domingo, 28 de junho de 2020

Parole parole parole

palavras mal ditas
seu excessivo sal estupora a pressão do sangue
são palavras condenadas
fazem a gente ficar exangue

palavras bem ditas
açucaradas detonam a glicemia
são palavras perigosas
precisam ter absorção cuidadosa   

palavras não ditas
têm o sabor da neutralidade do nada
são palavras salvas pelo silêncio
merecem salva de palmas

domingo, 21 de junho de 2020

Três graus kelvin

superei a fase de me achar invulnerável
conheci com a idade o poder do destino
ciente do livre-arbítrio respeito o acaso
passado é aprendizado porém irreversível

vendo meu rosto estampado no espelho
constato obviedade banal como é fugaz
a vida de uma pessoa mesmo se gravados
forem seus feitos em qualquer epitáfio

o tempo é invenção oriunda do movimento
envolvidos por ele preferimos amealhar ouro
em lugar de fraternidade na frieza do universo

graças à luz é que projetamos nossa sombra
independente de qual tenha sido nossa jornada
ao final todos nos transformamos em cadáver

domingo, 14 de junho de 2020

O inimigo

também eu já tive juventude
passada feito um vendaval
hoje se acaso olho no espelho
ocorre só em momento raro
constato de fato o estrago feito
tanto nem trovão seria capaz
presto só sobra desse jeito
daquele fruto passado bagaço
das horas finadas outras ainda abortarão
de três em três meses muda a estação
prosseguem os atos escusos as obscuras
abordagens sobre as quais joguemos pá
de cal cordiais inundadas de más notícias
as mentes mentem quando dizem sem-terra
invadem cemitério reivindicando sepulturas
minimamente decentes em lugar de crateras
no asfalto da megacidade sempre nasce flor
de plástico made in china indistinta ela anseia
tomar banho de sol estendida sossegada na areia
se não de praia da baixada pelo menos no chão
do planalto central para poder manter o vigor
pois até ela precisa de algum tipo de alimento
interessante a gente não perceber a agonia
diligentemente cultivada há tanto tempo
quase dá pra desconfiar da presença de traidor
sutilmente infiltrado por nosso melhor inimigo
nós mesmos responsáveis diretos pela anemia
nutrida de fraternidade da santa humanidade

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Pandemônio

os cadáveres
em sacos plásticos
empilhados em câmaras frigoríficas
instaladas a título de necrotério suplementar
especializado naquele tipo de pandemônio
do lado de fora do edifício do nosocômio
pacientes aguardavam o sepultamento coletivo
nas valas recém-abertas pelas retroescavadeiras
no terreno improvisado em cemitério
na periferia pobre da megametrópole
enquanto sob o manto protetor do poder
que lhe foi investido democraticamente
pelo povo pelo voto virtual
depositado inconsequentemente
em uma urna eletrônica
a maior parte a parte suja familiar 
limpava os cofres do erário 
se livrando das dívidas
com membros e sequazes tendo
nas almas obscuras ódio
sangue nas mãos opressoras
gordos de corpo vazios de mentes
do que mais careciam era vontade de equidade
o que de melhor produziam era disfarçada corrupção 
cujo indisfarçável fedor empestava o meio ambiente
a tal ponto que o inferno
rindo a bandeiras despregadas
defecava sobre a cabeça da esperança
de dias menos piores que cabisbaixa
aceitava aquela imundice sem pestanejo
no palácio crepuscular como coisa oficial
a bandeira no meio do pau
indicava nojo normal
por cinquenta mil dias
homenagem aos vivos
no novo pandemônio