolta em mistério, tanto quanto o seu nascimento. Pela doutrina cristã, Jesus foi morto por crucificação, a pedido dos judeus, após julgamento por tribunal romano em Jerusalém. O Alcorão não aceita essas idéias:
            157. (os judeus serão castigados) E por dizerem: “Matamos o Messias, Jesus, filho de Maria, o mensageiro de Allah”, embora não sendo, na realidade, certo que o mataram, nem o crucificaram, mas o confundiram com outro. E aqueles que discordam quanto a isso estão na dúvida, porque não possuem conhecimento algum, mas apenas conjecturas para seguir; porém, certamente, não o mataram. (AS, IV, 136)

            A ascensão de Jesus aos céus, após sua morte – conforme podemos ler no Evangelho segundo São Lucas (24, 50-51) (BS, 1383): 50 Depois (Jesus) os levou (os onze apóstolos) para Betânia e, levantando as mãos, os abençoou. 51 Enquanto os abençoava, separou-se deles e foi arrebatado ao céu. – é aceita pela Alcorão:
            158. Mas Allah fê-lo ascender até Ele, porque é Poderoso, Prudentíssimo (AS, IV, 136)

5. Considerações finais

            De acordo com a doutrina do islã, Jesus entra na categoria dos profetas e como tal deve obedecer aos traços principais do modelo de profeta: enviado de Deus para pregar um monoteísmo estrito, simples criatura como as demais, ensina o que os outros profetas que o antecederam ensinaram e anuncia a vinda de um novo profeta: o profeta Muhammad. Goza, porém, de uma posição relevante dentro do Livro, tendo sido sua concepção uma vontade expressa de Allah, por meio de uma mulher muito especial, Maria.
            Jesus não traz nenhuma novidade dogmática que não tenha sido trazida pelos profetas que o precederam, e nada a mais do que trará Muhammad em seguida. “A mensagem religiosa de todos os profetas é a mesma e, nesse campo, Adão tinha tanto conhecimento quanto Jesus ou Mohammad.” (Jomier, op. cit., 192)
            Jesus foi enviado por Allah para colocar novamente os judeus no caminho da verdade, do qual se haviam afastado.  Como a missão de Jesus não foi, infelizmente, completada inteiramente a contento, Allah deve de enviar Muhammad para, finalmente, colocar judeus, cristãos, ateus e outros, na senda reta. O derradeiro profeta revelou então a única e verdadeira fonte de alimentação doutrinária religiosa e de vida do homem: o Alcorão.    
             

Notas
1.       Alcorão. Tradução de Américo de Carvalho. Portugal, Publicações Europa-América, Ltda, 2002, Parte 1, p. 13.
2.      Jesus é o filho de Maria, que é o único nome feminino mencionado explicitamente no Alcorão. As outras mulheres não são nomeadas, são ditas: mulher de Adão, mulheres de Abraão, mulheres de Jacó etc. (Le Coran. Tradução de D. Masson. Paris, Gallimard, 1967, p. LIII. A sura XIX é dedicada à Maria.
3.      Messias é a forma hebraica e árabe de Massih, Christos em grego, e que quer dizer “o ungido”, aquele que foi sagrado, ou consagrado, simbolismo indicador do seu destino especial (AS, p. 80). “O título de Messias é explicado de diferentes maneiras pelos comentaristas, mas para o conjunto dos fiéis é um título de honra, sem as ressonâncias que tinha na Escritura Sagrada.” (Jomier, 1992:201).
4.      A notação (AS) indica a obra: O significado dos versículos do Alcorão Sagrado, na tradução do Prof. Samir El Hayek; o número em algarismos romanos indica a respectiva sura, o em arábicos (dentro do parêntese) a página do livro; fora do parêntese (antecedendo cada frase), o número do versículo da sura.
5.      Maria era filha de Imran, descendente de Davi e de Abraão, e foi educada por Zacarias, seu primo, pai de João Batista.
6.      Jesus foi criado pela Palavra de Allah (Kun), um espírito procedente de Allah, mas não diretamente por Allah. Assim a doutrina da Trindade: Pai-Filho-Espírito Santo, em que Jesus é filho único de Deus, gerado pelo Espírito Santo é repudiada pelo Alcorão.
7.       “Ahmad” ou “Muhammad”, o louvado, “alguém chamado em auxílio de outro” seria o último profeta, por meio do qual o Alcorão foi revelado. “Ahmad” equivaleria a “Periclytos”, “Intercessor”, em grego. Essa passagem do Alcorão estabelece uma ligação com o Evangelho segundo São João na passagem (15, 26): (Jesus falando) “Quando vier o Paráclito, que vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da Verdade, que procede do Pai, ele dará testemunho de mim.”


Bibliografia

Alcorão. Tradução de Américo de Carvalho. Portugal: Publicações Europa-América, Lda, Partes 1 e 2, 2002.
Bíblia Sagrada. Tradução pelo Centro Bíblico Católico a partir de versão dos Monges de Maredsous. Revisão de Frei João José Pedreira de Castro, O.F.M. 90ª ed. São Paulo: Editora Ave-Maria Ltda., 1994.
ISBELLE, Munzer Armed. Sob as luzes do Alcorão. Rio de Janeiro: Azaan, 2003.
JOMIER, Jacques. Islamismo: história e doutrina. Tradução de Luiz João Baraúna. Petrópolis: Vozes, 1992.
Le Coran. Préface par J. Grosjean. Introduction, traduction et notes par D. Masson. Paris: Gallimard, 1967.
LUCCHESI, Marco (org.). Caminhos do Islã. Tradução: Ana Thereza Vieira, Cynthia Marques de Oliveira e Sérgio Guimarães. Rio de Janeiro: Record, 2002.
O significado dos versículos do Alcorão Sagrado com comentários. Tradução do Prof. Samir El Hayek. São Paulo: MarsaM Editora Jornalística Ltda, 11ª ed., 2001.
VERNET, Juan. As origens do islã. Tradução Maria Cristina Cupertino; revisão técnica Mamede Mustafa Jarouche. São Paulo: Globo, 2004.
WILLIAMS, John Alden. Islamismo. Tradução e notas de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1964.


(em “Ensaios Desnecessários” – inédito)

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