domingo, 31 de janeiro de 2016

Carmen 16. Catulo.

1.      O texto latino e uma tradução paradigmática (Catulo, 1996)

          Pedicabo ego uos et irrumabo
          Aureli pathice et cinaede Furi,
          qui me ex uersiculis meis putastis,
          quod sunt molliculi, parum pudicum.
          Num castum esse decet pium poetam                     5
          ipsum, uersiculos nihil necesse est,
          qui tum denique habent salem ac leporem,
          si sunt molliculi ac parum pudici
          et quod pruriat incitare possunt,
          non dico pueris, sed his pilosis                     10                
          qui duros nequeunt mouere lumbos.
          Vos, quei milia multa basiorum
          legistis, male me marem putatis?
          Pedicabo ego uos et irrumabo.

          Meu pau no cu, na boca, eu vou meter-vos,
          Aurélio bicha e Fúrio chupador,
          que por meus versos breves, delicados,
          me julgastes não ter nenhum pudor.
          A um poeta pio convém ser casto                       5
          ele mesmo, aos seus verso não há lei.
          Estes só têm sabor e graça quando
          são delicados, sem nenhum pudor,
          e quando incitam o que excite não
          digo os meninos, mas esses peludos                   10
          que jogo de cintura já não têm.
          E vós, que muitos beijos (aos milhares!)
          já lestes, me julgais não ser viril?
          Meu pau no cu, na boca, eu vou meter-vos. 

2.      Comentários gerais

Poema em catorze versos com a mesma métrica do início ao fim sem separação em estrofes (“catasticon”) no metro hendecassílabo falécio:
          Pe-di/ ca-boe-go vos-et/ ir-ru/ ma-bo    
                ‘_   _/ ‘_    -     -    _  -/ ‘_   -/    ‘_   -  espondeu/dátilo troqueu/troqueu/troqueu
                Au-re/ li-pa-thi ceet-ci/ nae-de/ Fu-ri                                                     
                 ‘_  _/ ‘_  -     -     _   -/   ‘_    -/  ‘_   -
                qui-meex/ uer-si-cu lis-me/ is-pu/ tas-tis 
                  ‘_    _/     ‘_   -   -   _    -/ ‘_   -/   ‘_    _                  (última sílaba é “anceps”
                quod-sunt/ mol-li-cu li-pa/ rum-pu/ di-cum   
                   ‘_    _/      ‘_   -   -   _  -/  ‘_      -/   ‘_  -           (etc.)
Obs. Convenção: _ sílaba longa; - sílaba breve; / separação dos pés; ‘ tempo forte.

Inclui-se entre os primeiros sessenta poemas do Livro, que é completado pelos quatro poemas “longos” (61-64) e os cinquenta e dois restantes (65-116), da seção elegíaca da obra. Vale notar que dentre esses primeiros sessenta poemas, considerados polímetros curtos, por serem de pequena extensão e compostos em mais de um tipo de métrica, quarenta foram escritos em hendecassílabos falécios (67%), indicando nítida preferência do autor por esse tipo de métrica fato que, como veremos mais adiante, deve estar relacionado com o conteúdo (res) da maioria dos mesmos.
            O poema trata de um “eu”, protagonista, invectivando, em baixíssimo nível, duas personagens: Aurélio e Fúrio por terem eles julgado os poemas do protagonista, que são breves, delicados, de não ter nenhum pudor. Defende-se desses argumentos, exatamente de forma breve e sem pudor, afirmando que uma coisa é a pessoa física do poeta outra é a pessoa artística. Ao primeiro, se for pio, convém que seja casto (por óbvia questão de coerência de comportamento, podemos inferir), quanto ao segundo, a liberdade expressiva deve ser total, estando porém implícita a obediência à preceptiva daquilo que o poeta considera adequado (decorum) para o fazer poético, que é no seu entender justamente elaborar poemas delicados e despudorados, que incitem  à excitação a “plateia”. O protagonista traz à baila, então, sua virilidade, que fora questionada, indagando às tais personagens se elas já não tiveram provas suficientes da mesma, lendo outros poemas amorosos que ele compusera? Por isso, tomem invectiva curta, grossa e penetrante.

3.      Subjetividade ou Persona Poética

A poesia que coloca em cena como protagonista um “eu” traz quase que invariavelmente junto a si a questão da subjetividade ou não desse “eu”, e por extensão, da veracidade (fidedignidade à realidade) ou não da matéria poética tratada. Uns consideram esse “eu” como um sujeito lírico substancial, isto é, confundem-no com a própria pessoa física do poeta; outros o concebem como um sujeito lírico semiótico, qual seja, ele é uma Persona (uma máscara) Poética distinta da figura real do poeta (Achcar, 1994:37-seq.).
No âmbito da poesia latina antiga, embora as opiniões nem sempre estejam plenamente em concordância, a tendência geral da crítica literária mais recente é considerar o “eu” como uma Persona Poética. Esse “eu”, também dito lírico, seria assim, um sujeito de enunciação (enunciador) fictício, cuja enunciação (o poema) mimetizaria (representaria) um “enunciado de realidade” (possível). Várias são as justificativas para sustentar esse ponto de vista: a poesia latina antiga sendo eminentemente tópica, isto é, alicerçada em tópoi ou lugares-comuns, apresentaria tendência natural à objetividade na sua construção; sendo poesia voltada para o exterior, para o público (entendido como o círculo (de raio não muito grande, não percamos de vista esse fato!) dos intelectuais que fruíam arte), apresentaria tendência natural à objetividade na sua recepção. Pegando uma carona na elegia e ampliando nossa visão para a lírica, podemos dizer que o processo construtivo do poema estaria baseado em artifícios artísticos sofisticados, bem delimitados, apropriados e elaborados pelo poeta, com os quais ele cria um “eu” Persona (máscara) Poética que protagoniza uma matéria literária na qual age de acordo com determinado éthos com a finalidade de maximizar a verossimilhança dessa matéria e, por conseguinte, estabelecer um laço bem estreito de fides entre o receptor e a obra (Martins, Paulo, 1996). As personae são tratadas dentro de um sistema retórico-poético que procura lhes dar éthoi da maior “sinceridade” possível (uso de figuras públicas, como personagens, uso de eventos da vida do poeta como matéria ficcional), de tal forma que realidade e ficção se imbricam e criam duas verdades simultâneas, deliberadamente, uma desmentindo a outra (Veyne, 1985:27), constituindo-se numa “poesia pseudo-autobiográfica onde o poeta é conivente com seus leitores às custas de seu próprio Ego” (Veyne, op. cit. p. 74). Toda arte consistirá no desenvolvimento de um contágio emocional entre o poeta e o receptor por meio do poema, no qual artifícios poéticos ocultos levam à impressão de sinceridade: ars est celare artem  - arte é ocultar a arte.
O C. 16 do Livro de Catulo pode ser considerado paradigmático para a compreensão do “eu” lírico como Persona Poética. Nos versos 5 e 6 o poeta explicita, cristalinamente cremos, o que ele pensa da questão ao afirmar: A um poeta pio convém ser casto/ ele mesmo, aos seus versos não há lei./ Fica evidente a separação que Catulo faz da pessoa do poeta ( o demonstrativo ipsum é ali emblemático: poetam ipsum – o poeta ele mesmo) da Persona Poética, metonimicamente representada por seus poemas (uersiculos) que devem seguir as suas próprias leis (nihil necesse est – nada é necessário = tudo é permitido). Essa liberdade deve ser, contudo, relativizada visto Catulo preceituar e obedecer diretrizes, tanto de conteúdo (res), quanto de forma (uerba), para o seu fazer poético.

4.      Metapoesia: poemetos e obscenidade.

Catulo, herdeiro da tradição helenística alexandrina de Calímaco, para quem: tò mega biblíon íson tôi megáloi kakôi – um grande livro é igual a uns grandes males, desenvolveu praticamente toda a sua poética procurando satisfazer esse preceito calimaquiano, o que deu origem em Roma, juntamente com a obra de outros seguidores das mesmas ideias, da chamada poesia neotéria. O C. 16 já em si obedece a essa preceptiva, com seus econômicos, porém densos, catorze versos, nos quais o poeta disserta com percuciência (conotativa e denotativa), um tanto explícita, bem mais implícita, sobre o que entende ser o poiên, o fazer poesia. Esse poema é, então, exemplar como metapoema (poema falando de poesia, teorizando sobre poesia). Os inúmeros termos técnicos, característicos do léxico neotérico e com significados bem precisos, presentes no texto assim o configuram: uersiculis (v.3); molliculi (v.4); uersicullos (v.6); salem (v.7); leporem (v.7); molliculi (v.8); pueris (v.10); duros (v.11). Versiculi – versículos, molliculi – delicadozinhos (lit.), são diminutivos cuja razão de ser reporta-se ao conceito de nugae – nugas, bagatelas, ninharias (do grego paígnia). Não devem ser tomados como algo menor, pois sob a aparente modesta pequenez está contida toda a verdadeira grandeza da poesia: ser breve e delicada. Poesia que, pela sua ligeireza, deve ser preferida em lugar da poesia longa e dura. A poética de Catulo imbrica-se na de Calímaco, resgata uma tradição e faz escola. Molliculi uersiculi, é metáfora de boa poesia, e opõe-se a duros lumbos (duri contra molliculi), que podem ser tomados como metáfora de poesia ruim. Salem é o sal, o tempero, o sabor, o que tem gosto, o que não é insosso, não literal, mas metaforizado no que é saboroso para o paladar intelectual. Leporem é a graça, a delicadeza outro ingrediente da poesia molllicula à qual se acrescenta, também (por que não?), parum pudici – pouco pudor. Com que finalidade? Excitar a “plateia” à recepção da obra. Poesia voltada para o público, com caráter social. Nem tanto o jovem amante, (puer), delicado e sensível, naturalmente mais apto à apreciação da boa poesia, mas, particularmente, os peludões de duros lumbos, encruados diante de arte maior (no conteúdo, embora menor na forma). Catulo dá a impressão de estar fazendo poesia de circunstância, tanto em forma (uerba) quanto em matéria (res), mas faz a rigor metapoesia. Constrói o seu poema em  tom baixo, com aparência de vulgaridade, brincando, jogando – de lusus, ludere – com o léxico e com as ideias, fazendo na verdade pura teoria poética. Tudo com muita ironia, com muita sátira.
Mais que um poeta do amor, um poeta lírico, Catulo foi um iambógrafo, ou na linguagem de Roma, um satirista e devemos, portanto, entender sua mistura de obscenidade grotesca com ameaças como uma herança antiga da – iambikh idea, “ideia iâmbica” –  já manifestada em Arquíloco e Hipônax, passando pela Comédia Antiga. Assim, toda a insinuação sexual do C. 16 não deve ser tomada ao pé da letra, pois ela é parte do efeito literário pretendido, que é função do gênero (Newman, 1990:72,139,171). Cabe notar que, embora a matéria do poema seja iâmbica, a métrica não o é, fato que não deve sofrer estranhamento visto ser a natureza temática do iamboj que caracterizava o metro e não o contrário, natureza essa cuja essência era seu caráter notoriamente satírico-agressivo. O próprio Catulo chamava suas invectivas de iambi, ainda que sob o ponto de vista métrico elas não se alinhassem necessariamente à tradição iambógrafa grega, isto sob o aspecto formal. Em contrapartida, sob o ponto de vista de matéria, ainda que a invectiva fosse uma característica notável do gênero, iamboj não significava, porém, sempre apenas invectiva (citado por Oliva Neto, 1999:80). Para Granarolo (1967:165-6), numa visão contaminada por certo biografismo, Catulo teria uma propensão natural para a licenciosidade à qual ele teria unido literariamente, entre outras fontes, de herança grega, a fábula togata, a atelana e o mimo, de herança latina, com a finalidade de provocar hilaridade tendo em vista a mordacitas – a mordacidade inveterada do público romano e seu pendor bem conhecido à diffamatio – à difamação. Se dermos crédito a essas afirmações somos mais uma vez levados a concluir que a poesia de Catulo é objetiva, social, visando o público e não deve ser entendida literalmente, pois ela é toda construída sobre conceitos literários que visam provocar efeitos também literários. Assim, a obscenidade presente não deve ser entendida como mera imoralidade, mas sim como adequação ao gênero satírico ao qual pertenceria o poema.
  Pedicare e irrumare nomeariam no poema não penetrações literais, mas penetrações poéticas. O sujeito da ação, o elemento ativo da ação, é a Persona Poética que aqui podemos nomear Persona Satírica. Ela é a agenciadora da “agressão sexual” (fictícia) contra Aurélio e Fúrio que poderíamos considerar representados metonimicamente pelos duros lumbos que por sua vez, como vimos, seriam a representação metafórica de poesia ruim. Então, por correspondência figurativa podemos concluir que a Persona Satírica quer pedicare e irrumare não Aurélio e Fúrio, meros personagens da sátira burlesca, mas sim a poesia ruim, poesia pathica et cinaeda. Esse, em nossa compreensão, o verdadeiro alvo da virulenta agressão propugnada pelo poema.
O poeta finaliza esnobando, pelo engrandecimento, en passant, de sua própria poesia, ao fazer, não intertextualidade, procedimento usual na poesia antiga, cultuadora da alusão, mas “intratextualidade, concebida como evocação, no curso de uma obra, de passagens da mesma obra: alusão interna, portanto” (Vasconcellos, 2001:130). Refere aos milia multa basiorum (v. 12) alusão ao Carmen 5 do Livro, poema amoroso de tom elevado que tem como interlocutora a Persona Amante, Lésbia, carpe diem pré-horaciano (Viuamus, mea Lesbia, etc.). O último verso retoma exatamente o primeiro, o que serve para explicitar com vigorosa ênfase qual a ação pretendida pelo “eu” lírico, fechando o poema, que tem, assim, a estrutura formal de uma composição em anel.   
                 
5.      Conclusões
O pequenino Carmen 16 (num símile certamente anacrônico o qual, porém, não conseguimos evitá-lo) como um torpedo encapsulado por dois explosivos versos idênticos abriga um miolo burlesco que burla nossa compreensão imediata e com aparente grotesca obscenidade pretende (cremos nós) tirar de cena (obscena) a poesia ruim, explodindo-a satírica, irônica e hilariamente em nossas caras. No singelo C. 16, em nosso entender, longe a intenção de Catulo, via a Persona Satírica inventada, de meter o pau nos pobres Aurélio e Fúrio. Pretendeu, Catulo, isto sim, baixar o cacete na má poesia.

Bibliografia

ACHCAR, Francisco. Lírica e Lugar-Comum: Alguns Temas de Horácio e sua Presença em Português. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994.
CATULO. O Livro de Catulo. Tradução comentada dos poemas de Catulo. João Angelo Oliva Neto. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.
GRANAROLO, Jean. L’Oeuvre de Catulle – Aspects Religieux, Éthiques et Stylistiques. Paris: “Les Belles Lettres”, 1967.
MARTINS, Paulo. Sexto Propércio.Monobiblos: éthos, verossimilhança e fides no discurso elegíaco do século I a.C.. Dissertação de mestrado. Orientador: Profa. Dra. Ingeborg Braren. Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, 1996.
NEWMAN, John Kevin. Roman Catullus and the Modification of the Alexandrian Sensibility. Germany: Weidmann, 1990.
OLIVA NETO, João Angelo. Falo no jardim: Priapéia grega, Priapéia latina. Tese de doutoramento. Orientador: Prof. Dr. Antonio Medina Rodrigues. Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, 1999.
VASCONCELLOS, Paulo Sérgio de. Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP/ FAPESP, 2001.
VAYNE, Paul. A elegia erótica romana (O amor, a poesia e o Ocidente).Tradução de Milton Meira do Nascimento e Maria das Graças de Souza Nascimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.


(em “Ensaios Desnecessários” – inédito)

domingo, 24 de janeiro de 2016

SÁBIAS PALAVRAS

         Aprendi — com uma tia, infelizmente já falecida, pessoa estimada por tantos, mulher boníssima, que dedicou a maior parte de sua existência ao meretrício, fato que torna seu ensinamento ainda mais digno da maior consideração, visto a vasta experiência dela no assunto — uma lição que tem sido de muita valia na minha vida. A querida tia sempre me dizia: “Sobrinho, presta bem atenção numa coisa que eu vou lhe ensinar. Quanto mais a gente curva as costas mais a gente mostra a bunda.

(em “Crônicas Anacrônicas – Grotesca Filosofia Mediocridade Sublime” (inédito))

domingo, 17 de janeiro de 2016

PARA QUE SERVEM AS PALAVRAS?

As palavras servem pra muita coisa
Pra dar nome aos bois
Dispor de conceitos vários
Arrazoar ideias
Exprimir emoções
Mas o gosto doce ou amargo da fruta
A gente só sabe mesmo qual é
Na hora que a comer

(do livro “Poesia... Afinal pra quê?”)
https://books.google.com.br/books?id=WesXBAAAQBAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r#v=onepage&q&f=false

domingo, 10 de janeiro de 2016

O OVO OU A GALINHA

          Depois de ter relutado durante bom tempo imbuído da ideia preconcebida que tudo não passa da mais pura picaretagem diante da situação desesperadora em que me encontrava acabei cedendo e me inscrevi no curso: “Neurolinguística Aplicada ao Desenvolvimento Pleno das Potencialidades do Indivíduo para Transformá-lo num Vencedor”.
Ali me foi ensinado que para eu me transformar num vencedor preciso estar de bem com o mundo e para que eu esteja de bem com o mundo é preciso que eu esteja de bem comigo mesmo. Para tanto devo ser uma pessoa dita de alto astral alegre confiante otimista.
Sai do tal curso cheio de esperança de que finalmente iria encontrar o caminho do sucesso e me tornar um vencedor, mas preciso reconhecer que até hoje não consegui atingir meu objetivo, pois tenho esbarrado numa dificuldade que tento superar em vão: como estar de bem comigo mesmo num mundo como esse que está por aí?

(em “Crônicas Anacrônicas – Grotesca Filosofia Mediocridade Sublime" (inédito))

domingo, 3 de janeiro de 2016

A Humanitas na Urbe escravagista

      Desde os primórdios da realeza, Roma apresentou-se como uma sociedade escravocrata, primeiro com as guerras de unificação dos povos da península itálica, e depois, de maneira cada vez mais acentuada, com as guerras expansionistas, que deram origem ao império. Como instituição, o regime escravista sofreu alterações ao longo do tempo, em geral favoráveis aos escravos, isso graças a revoltas, pressão social da classe oprimida e também, a uma evolução do pensamento da classe dominante.
      A causa da escravidão poderia ser externa ou interna. A principal causa externa, após a unificação da península, advinha de prisioneiros nas guerras de conquista no exterior. Entre as causas internas podem ser arroladas (Giordani, 2001: 196-197): a) fraude no recenseamento; b) omissão do serviço militar; c) roubo em flagrante delito; d) devedor insolvente; e) filho vendido pelo pater familiae. Essa escravidão só se efetivaria com a venda feita no estrangeiro, pois a dignitas não admitia que um cidadão romano fosse escravizado em sua própria pátria, ainda que considerado um criminoso. Outra fonte de escravos era o nascimento de filhos gerados pelas escravas, pois prevalecia o princípio do partus sequitur ventrem, isto é, o nascido estava sujeito à situação da parturiente, independente da situação do pai: se a mãe fosse livre, a criança seria livre, mesmo que o pai fosse escravo; se a mãe fosse escrava, a criança também seria escrava, mesmo que o pai fosse livre.
      O escravo era considerado uma coisa (res), não possuindo personalidade ( seruus nullum caput habet). Estava sujeito ao poder de seu senhor (dominica potestas), que juridicamente tinha caráter absoluto de vida e de morte e estendia-se da pessoa física aos bens. Esses bens eram resultantes do costume, que se desenvolveu ao longo do tempo, de permitir ao escravo formar um pecúlio. A união entre escravo e escrava (contubernium) não tinha efeito legal, pois o escravo não podia contrair obrigações civis, não só de casamento como de qualquer outra natureza, mas o escravo podia gerar responsabilidade civil devido a eventuais delitos cometidos, responsabilidade essa que poderia recair sobre o dono do escravo ou sobre o próprio escravo.
      Na época das grandes conquistas o tráfico de escravos era intenso. Os comerciantes de escravos (mangones) exerciam sua atividade ao ar livre, para os escravos mais baratos ou nas tendas, para os escravos mais caros, nas proximidades do Forum. Os escravos eram colocados sobre um tablado giratório (catasta), com uma placa (titulus) no pescoço contendo informações úteis ao comprador tais como: nacionalidade, aptidões, defeitos. Os escravos recém-chegados tinham um dos pés embranquecido com gesso (gypsati).
    Os escravos eram divididos em duas grandes categorias: os particulares (serui privati) e os públicos (serui publici). Os escravos particulares destinavam-se aos trabalhos no campo, fazendo parte da familia rustica, ou aos trabalhos na cidade, fazendo parte da familia urbana. O escravo urbano era mais valorizado do que o rural, e a transferência da cidade para o campo era considerada como degradação e castigo. Na cidade o escravo exercia grande diversidade de ofícios, dependendo de suas aptidões e da posição social de seu dono. Esse fato possibilitou o surgimento de uma hierarquização social dentro da própria categoria. Distinguiam-se em ordinarii, os especializados em determinado ofício – cozinheiros, copeiros, camareiros, arquitetos, músicos, gramáticos, e em uulgares, os sem qualquer especialização e destinados aos trabalhos mais penosos. Os escravos públicos exerciam cargos secundários na administração tais como: auxiliares das magistraturas, dos pontífices, guarda de arquivos, bibliotecários, manutenção de obras públicas, limpeza urbana, execução de torturas e de penas capitais. O imperador tinha a seu serviço não menos do que vinte mil escravos, um senador, mil e um cidadão, ou mesmo um liberto, rico podia chegar a ter mais que dez mil escravos.
      A palavra humanitas deriva de humanus, humano, relacionada a homo – o homem, ser humano – e a humus – a terra. Poder-se-ia, então, tentar conceituar humanitas, em sua forma mais geral, como as maneiras de comportamento próprias do ser humano terreno (Pereira, 1989: 417-418). Em Roma, a noção de humanitas começou a desenvolver-se a partir de, aproximadamente, 200 a.C., como resultado dos contatos com a cultura helênica, durante as guerras expansionistas no sul da península. Por volta dos anos 170 a.C., junto à família do general Cipião Emiliano, formou-se um grupo de intelectuais, o “Círculo dos Cipiões”, no qual, sempre por influência da cultura helênica, o ideal de humanitas desenvolveu-se bastante em três acepções básicas: filantropia universal, que envolvia a solidariedade e a consciência da responsabilidade pessoal em face do semelhante; cultura; e ideal estético e aristocrático de vida. O homo Romanus, com seus ideais de uir, pietas, fides, submetido à res publica e cultuador do mos maiorum, iniciava sua trajetória na direção do homo humanus (Trenk, 1997: 47).
      Com Cícero (106-43 a.C.), o conceito amplia-se e aprofunda-se, adquirindo grande importância, atingindo valor digno de conduzir uma vida. Para o Arpinate “humanitas é o atributo do homem, no que tange à sua condição e natureza; implica num sentimento de preocupação com o semelhante, identificado com a filantropia; corresponde a uma qualidade da nação e do indivíduo civilizados; diz respeito aos deveres humanos, que não se restringem à comunidade romana, mas também aos estrangeiros; constitui atitude de benevolência, compreensão e tolerância para com o próximo e esforço pelo bem de todos; revela senso de medida em comportamentos convenientes, desenvoltura no trato em sociedade; enfim, inclui a cultura intelectual do homem, considerada como constante aperfeiçoamento de seus dotes naturais e como produto dessa formação. A cultura relaciona-se com a fruição estética, ou seja, com o prazer da literatura e o gosto do belo, e manifesta-se essencialmente pela palavra.” (Trenk, op. cit. pp.74-75).
      Como, então, conciliar todos esses ideais de humanitas, no seio de uma sociedade escravagista? A tarefa parece impossível de ser concretizada, mormente se a questão for vista com olhar moderno, impregnado de ideais dos direitos humanos, há não muito propalados, considerada a escala histórica dos acontecimentos. Assim, um primeiro cuidado a ser tomado no trato da questão é ter sempre em mente a grande defasagem que há entre o contexto histórico dos acontecimentos e a moderna análise que se procura fazer dos mesmos, como bem apontam Beard e Henderson (1988: 18-22). Segundo Vayne (1992: 283-302), o estoicismo, a principal corrente filosófica seguida pelos romanos, levado a Roma por Panécio de Rodes (c. 185-109 a.C.), grande filósofo da Escola Estoica, que passou muitos anos de sua vida na Urbe, provavelmente chamado pelo historiador Políbio, onde se manteve ligado ao Círculo dos Cipiões, ( Pereira, op. cit. p. 97), pode auxiliar na compreensão dessa situação tão antagônica, qual seja o culto da humanitas por uma sociedade escravocrata.
     O estoicismo, diante do fato corriqueiro de que os seres humanos, embora pertencentes a uma mesma espécie, a espécie humana, apresentam capacidades físicas e psíquicas desiguais, propugna que nada há de errado nisso, pois a natureza dá a todos os indivíduos a mesma possibilidade de acesso à virtude, que é o bem maior que o indivíduo deve almejar, e cuja conquista está dentro de cada indivíduo, só depende dele mesmo. Todos terão acesso à virtude desde que cumpram condignamente a função no lugar em que a Fortuna lhes atribuiu: se for imperador cumprirá com honra o cargo de imperador, se for escravo cumprirá com determinação as suas tarefas de escravo. Para os estoicos, o verdadeiro escravo é o homem não virtuoso, escravizado pelas suas paixões. Essa é a chave que abre a porta para a humanitas entrar na sociedade escravista romana. Aos olhos modernos, fazendo um pequeno trocadilho, essa filosofia parece mais cínica do que estoica.
      Mas afinal, não terá a humanitas exercido qualquer influência sobre a mentalidade dos senhores de escravos, no sentido de “humanizar” a relação escravo-patrão?
      Para tentar responder a essa questão vamos considerar dois exemplos de cidadãos proeminentes da sociedade romana, cada um a seu tempo, ambos cônsules e grandes senhores de escravos: Catão, o velho, e Cícero.
      Catão, o velho, viveu entre c. 234 a.C. e 149 a.C., tendo sido, assim, contemporâneo do Círculo dos Cipiões, período em que, como vimos, o conceito de humanitas estava começando a desenvolver-se na Urbe. Da sua obra De Agricultura (Caton, 1975), podemos extrair algumas passagens que ilustram qual a sua postura diante do escravo. É dever do capataz cuidar para que os escravos não estejam em más condições, não sofram de frio, e nem passem fome, não por razões humanitárias, mas para que possam executar adequadamente o seu trabalho – Haec erunt uilici officia: ... familiae male ne sit, ne algeat, ne esuriat (VII – Vilici officia); a alimentação deve ser especificada em  qualidade e quantidade, nos mínimos detalhes para que a máquina humana continue funcionando adequadamente, sem desperdícios ( LXV – Familiae cibaria quanta dentur) e, para acompanhar o pão: azeitonas caídas no chão ( ... oleae caducae:   LXVII – Pulmentarium familiae quantum detur); de dois em dois anos o escravo deve receber uma nova túnica e uma nova capa, devolvendo em troca as antigas vestes para que sejam transformadas em lençóis, para os escravos ( LXVIII – Vestimenta familiae). Se o escravo ficar doente a ração diária pode ser diminuída: ... cum serui aegrotarint, cibaria tanta dari non oportuisse (II, 4 – Patris familias officia)e para os escravos malcomportados e velhos é recomendada a venda em leilão de coisas inúteis: ... boues uetulos, armenta delicula, oues deliculas, lanam, pelles, plostrum uetus, farramenta uetera, seruum senem, seruum morbosum, et si quid aliut supersit, uendat (III, 7) – Auctionem uti faciat).
      Esse comportamento, talvez refletisse, em parte, uma característica pessoal do velho censor, conhecido pela rusticidade de seu comportamento, pela frugalidade e pela parcimônia com que vivia, beirando à mesquinharia. Plutarco, escritor grego, que viveu entre c. 50 e c. 125, em relação ao tratamento que Catão dispensava a seus escravos escreveu (Plutarco, 1959: 317 – “Marcus Cato”, V,1): “Entretanto, da minha parte, eu considero o tratamento de seus escravos  como bestas de carga, usando-os ao máximo, e então, quando eles estavam velhos, tirando-os de circulação e vendendo-os, como a marca de uma natureza bem mediana, a qual não reconhece ligação entre homem e homem (grifo nosso), mas somente aquela da necessidade.” Essa crítica, precisa ser relativizada devido à defasagem entre a época em que foi feita e o período criticado e devido à formação helenística do crítico, porém ela serve para ilustrar como um homem culto do século I d.C. via o comportamento humano de um homem do século I a.C., comportamento que poderia ter contornos pessoais do velho censor, mas que talvez refletissem as características próprias da época.
       O dinamarquês Poulsen, especialista renomado em Arqueologia Clássica, apontou em seu livro sobre a vida e os costumes dos romanos (Poulsen, 1950(?): 86) que: “Catão não era nenhum inexperiente ... Havia evidentes tendências progressistas nesse homem de coração tão duro. Porém, o escravo era para ele, como para todos os romanos seus contemporâneos (grifo nosso) “instrumentum vocale” (um instrumento com voz), como o animal doméstico era um “instrumentum semivocale” e o arado e a picareta instrumentos mudos (“instrumenta muta”).
      Um século depois de Catão, podemos encontrar uma situação bastante distinta no relacionamento entre patrão e escravo na Urbe. Exemplos disso podem ser extraídos da correspondência que Cícero mantinha com seu escravo, e secretário particular, Tirão, em especial na carta em que o Arpinate manifesta sua preocupação com a saúde do seu fiel servidor (Cicéron, 1967: 41-42): “Illud, mi Tiro, te rogo sumptu ne parcas ulla in re, quod ad ualetudinem opus sit. Scripsi ad Curium quod dixisses daret. Medico ipsi puto aliquid dandum esse, quo sit studiosior – O que te peço, meu caro Tirão, é que não hesites em fazer despesa alguma que seja útil para teu restabelecimento. Escrevi a Cúrio a fim de que te dê tudo que pedires. Julgo que é conveniente dar ao próprio médico algo para que seja mais dedicado.”  (Ad Fam., XVI, 4).
     Colocadas em confronto, a época de Catão com a época de Cícero, constatamos a enorme diferença existente no que tange ao tratamento ao escravo nos dois períodos. Claro que essa comparação precisa ser relativizada devida à defasagem, à diferença de tempo entre as duas situações (c. 100 anos), devida à própria natureza dos escravos, no caso de Catão, escravos rurais, abrutalhados e desvalorizados, no caso de Cícero, escravo urbano e instruído e, principalmente, pela personalidade dos protagonistas: Catão, homem rústico, pouco afeito às elucubrações do espírito e Cícero, todo o oposto disso, homem urbano, polido, amante das “belas letras”.
      As palavras de Boissier (1944: 95-96) parecem-nos bastante esclarecedoras e servem como que para enfeixar as ideias por nós aqui desenvolvidas : “Ao estudar as relações de Tirão com seu amo, não é possível deixar de fazer uma reflexão, a de que a antiga escravidão, vista por este aspecto e na casa de um homem como Cícero, parece menos repugnante. Com efeito, nessa época havia-se suavizado muito e as letras contribuíram em grande parte para esse progresso. Elas difundiram, entre os que as estimavam, uma virtude nova, cujo nome se vê repetidas vezes nas obras filosóficas de Cícero, a humanitas (lat. e grifo nossos), quer dizer, essa cultura do espírito que enternece as almas. Por sua influência, a escravidão, sem ser atacada em seus princípios, viu-se profundamente modificada em suas consequências. Essa mudança fez-se silenciosamente. Não se tratou de enfrentar abertamente os valores dominantes: até Sêneca, não se insistiu em proclamar o direito do escravo em ser considerado como ser humano e continuou-se a excluí-lo das grandes teorias que se desenvolviam sobre a fraternidade humana; porém, na realidade, ninguém aproveitou tanto como ele da maior doçura dos costumes. Acabamos de ver como Cícero tratava aos seus e isso não era exceção. Ático procedia como ele, e essa humanitas (lat. e grifo nossos) havia-se tornado quase um ponto de honra do qual se alardeava naquela sociedade de homens cultos e letrados.... A escravidão pois, havia perdido muito de seus rigores no final da república romana e nos primeiros tempos do império. Esse progresso, que se atribui geralmente ao cristianismo, era mais antigo que ele, e deve-se outorgar essa glória à filosofia e a literatura (humanitas – n/obs.).”   
    A ideia de que ninguém nasce escravo, é a sociedade que transforma as pessoas, só foi desenvolver-se no século XIX ( Vayne, op. cit. p. 287), porém, não podemos esquecer que o desenvolvimento dessa ideia, resultado de um longo e penoso processo histórico, tem suas origens na Urbe quando lá germinou a semente da humanitas.    




Bibliografia

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POULSEN, Frederik – Vida y costumbres de los Romanos (viñetas culturales).
Tradução de Daphne Jacobsen de Garcia Paladini, com a colaboração de Antonio
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TRENK, Wilma Aparecida – O discurso Em defesa de Árquias (pro Archia) e a
Humanitas de Cícero. Dissertação de Mestrado, Departamento de Letras Clássicas
Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
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(em “Ensaios Desnecessários” – inédito)