Desde os primórdios da
realeza, Roma apresentou-se como uma sociedade escravocrata, primeiro com as
guerras de unificação dos povos da península itálica, e depois, de maneira cada
vez mais acentuada, com as guerras expansionistas, que deram origem ao império.
Como instituição, o regime escravista sofreu alterações ao longo do tempo, em
geral favoráveis aos escravos, isso graças a revoltas, pressão social da classe
oprimida e também, a uma evolução do pensamento da classe dominante.
A causa da escravidão
poderia ser externa ou interna. A principal causa externa, após a unificação da
península, advinha de prisioneiros nas guerras de conquista no exterior. Entre
as causas internas podem ser arroladas (Giordani, 2001: 196-197): a) fraude no
recenseamento; b) omissão do serviço militar; c) roubo em flagrante delito; d)
devedor insolvente; e) filho vendido pelo pater
familiae. Essa escravidão só se efetivaria com a venda feita no
estrangeiro, pois a dignitas não
admitia que um cidadão romano fosse escravizado em sua própria pátria, ainda
que considerado um criminoso. Outra fonte de escravos era o nascimento de
filhos gerados pelas escravas, pois prevalecia o princípio do partus sequitur ventrem, isto é, o
nascido estava sujeito à situação da parturiente, independente da situação do
pai: se a mãe fosse livre, a criança seria livre, mesmo que o pai fosse
escravo; se a mãe fosse escrava, a criança também seria escrava, mesmo que o
pai fosse livre.
O escravo era considerado
uma coisa (res), não possuindo
personalidade ( seruus nullum caput habet).
Estava sujeito ao poder de seu senhor (dominica
potestas), que juridicamente tinha caráter absoluto de vida e de morte e
estendia-se da pessoa física aos bens. Esses bens eram resultantes do costume,
que se desenvolveu ao longo do tempo, de permitir ao escravo formar um pecúlio.
A união entre escravo e escrava (contubernium)
não tinha efeito legal, pois o escravo não podia contrair obrigações civis, não
só de casamento como de qualquer outra natureza, mas o escravo podia gerar
responsabilidade civil devido a eventuais delitos cometidos, responsabilidade
essa que poderia recair sobre o dono do escravo ou sobre o próprio escravo.
Na época das grandes
conquistas o tráfico de escravos era intenso. Os comerciantes de escravos (mangones) exerciam sua atividade ao ar
livre, para os escravos mais baratos ou nas tendas, para os escravos mais
caros, nas proximidades do Forum. Os
escravos eram colocados sobre um tablado giratório (catasta), com uma placa (titulus)
no pescoço contendo informações úteis ao comprador tais como: nacionalidade,
aptidões, defeitos. Os escravos recém-chegados tinham um dos pés embranquecido
com gesso (gypsati).
Os escravos eram
divididos em duas grandes categorias: os particulares (serui privati) e os públicos (serui
publici). Os escravos particulares destinavam-se aos trabalhos no campo,
fazendo parte da familia rustica, ou
aos trabalhos na cidade, fazendo parte da familia
urbana. O escravo urbano era mais valorizado do que o rural, e a
transferência da cidade para o campo era considerada como degradação e castigo.
Na cidade o escravo exercia grande diversidade de ofícios, dependendo de suas
aptidões e da posição social de seu dono. Esse fato possibilitou o surgimento
de uma hierarquização social dentro da própria categoria. Distinguiam-se em ordinarii, os especializados em
determinado ofício – cozinheiros, copeiros, camareiros, arquitetos, músicos,
gramáticos, e em uulgares, os sem
qualquer especialização e destinados aos trabalhos mais penosos. Os escravos
públicos exerciam cargos secundários na administração tais como: auxiliares das
magistraturas, dos pontífices, guarda de arquivos, bibliotecários, manutenção
de obras públicas, limpeza urbana, execução de torturas e de penas capitais. O
imperador tinha a seu serviço não menos do que vinte mil escravos, um senador,
mil e um cidadão, ou mesmo um liberto, rico podia chegar a ter mais que dez mil
escravos.
A palavra humanitas
deriva de humanus, humano,
relacionada a homo – o homem, ser
humano – e a humus – a terra.
Poder-se-ia, então, tentar conceituar humanitas,
em sua forma mais geral, como as maneiras de comportamento próprias do ser
humano terreno (Pereira, 1989: 417-418). Em Roma, a noção de humanitas começou a desenvolver-se a
partir de, aproximadamente, 200 a.C., como resultado dos contatos com a cultura
helênica, durante as guerras expansionistas no sul da península. Por volta dos
anos 170 a.C., junto à família do general Cipião Emiliano, formou-se um grupo
de intelectuais, o “Círculo dos Cipiões”, no qual, sempre por influência da
cultura helênica, o ideal de humanitas
desenvolveu-se bastante em três acepções básicas: filantropia universal,
que envolvia a solidariedade e a consciência da responsabilidade pessoal em face
do semelhante; cultura; e ideal estético e aristocrático
de vida. O homo Romanus,
com seus ideais de uir, pietas, fides, submetido à res publica e cultuador do mos maiorum, iniciava sua trajetória na
direção do homo humanus (Trenk, 1997:
47).
Com Cícero (106-43 a.C.),
o conceito amplia-se e aprofunda-se, adquirindo grande importância, atingindo
valor digno de conduzir uma vida. Para o Arpinate “humanitas é o atributo do homem, no que tange à sua condição e
natureza; implica num sentimento de preocupação com o semelhante, identificado
com a filantropia; corresponde a uma qualidade da nação e do indivíduo
civilizados; diz respeito aos deveres humanos, que não se restringem à
comunidade romana, mas também aos estrangeiros; constitui atitude de
benevolência, compreensão e tolerância para com o próximo e esforço pelo bem de
todos; revela senso de medida em comportamentos convenientes, desenvoltura no
trato em sociedade; enfim, inclui a cultura intelectual do homem, considerada
como constante aperfeiçoamento de seus dotes naturais e como produto dessa
formação. A cultura relaciona-se com a fruição estética, ou seja, com o prazer
da literatura e o gosto do belo, e manifesta-se essencialmente pela palavra.”
(Trenk, op. cit. pp.74-75).
Como, então, conciliar
todos esses ideais de humanitas, no
seio de uma sociedade escravagista? A tarefa parece impossível de ser
concretizada, mormente se a questão for vista com olhar moderno, impregnado de
ideais dos direitos humanos, há não muito propalados, considerada a escala histórica
dos acontecimentos. Assim, um primeiro cuidado a ser tomado no trato da questão
é ter sempre em mente a grande defasagem que há entre o contexto
histórico dos acontecimentos e a moderna análise que se procura fazer dos
mesmos, como bem apontam Beard e Henderson (1988: 18-22). Segundo Vayne (1992:
283-302), o estoicismo, a principal corrente filosófica seguida pelos romanos,
levado a Roma por Panécio de Rodes (c. 185-109 a.C.), grande filósofo da Escola
Estoica, que passou muitos anos de sua vida na Urbe, provavelmente chamado pelo historiador Políbio, onde se
manteve ligado ao Círculo dos Cipiões, ( Pereira, op. cit. p. 97), pode auxiliar na compreensão dessa situação tão
antagônica, qual seja o culto da humanitas
por uma sociedade escravocrata.
O estoicismo, diante do fato corriqueiro de
que os seres humanos, embora pertencentes a uma mesma espécie, a espécie
humana, apresentam capacidades físicas e psíquicas desiguais, propugna que nada
há de errado nisso, pois a natureza dá a todos os indivíduos a mesma
possibilidade de acesso à virtude, que é o bem maior que o indivíduo deve
almejar, e cuja conquista está dentro de cada indivíduo, só depende dele mesmo.
Todos terão acesso à virtude desde que cumpram condignamente a função no lugar
em que a Fortuna lhes atribuiu: se for imperador cumprirá com honra o cargo de
imperador, se for escravo cumprirá com determinação as suas tarefas de escravo.
Para os estoicos, o verdadeiro escravo é o homem não virtuoso, escravizado
pelas suas paixões. Essa é a chave que abre a porta para a humanitas entrar na sociedade escravista romana. Aos olhos
modernos, fazendo um pequeno trocadilho, essa filosofia parece mais cínica do
que estoica.
Mas afinal, não terá a humanitas exercido qualquer influência
sobre a mentalidade dos senhores de escravos, no sentido de “humanizar” a
relação escravo-patrão?
Para tentar responder a
essa questão vamos considerar dois exemplos de cidadãos proeminentes da
sociedade romana, cada um a seu tempo, ambos cônsules e grandes senhores de
escravos: Catão, o velho, e Cícero.
Catão, o velho, viveu
entre c. 234 a.C. e 149 a.C., tendo sido, assim, contemporâneo do Círculo dos
Cipiões, período em que, como vimos, o conceito de humanitas estava começando a desenvolver-se na Urbe. Da sua obra De Agricultura
(Caton, 1975), podemos extrair algumas passagens que ilustram qual a sua
postura diante do escravo. É dever do capataz cuidar para que os escravos não
estejam em más condições, não sofram de frio, e nem passem fome, não por razões
humanitárias, mas para que possam executar adequadamente o seu trabalho – Haec erunt uilici officia: ... familiae male
ne sit, ne algeat, ne esuriat (VII – Vilici
officia); a alimentação deve ser especificada em qualidade e quantidade, nos mínimos detalhes
para que a máquina humana continue funcionando adequadamente, sem desperdícios
( LXV – Familiae cibaria quanta dentur)
e, para acompanhar o pão: azeitonas caídas no chão ( ... oleae caducae: LXVII – Pulmentarium
familiae quantum detur); de dois em dois anos o escravo deve receber uma
nova túnica e uma nova capa, devolvendo em troca as antigas vestes para que
sejam transformadas em lençóis, para os escravos ( LXVIII – Vestimenta familiae). Se o escravo ficar
doente a ração diária pode ser diminuída: ...
cum serui aegrotarint, cibaria tanta dari non oportuisse (II, 4 – Patris familias officia)e para os
escravos malcomportados e velhos é recomendada a venda em leilão de coisas
inúteis: ... boues uetulos, armenta
delicula, oues deliculas, lanam, pelles, plostrum uetus, farramenta uetera,
seruum senem, seruum morbosum, et si quid aliut supersit, uendat (III, 7) –
Auctionem uti faciat).
Esse comportamento,
talvez refletisse, em parte, uma característica pessoal do velho censor,
conhecido pela rusticidade de seu comportamento, pela frugalidade e pela
parcimônia com que vivia, beirando à mesquinharia. Plutarco, escritor grego,
que viveu entre c. 50 e c. 125, em relação ao tratamento que Catão dispensava a
seus escravos escreveu (Plutarco, 1959: 317 – “Marcus Cato”, V,1): “Entretanto, da minha parte, eu considero o tratamento de seus
escravos como bestas de carga, usando-os
ao máximo, e então, quando eles estavam velhos, tirando-os de circulação e
vendendo-os, como a marca de uma natureza bem mediana, a qual não reconhece
ligação entre homem e homem (grifo nosso), mas somente aquela da necessidade.” Essa crítica, precisa ser
relativizada devido à defasagem entre a época em que foi feita e o período
criticado e devido à formação helenística do crítico, porém ela serve para
ilustrar como um homem culto do século I d.C. via o comportamento humano de um
homem do século I a.C., comportamento que poderia ter contornos pessoais do
velho censor, mas que talvez refletissem as características próprias da época.
O dinamarquês Poulsen,
especialista renomado em Arqueologia Clássica, apontou em seu livro sobre a
vida e os costumes dos romanos (Poulsen, 1950(?): 86) que: “Catão não era nenhum inexperiente ... Havia evidentes tendências
progressistas nesse homem de coração tão duro. Porém, o escravo era para ele, como
para todos os romanos seus contemporâneos (grifo nosso) “instrumentum vocale” (um instrumento com
voz), como o animal doméstico era um “instrumentum semivocale” e o arado e a
picareta instrumentos mudos (“instrumenta muta”).
Um século depois de
Catão, podemos encontrar uma situação bastante distinta no relacionamento entre
patrão e escravo na Urbe. Exemplos
disso podem ser extraídos da correspondência que Cícero mantinha com seu
escravo, e secretário particular, Tirão, em especial na carta em que o Arpinate
manifesta sua preocupação com a saúde do seu fiel servidor (Cicéron, 1967:
41-42): “Illud, mi Tiro, te rogo sumptu
ne parcas ulla in re, quod ad ualetudinem opus sit. Scripsi ad Curium quod
dixisses daret. Medico ipsi puto aliquid dandum esse, quo sit studiosior – O
que te peço, meu caro Tirão, é que não hesites em fazer despesa alguma que seja
útil para teu restabelecimento. Escrevi a Cúrio a fim de que te dê tudo que
pedires. Julgo que é conveniente dar ao próprio médico algo para que seja mais
dedicado.” (Ad Fam., XVI, 4).
Colocadas em confronto, a
época de Catão com a época de Cícero, constatamos a enorme diferença existente
no que tange ao tratamento ao escravo nos dois períodos. Claro que essa
comparação precisa ser relativizada devida à defasagem, à diferença de tempo
entre as duas situações (c. 100 anos), devida à própria natureza dos escravos,
no caso de Catão, escravos rurais, abrutalhados e desvalorizados, no caso de
Cícero, escravo urbano e instruído e, principalmente, pela personalidade dos
protagonistas: Catão, homem rústico, pouco afeito às elucubrações do espírito e
Cícero, todo o oposto disso, homem urbano, polido, amante das “belas letras”.
As palavras de Boissier
(1944: 95-96) parecem-nos bastante esclarecedoras e servem como que para
enfeixar as ideias por nós aqui desenvolvidas : “Ao estudar as relações de Tirão com seu amo, não é possível deixar de
fazer uma reflexão, a de que a antiga escravidão, vista por este aspecto e na
casa de um homem como Cícero, parece menos repugnante. Com efeito, nessa época
havia-se suavizado muito e as letras contribuíram em grande parte para esse
progresso. Elas difundiram, entre os que as estimavam, uma virtude nova, cujo
nome se vê repetidas vezes nas obras filosóficas de Cícero, a humanitas (lat. e grifo nossos), quer dizer, essa cultura do espírito que
enternece as almas. Por sua influência, a escravidão, sem ser atacada em seus
princípios, viu-se profundamente modificada em suas consequências. Essa mudança
fez-se silenciosamente. Não se tratou de enfrentar abertamente os valores
dominantes: até Sêneca, não se insistiu em proclamar o direito do escravo em
ser considerado como ser humano e continuou-se a excluí-lo das grandes teorias
que se desenvolviam sobre a fraternidade humana; porém, na realidade, ninguém
aproveitou tanto como ele da maior doçura dos costumes. Acabamos de ver como
Cícero tratava aos seus e isso não era exceção. Ático procedia como ele, e essa
humanitas (lat. e grifo nossos)
havia-se tornado quase um ponto de honra do qual se alardeava naquela sociedade
de homens cultos e letrados.... A escravidão pois, havia perdido muito de seus
rigores no final da república romana e nos primeiros tempos do império. Esse
progresso, que se atribui geralmente ao cristianismo, era mais antigo que ele,
e deve-se outorgar essa glória à filosofia e a literatura (humanitas
– n/obs.).”
A ideia de que ninguém
nasce escravo, é a sociedade que transforma as pessoas, só foi desenvolver-se
no século XIX ( Vayne, op. cit. p.
287), porém, não podemos esquecer que o desenvolvimento dessa ideia, resultado
de um longo e penoso processo histórico, tem suas origens na Urbe quando lá germinou a semente da humanitas.
Bibliografia
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CATON- De l’agriculture. Texto estabelecido,
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CICÉRON – Correspondance. Tomo V. Texto
estabelecido e traduzido por Jean
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GIORDANI, Mario Curtis – História de Roma. Antiguidade Clássica II.
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PEREIRA, Maria Helena da
Rocha – Estudos de História da Cultura
Clássica. II
Volume: Cultura Romana. 2. ed.
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PLUTARCO – “ Marcus Cato”
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POULSEN, Frederik – Vida y costumbres de los Romanos (viñetas
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VEYNE, Paul – “Humanitas: Romanos e não-Romanos” in: O
Homem Romano.
Andrea Giardina (org.).
Lisboa: Presença, 1992.
TRENK, Wilma Aparecida – O discurso Em defesa de Árquias (pro
Archia) e a
Humanitas de Cícero. Dissertação de Mestrado, Departamento de
Letras Clássicas
Vernáculas da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, São Paulo,
1997.
(em “Ensaios
Desnecessários” – inédito)
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