domingo, 3 de janeiro de 2016

A Humanitas na Urbe escravagista

      Desde os primórdios da realeza, Roma apresentou-se como uma sociedade escravocrata, primeiro com as guerras de unificação dos povos da península itálica, e depois, de maneira cada vez mais acentuada, com as guerras expansionistas, que deram origem ao império. Como instituição, o regime escravista sofreu alterações ao longo do tempo, em geral favoráveis aos escravos, isso graças a revoltas, pressão social da classe oprimida e também, a uma evolução do pensamento da classe dominante.
      A causa da escravidão poderia ser externa ou interna. A principal causa externa, após a unificação da península, advinha de prisioneiros nas guerras de conquista no exterior. Entre as causas internas podem ser arroladas (Giordani, 2001: 196-197): a) fraude no recenseamento; b) omissão do serviço militar; c) roubo em flagrante delito; d) devedor insolvente; e) filho vendido pelo pater familiae. Essa escravidão só se efetivaria com a venda feita no estrangeiro, pois a dignitas não admitia que um cidadão romano fosse escravizado em sua própria pátria, ainda que considerado um criminoso. Outra fonte de escravos era o nascimento de filhos gerados pelas escravas, pois prevalecia o princípio do partus sequitur ventrem, isto é, o nascido estava sujeito à situação da parturiente, independente da situação do pai: se a mãe fosse livre, a criança seria livre, mesmo que o pai fosse escravo; se a mãe fosse escrava, a criança também seria escrava, mesmo que o pai fosse livre.
      O escravo era considerado uma coisa (res), não possuindo personalidade ( seruus nullum caput habet). Estava sujeito ao poder de seu senhor (dominica potestas), que juridicamente tinha caráter absoluto de vida e de morte e estendia-se da pessoa física aos bens. Esses bens eram resultantes do costume, que se desenvolveu ao longo do tempo, de permitir ao escravo formar um pecúlio. A união entre escravo e escrava (contubernium) não tinha efeito legal, pois o escravo não podia contrair obrigações civis, não só de casamento como de qualquer outra natureza, mas o escravo podia gerar responsabilidade civil devido a eventuais delitos cometidos, responsabilidade essa que poderia recair sobre o dono do escravo ou sobre o próprio escravo.
      Na época das grandes conquistas o tráfico de escravos era intenso. Os comerciantes de escravos (mangones) exerciam sua atividade ao ar livre, para os escravos mais baratos ou nas tendas, para os escravos mais caros, nas proximidades do Forum. Os escravos eram colocados sobre um tablado giratório (catasta), com uma placa (titulus) no pescoço contendo informações úteis ao comprador tais como: nacionalidade, aptidões, defeitos. Os escravos recém-chegados tinham um dos pés embranquecido com gesso (gypsati).
    Os escravos eram divididos em duas grandes categorias: os particulares (serui privati) e os públicos (serui publici). Os escravos particulares destinavam-se aos trabalhos no campo, fazendo parte da familia rustica, ou aos trabalhos na cidade, fazendo parte da familia urbana. O escravo urbano era mais valorizado do que o rural, e a transferência da cidade para o campo era considerada como degradação e castigo. Na cidade o escravo exercia grande diversidade de ofícios, dependendo de suas aptidões e da posição social de seu dono. Esse fato possibilitou o surgimento de uma hierarquização social dentro da própria categoria. Distinguiam-se em ordinarii, os especializados em determinado ofício – cozinheiros, copeiros, camareiros, arquitetos, músicos, gramáticos, e em uulgares, os sem qualquer especialização e destinados aos trabalhos mais penosos. Os escravos públicos exerciam cargos secundários na administração tais como: auxiliares das magistraturas, dos pontífices, guarda de arquivos, bibliotecários, manutenção de obras públicas, limpeza urbana, execução de torturas e de penas capitais. O imperador tinha a seu serviço não menos do que vinte mil escravos, um senador, mil e um cidadão, ou mesmo um liberto, rico podia chegar a ter mais que dez mil escravos.
      A palavra humanitas deriva de humanus, humano, relacionada a homo – o homem, ser humano – e a humus – a terra. Poder-se-ia, então, tentar conceituar humanitas, em sua forma mais geral, como as maneiras de comportamento próprias do ser humano terreno (Pereira, 1989: 417-418). Em Roma, a noção de humanitas começou a desenvolver-se a partir de, aproximadamente, 200 a.C., como resultado dos contatos com a cultura helênica, durante as guerras expansionistas no sul da península. Por volta dos anos 170 a.C., junto à família do general Cipião Emiliano, formou-se um grupo de intelectuais, o “Círculo dos Cipiões”, no qual, sempre por influência da cultura helênica, o ideal de humanitas desenvolveu-se bastante em três acepções básicas: filantropia universal, que envolvia a solidariedade e a consciência da responsabilidade pessoal em face do semelhante; cultura; e ideal estético e aristocrático de vida. O homo Romanus, com seus ideais de uir, pietas, fides, submetido à res publica e cultuador do mos maiorum, iniciava sua trajetória na direção do homo humanus (Trenk, 1997: 47).
      Com Cícero (106-43 a.C.), o conceito amplia-se e aprofunda-se, adquirindo grande importância, atingindo valor digno de conduzir uma vida. Para o Arpinate “humanitas é o atributo do homem, no que tange à sua condição e natureza; implica num sentimento de preocupação com o semelhante, identificado com a filantropia; corresponde a uma qualidade da nação e do indivíduo civilizados; diz respeito aos deveres humanos, que não se restringem à comunidade romana, mas também aos estrangeiros; constitui atitude de benevolência, compreensão e tolerância para com o próximo e esforço pelo bem de todos; revela senso de medida em comportamentos convenientes, desenvoltura no trato em sociedade; enfim, inclui a cultura intelectual do homem, considerada como constante aperfeiçoamento de seus dotes naturais e como produto dessa formação. A cultura relaciona-se com a fruição estética, ou seja, com o prazer da literatura e o gosto do belo, e manifesta-se essencialmente pela palavra.” (Trenk, op. cit. pp.74-75).
      Como, então, conciliar todos esses ideais de humanitas, no seio de uma sociedade escravagista? A tarefa parece impossível de ser concretizada, mormente se a questão for vista com olhar moderno, impregnado de ideais dos direitos humanos, há não muito propalados, considerada a escala histórica dos acontecimentos. Assim, um primeiro cuidado a ser tomado no trato da questão é ter sempre em mente a grande defasagem que há entre o contexto histórico dos acontecimentos e a moderna análise que se procura fazer dos mesmos, como bem apontam Beard e Henderson (1988: 18-22). Segundo Vayne (1992: 283-302), o estoicismo, a principal corrente filosófica seguida pelos romanos, levado a Roma por Panécio de Rodes (c. 185-109 a.C.), grande filósofo da Escola Estoica, que passou muitos anos de sua vida na Urbe, provavelmente chamado pelo historiador Políbio, onde se manteve ligado ao Círculo dos Cipiões, ( Pereira, op. cit. p. 97), pode auxiliar na compreensão dessa situação tão antagônica, qual seja o culto da humanitas por uma sociedade escravocrata.
     O estoicismo, diante do fato corriqueiro de que os seres humanos, embora pertencentes a uma mesma espécie, a espécie humana, apresentam capacidades físicas e psíquicas desiguais, propugna que nada há de errado nisso, pois a natureza dá a todos os indivíduos a mesma possibilidade de acesso à virtude, que é o bem maior que o indivíduo deve almejar, e cuja conquista está dentro de cada indivíduo, só depende dele mesmo. Todos terão acesso à virtude desde que cumpram condignamente a função no lugar em que a Fortuna lhes atribuiu: se for imperador cumprirá com honra o cargo de imperador, se for escravo cumprirá com determinação as suas tarefas de escravo. Para os estoicos, o verdadeiro escravo é o homem não virtuoso, escravizado pelas suas paixões. Essa é a chave que abre a porta para a humanitas entrar na sociedade escravista romana. Aos olhos modernos, fazendo um pequeno trocadilho, essa filosofia parece mais cínica do que estoica.
      Mas afinal, não terá a humanitas exercido qualquer influência sobre a mentalidade dos senhores de escravos, no sentido de “humanizar” a relação escravo-patrão?
      Para tentar responder a essa questão vamos considerar dois exemplos de cidadãos proeminentes da sociedade romana, cada um a seu tempo, ambos cônsules e grandes senhores de escravos: Catão, o velho, e Cícero.
      Catão, o velho, viveu entre c. 234 a.C. e 149 a.C., tendo sido, assim, contemporâneo do Círculo dos Cipiões, período em que, como vimos, o conceito de humanitas estava começando a desenvolver-se na Urbe. Da sua obra De Agricultura (Caton, 1975), podemos extrair algumas passagens que ilustram qual a sua postura diante do escravo. É dever do capataz cuidar para que os escravos não estejam em más condições, não sofram de frio, e nem passem fome, não por razões humanitárias, mas para que possam executar adequadamente o seu trabalho – Haec erunt uilici officia: ... familiae male ne sit, ne algeat, ne esuriat (VII – Vilici officia); a alimentação deve ser especificada em  qualidade e quantidade, nos mínimos detalhes para que a máquina humana continue funcionando adequadamente, sem desperdícios ( LXV – Familiae cibaria quanta dentur) e, para acompanhar o pão: azeitonas caídas no chão ( ... oleae caducae:   LXVII – Pulmentarium familiae quantum detur); de dois em dois anos o escravo deve receber uma nova túnica e uma nova capa, devolvendo em troca as antigas vestes para que sejam transformadas em lençóis, para os escravos ( LXVIII – Vestimenta familiae). Se o escravo ficar doente a ração diária pode ser diminuída: ... cum serui aegrotarint, cibaria tanta dari non oportuisse (II, 4 – Patris familias officia)e para os escravos malcomportados e velhos é recomendada a venda em leilão de coisas inúteis: ... boues uetulos, armenta delicula, oues deliculas, lanam, pelles, plostrum uetus, farramenta uetera, seruum senem, seruum morbosum, et si quid aliut supersit, uendat (III, 7) – Auctionem uti faciat).
      Esse comportamento, talvez refletisse, em parte, uma característica pessoal do velho censor, conhecido pela rusticidade de seu comportamento, pela frugalidade e pela parcimônia com que vivia, beirando à mesquinharia. Plutarco, escritor grego, que viveu entre c. 50 e c. 125, em relação ao tratamento que Catão dispensava a seus escravos escreveu (Plutarco, 1959: 317 – “Marcus Cato”, V,1): “Entretanto, da minha parte, eu considero o tratamento de seus escravos  como bestas de carga, usando-os ao máximo, e então, quando eles estavam velhos, tirando-os de circulação e vendendo-os, como a marca de uma natureza bem mediana, a qual não reconhece ligação entre homem e homem (grifo nosso), mas somente aquela da necessidade.” Essa crítica, precisa ser relativizada devido à defasagem entre a época em que foi feita e o período criticado e devido à formação helenística do crítico, porém ela serve para ilustrar como um homem culto do século I d.C. via o comportamento humano de um homem do século I a.C., comportamento que poderia ter contornos pessoais do velho censor, mas que talvez refletissem as características próprias da época.
       O dinamarquês Poulsen, especialista renomado em Arqueologia Clássica, apontou em seu livro sobre a vida e os costumes dos romanos (Poulsen, 1950(?): 86) que: “Catão não era nenhum inexperiente ... Havia evidentes tendências progressistas nesse homem de coração tão duro. Porém, o escravo era para ele, como para todos os romanos seus contemporâneos (grifo nosso) “instrumentum vocale” (um instrumento com voz), como o animal doméstico era um “instrumentum semivocale” e o arado e a picareta instrumentos mudos (“instrumenta muta”).
      Um século depois de Catão, podemos encontrar uma situação bastante distinta no relacionamento entre patrão e escravo na Urbe. Exemplos disso podem ser extraídos da correspondência que Cícero mantinha com seu escravo, e secretário particular, Tirão, em especial na carta em que o Arpinate manifesta sua preocupação com a saúde do seu fiel servidor (Cicéron, 1967: 41-42): “Illud, mi Tiro, te rogo sumptu ne parcas ulla in re, quod ad ualetudinem opus sit. Scripsi ad Curium quod dixisses daret. Medico ipsi puto aliquid dandum esse, quo sit studiosior – O que te peço, meu caro Tirão, é que não hesites em fazer despesa alguma que seja útil para teu restabelecimento. Escrevi a Cúrio a fim de que te dê tudo que pedires. Julgo que é conveniente dar ao próprio médico algo para que seja mais dedicado.”  (Ad Fam., XVI, 4).
     Colocadas em confronto, a época de Catão com a época de Cícero, constatamos a enorme diferença existente no que tange ao tratamento ao escravo nos dois períodos. Claro que essa comparação precisa ser relativizada devida à defasagem, à diferença de tempo entre as duas situações (c. 100 anos), devida à própria natureza dos escravos, no caso de Catão, escravos rurais, abrutalhados e desvalorizados, no caso de Cícero, escravo urbano e instruído e, principalmente, pela personalidade dos protagonistas: Catão, homem rústico, pouco afeito às elucubrações do espírito e Cícero, todo o oposto disso, homem urbano, polido, amante das “belas letras”.
      As palavras de Boissier (1944: 95-96) parecem-nos bastante esclarecedoras e servem como que para enfeixar as ideias por nós aqui desenvolvidas : “Ao estudar as relações de Tirão com seu amo, não é possível deixar de fazer uma reflexão, a de que a antiga escravidão, vista por este aspecto e na casa de um homem como Cícero, parece menos repugnante. Com efeito, nessa época havia-se suavizado muito e as letras contribuíram em grande parte para esse progresso. Elas difundiram, entre os que as estimavam, uma virtude nova, cujo nome se vê repetidas vezes nas obras filosóficas de Cícero, a humanitas (lat. e grifo nossos), quer dizer, essa cultura do espírito que enternece as almas. Por sua influência, a escravidão, sem ser atacada em seus princípios, viu-se profundamente modificada em suas consequências. Essa mudança fez-se silenciosamente. Não se tratou de enfrentar abertamente os valores dominantes: até Sêneca, não se insistiu em proclamar o direito do escravo em ser considerado como ser humano e continuou-se a excluí-lo das grandes teorias que se desenvolviam sobre a fraternidade humana; porém, na realidade, ninguém aproveitou tanto como ele da maior doçura dos costumes. Acabamos de ver como Cícero tratava aos seus e isso não era exceção. Ático procedia como ele, e essa humanitas (lat. e grifo nossos) havia-se tornado quase um ponto de honra do qual se alardeava naquela sociedade de homens cultos e letrados.... A escravidão pois, havia perdido muito de seus rigores no final da república romana e nos primeiros tempos do império. Esse progresso, que se atribui geralmente ao cristianismo, era mais antigo que ele, e deve-se outorgar essa glória à filosofia e a literatura (humanitas – n/obs.).”   
    A ideia de que ninguém nasce escravo, é a sociedade que transforma as pessoas, só foi desenvolver-se no século XIX ( Vayne, op. cit. p. 287), porém, não podemos esquecer que o desenvolvimento dessa ideia, resultado de um longo e penoso processo histórico, tem suas origens na Urbe quando lá germinou a semente da humanitas.    




Bibliografia

BEARD, Mary e HENDERSON, John – Antiguidade clássica: uma brevíssima
introdução. Tradução, Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
BOISSIER, Gaston – Ciceron y sus amigos. Estudio de la Sociedad Romana
del Tiempo de César. Tradução de Antonio Salazar. Buenos Aires: Libreria y
Editorial “El Ateneo”, 1944.
CATON- De l’agriculture. Texto estabelecido, traduzido e comentado por
Raoul Goujard. Paris: “Les Belles Lettres”, 1975.
CICÉRON – Correspondance. Tomo V. Texto estabelecido e traduzido por Jean
Bayet. Paris: “Les Belles Lettres”,1967.
GIORDANI, Mario Curtis – História de Roma. Antiguidade Clássica II. 14. ed.
Petrópolis: Vozes, 2001.
PEREIRA, Maria Helena da Rocha – Estudos de História da Cultura Clássica. II
Volume: Cultura Romana. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989.
PLUTARCO – “ Marcus Cato” in: Plutarch’s lives. Tradução de Bernadotte
Perrin. Londres: William Heinemann Ltd, v. II, 1959.
POULSEN, Frederik – Vida y costumbres de los Romanos (viñetas culturales).
Tradução de Daphne Jacobsen de Garcia Paladini, com a colaboração de Antonio
García y Bellido. Madri: Revista de Occidente, 1950(?).
VEYNE, Paul – “Humanitas: Romanos e não-Romanos” in: O Homem Romano.
Andrea Giardina (org.). Lisboa: Presença, 1992.
TRENK, Wilma Aparecida – O discurso Em defesa de Árquias (pro Archia) e a
Humanitas de Cícero. Dissertação de Mestrado, Departamento de Letras Clássicas
Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, São Paulo, 1997.


(em “Ensaios Desnecessários” – inédito)

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