domingo, 31 de janeiro de 2016

Carmen 16. Catulo.

1.      O texto latino e uma tradução paradigmática (Catulo, 1996)

          Pedicabo ego uos et irrumabo
          Aureli pathice et cinaede Furi,
          qui me ex uersiculis meis putastis,
          quod sunt molliculi, parum pudicum.
          Num castum esse decet pium poetam                     5
          ipsum, uersiculos nihil necesse est,
          qui tum denique habent salem ac leporem,
          si sunt molliculi ac parum pudici
          et quod pruriat incitare possunt,
          non dico pueris, sed his pilosis                     10                
          qui duros nequeunt mouere lumbos.
          Vos, quei milia multa basiorum
          legistis, male me marem putatis?
          Pedicabo ego uos et irrumabo.

          Meu pau no cu, na boca, eu vou meter-vos,
          Aurélio bicha e Fúrio chupador,
          que por meus versos breves, delicados,
          me julgastes não ter nenhum pudor.
          A um poeta pio convém ser casto                       5
          ele mesmo, aos seus verso não há lei.
          Estes só têm sabor e graça quando
          são delicados, sem nenhum pudor,
          e quando incitam o que excite não
          digo os meninos, mas esses peludos                   10
          que jogo de cintura já não têm.
          E vós, que muitos beijos (aos milhares!)
          já lestes, me julgais não ser viril?
          Meu pau no cu, na boca, eu vou meter-vos. 

2.      Comentários gerais

Poema em catorze versos com a mesma métrica do início ao fim sem separação em estrofes (“catasticon”) no metro hendecassílabo falécio:
          Pe-di/ ca-boe-go vos-et/ ir-ru/ ma-bo    
                ‘_   _/ ‘_    -     -    _  -/ ‘_   -/    ‘_   -  espondeu/dátilo troqueu/troqueu/troqueu
                Au-re/ li-pa-thi ceet-ci/ nae-de/ Fu-ri                                                     
                 ‘_  _/ ‘_  -     -     _   -/   ‘_    -/  ‘_   -
                qui-meex/ uer-si-cu lis-me/ is-pu/ tas-tis 
                  ‘_    _/     ‘_   -   -   _    -/ ‘_   -/   ‘_    _                  (última sílaba é “anceps”
                quod-sunt/ mol-li-cu li-pa/ rum-pu/ di-cum   
                   ‘_    _/      ‘_   -   -   _  -/  ‘_      -/   ‘_  -           (etc.)
Obs. Convenção: _ sílaba longa; - sílaba breve; / separação dos pés; ‘ tempo forte.

Inclui-se entre os primeiros sessenta poemas do Livro, que é completado pelos quatro poemas “longos” (61-64) e os cinquenta e dois restantes (65-116), da seção elegíaca da obra. Vale notar que dentre esses primeiros sessenta poemas, considerados polímetros curtos, por serem de pequena extensão e compostos em mais de um tipo de métrica, quarenta foram escritos em hendecassílabos falécios (67%), indicando nítida preferência do autor por esse tipo de métrica fato que, como veremos mais adiante, deve estar relacionado com o conteúdo (res) da maioria dos mesmos.
            O poema trata de um “eu”, protagonista, invectivando, em baixíssimo nível, duas personagens: Aurélio e Fúrio por terem eles julgado os poemas do protagonista, que são breves, delicados, de não ter nenhum pudor. Defende-se desses argumentos, exatamente de forma breve e sem pudor, afirmando que uma coisa é a pessoa física do poeta outra é a pessoa artística. Ao primeiro, se for pio, convém que seja casto (por óbvia questão de coerência de comportamento, podemos inferir), quanto ao segundo, a liberdade expressiva deve ser total, estando porém implícita a obediência à preceptiva daquilo que o poeta considera adequado (decorum) para o fazer poético, que é no seu entender justamente elaborar poemas delicados e despudorados, que incitem  à excitação a “plateia”. O protagonista traz à baila, então, sua virilidade, que fora questionada, indagando às tais personagens se elas já não tiveram provas suficientes da mesma, lendo outros poemas amorosos que ele compusera? Por isso, tomem invectiva curta, grossa e penetrante.

3.      Subjetividade ou Persona Poética

A poesia que coloca em cena como protagonista um “eu” traz quase que invariavelmente junto a si a questão da subjetividade ou não desse “eu”, e por extensão, da veracidade (fidedignidade à realidade) ou não da matéria poética tratada. Uns consideram esse “eu” como um sujeito lírico substancial, isto é, confundem-no com a própria pessoa física do poeta; outros o concebem como um sujeito lírico semiótico, qual seja, ele é uma Persona (uma máscara) Poética distinta da figura real do poeta (Achcar, 1994:37-seq.).
No âmbito da poesia latina antiga, embora as opiniões nem sempre estejam plenamente em concordância, a tendência geral da crítica literária mais recente é considerar o “eu” como uma Persona Poética. Esse “eu”, também dito lírico, seria assim, um sujeito de enunciação (enunciador) fictício, cuja enunciação (o poema) mimetizaria (representaria) um “enunciado de realidade” (possível). Várias são as justificativas para sustentar esse ponto de vista: a poesia latina antiga sendo eminentemente tópica, isto é, alicerçada em tópoi ou lugares-comuns, apresentaria tendência natural à objetividade na sua construção; sendo poesia voltada para o exterior, para o público (entendido como o círculo (de raio não muito grande, não percamos de vista esse fato!) dos intelectuais que fruíam arte), apresentaria tendência natural à objetividade na sua recepção. Pegando uma carona na elegia e ampliando nossa visão para a lírica, podemos dizer que o processo construtivo do poema estaria baseado em artifícios artísticos sofisticados, bem delimitados, apropriados e elaborados pelo poeta, com os quais ele cria um “eu” Persona (máscara) Poética que protagoniza uma matéria literária na qual age de acordo com determinado éthos com a finalidade de maximizar a verossimilhança dessa matéria e, por conseguinte, estabelecer um laço bem estreito de fides entre o receptor e a obra (Martins, Paulo, 1996). As personae são tratadas dentro de um sistema retórico-poético que procura lhes dar éthoi da maior “sinceridade” possível (uso de figuras públicas, como personagens, uso de eventos da vida do poeta como matéria ficcional), de tal forma que realidade e ficção se imbricam e criam duas verdades simultâneas, deliberadamente, uma desmentindo a outra (Veyne, 1985:27), constituindo-se numa “poesia pseudo-autobiográfica onde o poeta é conivente com seus leitores às custas de seu próprio Ego” (Veyne, op. cit. p. 74). Toda arte consistirá no desenvolvimento de um contágio emocional entre o poeta e o receptor por meio do poema, no qual artifícios poéticos ocultos levam à impressão de sinceridade: ars est celare artem  - arte é ocultar a arte.
O C. 16 do Livro de Catulo pode ser considerado paradigmático para a compreensão do “eu” lírico como Persona Poética. Nos versos 5 e 6 o poeta explicita, cristalinamente cremos, o que ele pensa da questão ao afirmar: A um poeta pio convém ser casto/ ele mesmo, aos seus versos não há lei./ Fica evidente a separação que Catulo faz da pessoa do poeta ( o demonstrativo ipsum é ali emblemático: poetam ipsum – o poeta ele mesmo) da Persona Poética, metonimicamente representada por seus poemas (uersiculos) que devem seguir as suas próprias leis (nihil necesse est – nada é necessário = tudo é permitido). Essa liberdade deve ser, contudo, relativizada visto Catulo preceituar e obedecer diretrizes, tanto de conteúdo (res), quanto de forma (uerba), para o seu fazer poético.

4.      Metapoesia: poemetos e obscenidade.

Catulo, herdeiro da tradição helenística alexandrina de Calímaco, para quem: tò mega biblíon íson tôi megáloi kakôi – um grande livro é igual a uns grandes males, desenvolveu praticamente toda a sua poética procurando satisfazer esse preceito calimaquiano, o que deu origem em Roma, juntamente com a obra de outros seguidores das mesmas ideias, da chamada poesia neotéria. O C. 16 já em si obedece a essa preceptiva, com seus econômicos, porém densos, catorze versos, nos quais o poeta disserta com percuciência (conotativa e denotativa), um tanto explícita, bem mais implícita, sobre o que entende ser o poiên, o fazer poesia. Esse poema é, então, exemplar como metapoema (poema falando de poesia, teorizando sobre poesia). Os inúmeros termos técnicos, característicos do léxico neotérico e com significados bem precisos, presentes no texto assim o configuram: uersiculis (v.3); molliculi (v.4); uersicullos (v.6); salem (v.7); leporem (v.7); molliculi (v.8); pueris (v.10); duros (v.11). Versiculi – versículos, molliculi – delicadozinhos (lit.), são diminutivos cuja razão de ser reporta-se ao conceito de nugae – nugas, bagatelas, ninharias (do grego paígnia). Não devem ser tomados como algo menor, pois sob a aparente modesta pequenez está contida toda a verdadeira grandeza da poesia: ser breve e delicada. Poesia que, pela sua ligeireza, deve ser preferida em lugar da poesia longa e dura. A poética de Catulo imbrica-se na de Calímaco, resgata uma tradição e faz escola. Molliculi uersiculi, é metáfora de boa poesia, e opõe-se a duros lumbos (duri contra molliculi), que podem ser tomados como metáfora de poesia ruim. Salem é o sal, o tempero, o sabor, o que tem gosto, o que não é insosso, não literal, mas metaforizado no que é saboroso para o paladar intelectual. Leporem é a graça, a delicadeza outro ingrediente da poesia molllicula à qual se acrescenta, também (por que não?), parum pudici – pouco pudor. Com que finalidade? Excitar a “plateia” à recepção da obra. Poesia voltada para o público, com caráter social. Nem tanto o jovem amante, (puer), delicado e sensível, naturalmente mais apto à apreciação da boa poesia, mas, particularmente, os peludões de duros lumbos, encruados diante de arte maior (no conteúdo, embora menor na forma). Catulo dá a impressão de estar fazendo poesia de circunstância, tanto em forma (uerba) quanto em matéria (res), mas faz a rigor metapoesia. Constrói o seu poema em  tom baixo, com aparência de vulgaridade, brincando, jogando – de lusus, ludere – com o léxico e com as ideias, fazendo na verdade pura teoria poética. Tudo com muita ironia, com muita sátira.
Mais que um poeta do amor, um poeta lírico, Catulo foi um iambógrafo, ou na linguagem de Roma, um satirista e devemos, portanto, entender sua mistura de obscenidade grotesca com ameaças como uma herança antiga da – iambikh idea, “ideia iâmbica” –  já manifestada em Arquíloco e Hipônax, passando pela Comédia Antiga. Assim, toda a insinuação sexual do C. 16 não deve ser tomada ao pé da letra, pois ela é parte do efeito literário pretendido, que é função do gênero (Newman, 1990:72,139,171). Cabe notar que, embora a matéria do poema seja iâmbica, a métrica não o é, fato que não deve sofrer estranhamento visto ser a natureza temática do iamboj que caracterizava o metro e não o contrário, natureza essa cuja essência era seu caráter notoriamente satírico-agressivo. O próprio Catulo chamava suas invectivas de iambi, ainda que sob o ponto de vista métrico elas não se alinhassem necessariamente à tradição iambógrafa grega, isto sob o aspecto formal. Em contrapartida, sob o ponto de vista de matéria, ainda que a invectiva fosse uma característica notável do gênero, iamboj não significava, porém, sempre apenas invectiva (citado por Oliva Neto, 1999:80). Para Granarolo (1967:165-6), numa visão contaminada por certo biografismo, Catulo teria uma propensão natural para a licenciosidade à qual ele teria unido literariamente, entre outras fontes, de herança grega, a fábula togata, a atelana e o mimo, de herança latina, com a finalidade de provocar hilaridade tendo em vista a mordacitas – a mordacidade inveterada do público romano e seu pendor bem conhecido à diffamatio – à difamação. Se dermos crédito a essas afirmações somos mais uma vez levados a concluir que a poesia de Catulo é objetiva, social, visando o público e não deve ser entendida literalmente, pois ela é toda construída sobre conceitos literários que visam provocar efeitos também literários. Assim, a obscenidade presente não deve ser entendida como mera imoralidade, mas sim como adequação ao gênero satírico ao qual pertenceria o poema.
  Pedicare e irrumare nomeariam no poema não penetrações literais, mas penetrações poéticas. O sujeito da ação, o elemento ativo da ação, é a Persona Poética que aqui podemos nomear Persona Satírica. Ela é a agenciadora da “agressão sexual” (fictícia) contra Aurélio e Fúrio que poderíamos considerar representados metonimicamente pelos duros lumbos que por sua vez, como vimos, seriam a representação metafórica de poesia ruim. Então, por correspondência figurativa podemos concluir que a Persona Satírica quer pedicare e irrumare não Aurélio e Fúrio, meros personagens da sátira burlesca, mas sim a poesia ruim, poesia pathica et cinaeda. Esse, em nossa compreensão, o verdadeiro alvo da virulenta agressão propugnada pelo poema.
O poeta finaliza esnobando, pelo engrandecimento, en passant, de sua própria poesia, ao fazer, não intertextualidade, procedimento usual na poesia antiga, cultuadora da alusão, mas “intratextualidade, concebida como evocação, no curso de uma obra, de passagens da mesma obra: alusão interna, portanto” (Vasconcellos, 2001:130). Refere aos milia multa basiorum (v. 12) alusão ao Carmen 5 do Livro, poema amoroso de tom elevado que tem como interlocutora a Persona Amante, Lésbia, carpe diem pré-horaciano (Viuamus, mea Lesbia, etc.). O último verso retoma exatamente o primeiro, o que serve para explicitar com vigorosa ênfase qual a ação pretendida pelo “eu” lírico, fechando o poema, que tem, assim, a estrutura formal de uma composição em anel.   
                 
5.      Conclusões
O pequenino Carmen 16 (num símile certamente anacrônico o qual, porém, não conseguimos evitá-lo) como um torpedo encapsulado por dois explosivos versos idênticos abriga um miolo burlesco que burla nossa compreensão imediata e com aparente grotesca obscenidade pretende (cremos nós) tirar de cena (obscena) a poesia ruim, explodindo-a satírica, irônica e hilariamente em nossas caras. No singelo C. 16, em nosso entender, longe a intenção de Catulo, via a Persona Satírica inventada, de meter o pau nos pobres Aurélio e Fúrio. Pretendeu, Catulo, isto sim, baixar o cacete na má poesia.

Bibliografia

ACHCAR, Francisco. Lírica e Lugar-Comum: Alguns Temas de Horácio e sua Presença em Português. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994.
CATULO. O Livro de Catulo. Tradução comentada dos poemas de Catulo. João Angelo Oliva Neto. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.
GRANAROLO, Jean. L’Oeuvre de Catulle – Aspects Religieux, Éthiques et Stylistiques. Paris: “Les Belles Lettres”, 1967.
MARTINS, Paulo. Sexto Propércio.Monobiblos: éthos, verossimilhança e fides no discurso elegíaco do século I a.C.. Dissertação de mestrado. Orientador: Profa. Dra. Ingeborg Braren. Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, 1996.
NEWMAN, John Kevin. Roman Catullus and the Modification of the Alexandrian Sensibility. Germany: Weidmann, 1990.
OLIVA NETO, João Angelo. Falo no jardim: Priapéia grega, Priapéia latina. Tese de doutoramento. Orientador: Prof. Dr. Antonio Medina Rodrigues. Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, 1999.
VASCONCELLOS, Paulo Sérgio de. Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP/ FAPESP, 2001.
VAYNE, Paul. A elegia erótica romana (O amor, a poesia e o Ocidente).Tradução de Milton Meira do Nascimento e Maria das Graças de Souza Nascimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.


(em “Ensaios Desnecessários” – inédito)

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