Embora a mídia tenha lhe dado
amplo destaque, por alguma razão que até hoje não compreendi bem por que,
naquela ocasião, ao ler a notícia no jornal, aparentemente não lhe atribui a
menor importância. Posso dizer até que praticamente a ignorei, apesar de tê-la
lido. O interessante, porém, é que, justamente hoje, nesta manhã fria e chuvosa
de 1 de abril, enquanto tento estabelecer um mínimo de ordem nesta inútil
papelada que eu teimo em guardar, tentativa talvez fútil de querer preservar de
alguma maneira o passado, meu olhar ao percorrer a manchete estampada na
primeira página do velho jornal
desencadeou antigas lembranças em meu pensamento que passou a divagar
devagar fazendo com que aquela longínqua notícia imediatamente desabrochasse por
inteiro em minha mente. Como que iluminado por um clarão do além, além de me
lembrar dos detalhes, fui além e também passei a me lembrar das linhas gerais
daquele insólito acontecimento que, ao que me parece, ocorrera mais ou menos
conforme a seguir tentarei relembrar.
Odisseu Grossmann era um yupee
enriquecido precocemente graças a audaciosas especulações astuciosas muito bem
sucedidas que realizara nos últimos anos no mercado de commodities. Afinal ele não era de ficar acomodado em suas commodities. Agia sempre bem rápido. Se
o mercado era tomador, enfiava. Se vendedor, tomava. E assim, enfiando e
tomando construiu uma imensa fortuna.
Supérfluo seria dizer que tais operações eram absolutamente legais e,
apesar de terem caráter global, isto é, serem realizadas interativamente nas
principais bolsas financeiras do mundo, mediante sofisticados recursos da
tecnologia informática, como sói acontecer atualmente nesses casos, a base
operacional de Odisseu era a modesta Bolsa de Klysteropol, capital da República
do Azizquerbeijão. Mas isso tudo, a bem da verdade, não tem a menor
importância.
Odisseu, jovem, já sentia o esgotamento da velhice. Esgotamento mental e
físico. Esgotamento proveniente da terrível pressão psicológica que sofria
diariamente. Não era brincadeira. Quem está de fora não faz a menor idéia do
que ele passava jogando na bolsa. Ou se faz, não está de fora e compreende o
que digo o que torna assim, em ambos os casos, desnecessária a observação, dada
sua inutilidade. Vinte quatro horas (às vezes até mais) por dia todos os dias
da semana (exceto no Dia de Ação de Graças, no Dia de São João, no Dia da
Independência, no Dia da Padroeira, no Dia de Natal, no Dia Primeiro do Ano e
no dia do aniversário da sua (dele) mãe). Todas as semanas do mês (exceto na
Semana Santa, na Semana do Carnaval, na Semana da Pátria e na semana do Natal),
todos os meses do ano (exceto em Janeiro, Fevereiro e Julho), durante anos e
anos a fio, nos últimos cinco ou seis anos, comandando seus negócios de commodities, ainda que o fizesse na
comodidade de seu luxuoso escritório. A tal ponto chegara seu estado de ânimo
que um belo dia, uma segunda-feira fria e chuvosa, sem mais nem porque, decidiu
que a partir de então iria mudar radicalmente de vida. Resolveu “chutar o pau
da barraca” como às vezes se costuma dizer coloquialmente. Chutar o pau da
barraca não em sentido literal, evidentemente, mas em sentido figurado. Mesmo
porque, naquela altura dos acontecimentos, apesar de muito rico, não tinha
barraca. Tinha uma tremenda cobertura triplex de 2652 m2 no bairro mais chique
da cidade. Mas barraca não tinha. Tendo acumulado um extraordinário patrimônio
em bens móveis, imóveis e semoventes poderia viver nababescamente o restante de
sua vida, qualquer fosse a duração dessa vida, sem preocupação com trabalho.
Quando se diz “qualquer fosse a duração dessa vida” deve-se, evidentemente,
subentender um espaço de tempo razoável, dentro da expectativa média de vida de
uma pessoa saudável, digamos, por exemplo, 83 anos de idade. E “sem preocupação
com trabalho”, a rigor, deve significar sim “sem preocupação em ganhar
dinheiro” coisas que, qualquer um que tenha o mínimo senso sobre o sentido das
coisas sabe são coisas bem distintas uma da outra.
Odisseu, indivíduo extremamente esperto, astuto, bom de lábia, conseguiu
desfazer-se de seu negócio rapidamente e com polpudo lucro. Comprou uma lancha off shore, avisou sua fiel esposa,
Aracne, que iria se ausentar por uns vinte anos, mais ou menos, pediu a ela
que, por favor, tivesse paciência de esperá-lo, porque o que ele iria fazer era
muito importante para ele, se ele não o fizesse iria viver o restante de sua
(dele) vida frustrado, amargurado, infeliz etc.e, marido realizado, alegre,
feliz etc. já é um saco, imagine então o oposto, que ela fosse tricotando umas
blusinhas pra passar o tempo e enrolar os pretendentes até ele retornar, e caiu no mundo. Passou a navegar pelos mares
e oceanos do planeta. Dali em diante para ele navegar seria mais preciso até do
que viver, embora, convenhamos, seria difícil navegar sem estar vivo, porque
para ele navegar era viver paixão antiga cravada no imo do peito. Tudo isso, de
acordo com os fatos (e a lenda).
Odisseu passou, assim, a conhecer lugares e povos interessantíssimos. Em
uma de suas viagens, aportou na cidade de Saracura importante ponto turístico
do Mare Vostrum meridional. Enquanto a tripulação cuidava do reabastecimento de
combustível e alimentos, Odisseu dirigiu-se à lanchonete da marina para fazer
xixi, lavar o rosto e beber um suco natural de cidra, tradicional bebida
deliciosa, dizem, daquela região. Conversando com um, conversando com outro,
porque Odisseu era, além de astuto, muito bom de papo, ficou sabendo da
existência de uma ilha onde, de maneira alguma, se deveria tentar atracar. Até
mesmo se deveria evitar passar pelas imediações. Era a Ilha das Virgens, nome
proveniente de antiga tradição do fisiologismo feminino, hoje considerado
anacrônico. Naquele lugar ocorria um estranho fenômeno. Sereias tinham o
costume de ali se reunirem. Ao perceberem a aproximação de algum nauta incauto
se transformavam em exuberantes mulheres peladas, iguaizinhas a essas
produzidas pelo photoshop para as
capas de revista de mulher pelada, e assumindo libidinosas posições,
iguaizinhas a essas das páginas internas das revistas de mulher pelada,
procuravam atrair o navegante em sua direção. Nas proximidades da ilha
correntes marítimas traiçoeiras arrastavam o barco de encontro aos rochedos
apenas submersos provocando o inevitável naufrágio da embarcação e sendo
aquelas águas infestadas por vorazes tubarões a morte do nauta incauto era
líquida e certa (ou por afogamento simples ou por estraçalhamento pelas
mandíbulas dos aquáticos assassinos ou por ambas as causas ou por outra causa
qualquer).
Odisseu pretendia seguir rota que passava justamente pela Ilha das
Virgens. Nem lhe passou pela cabeça a ideia de mudar de rumo. Ele era um
sujeito muito pertinaz. Por ser também muito astucioso engendrou um plano para
ludibriar as sereias. Ordenou fosse amarrado ao mastro da antena da lancha; as
coordenadas de navegação foram calculadas e o barco ligado no piloto
automático; a tripulação toda vestiu capuz preto que vendava completamente seus
olhos, apenas Odisseu não pôs o capuz; e seguiram adiante. Quando o barco se
aproximou da ilha, as sereias se transformaram em exuberantes mulheres peladas,
iguaizinhas a essas produzidas pelo photoshop
para as capas de revista de mulher pelada, e assumindo libidinosas posições,
iguaizinhas a essas das páginas internas das revistas de mulher pelada,
procuravam atrair os navegantes em sua direção.
Os marinheiros estavam com os olhos vendados e nada podiam ver do que
fora se passava. Odisseu, ao contrário, sem venda, estava totalmente vendido.
Vendo aquele mulherio todo pelado e em atitudes, quiçá poderia dizê-lo, sem
risco de parecer falso moralista, indecentes começou a ficar excitado. Tentava
fechar os olhos para não olhar lançando mão de sua esperteza, mas a força do
desejo era superior à da astúcia e olhava, olhava com o rabo do olho, mas
olhava e olhando ia ficando mais excitado, cada vez mais excitado, estava já
praticamente com ereção total embora a bermuda impedisse o livre trânsito do
membro. Os membros da tripulação encapuzada permaneciam alheios ao que se
passava no tombadilho.
Um pequeno erro de arredondamento no cálculo das coordenadas de
navegação, acentuado pelas correntes marítimas traiçoeiras existentes naquelas
águas, fez com que a lancha, que navegava em piloto automático, conforme já
mencionado, se desviasse do rumo pretendido e fosse, perigosamente, em direção
aos rochedos apenas submersos que circundavam a ilha. Os tripulantes nada
faziam (quer dizer, nada não, na verdade eles estavam batendo papo sobre coisas
banais, nem imaginando a fria em que estavam se metendo), pois estavam encapuzados,
conforme já mencionado. Odisseu, agora de olhos arregalados, grunhia alguns
monossílabos sem nexo, babava bastante, contorcia-se todo, principalmente os
braços dando a impressão que pretendia livrar as mãos amarradas para – quem
sabe?, não posso afirmar com certeza – agarrar o membro que tencionava o tecido
da bermuda quase a ponto de rasgá-lo, talvez para aliviá-lo de tamanha tensão,
e não dava a mínima para o perigoso desvio da rota do barco.
A catástrofe ocorreu num piscar de olhos. A lancha foi a pique em poucos
minutos ao ter o casco rasgado de cabo a rabo por um abrolho. Os vorazes
tubarões que infestavam aquelas águas fizeram a festa (como político depois que
toma posse). Todos os marinheiros foram comidos literalmente. Odisseu, cabeças
estraçalhadas, o pouco que restou da superior, pendurada ao tronco, sem os
cinco membros, morreu na praia. Estava quase que irreconhecível. Foi
identificado pelo exame da arcada dentária como sói acontecer nestas
circunstâncias. Resultado confirmado, a título de dirimir qualquer dúvida, pela
comparação de seu DNA com o de uma prima paterna de primeiro grau (um dado
adicional comprobatório da identificação do morto foi uma tatuagem de sereia
que ele tinha no lado superior esquerdo das costas (parte milagrosamente (para
quem acredita em milagres), inexplicavelmente (para quem é agnóstico) não
atacada pelos tubarões).
Um velho, antigo morador da ilha, em entrevista a uma rede de TV a cabo,
reproduzida no jornal em que eu lera a reportagem completa dos acontecimentos,
afirmou categoricamente que as sereias, logo após terem cumprido sua missão,
transformaram-se novamente em piranhas (uma espécie especial de piranha que
vive em água salgada), que é o estado natural delas, saltaram para as ondas que
arrebentavam no costão da ilha e desapareceram nas profundezas do mar
(certamente, talvez, até outro incauto nauta aparecer por lá).
(do livro “Contos Medonhos “ )