sábado, 25 de outubro de 2014

DESFAZER O NÓ DA GRAVATA

Desfazer o nó da gravata
Não contar mais bravata
Vestir o pijama:
Logo mais Jesus chama

Ficar daqui pra lá
De lá pra cá
Ninguém mais ama:
Logo mais Jesus chama

Única diversão
Assistir televisão
Ir cedo pra cama:
Logo mais Jesus chama

Dentadura postiça
Aparelho de surdez
Parece até injustiça
Falta só a invalidez

Pau sempre mole
Em vez de crescer se recolhe
Do garanhão não sobrou nem a fama:
Logo mais Jesus chama

Jogado pras traças
Em nada achar graça
Por melhor o programa:
Logo mais Jesus chama

Dor no peito
Coração com defeito
Urgente eletrocardiograma
Tarde demais: que disgrama!
Jesus chamou.


(do livro “Poesia... Afinal pra quê?”)
http://www.4shared.com/office/K2pKaABwba/Poesia_Afinal_pra_qu.html

sábado, 18 de outubro de 2014

A Galinha que não botava Ovo nenhum

Era uma vez um homem muito, mas muito pobre, mal tendo onde cair morto (e olha que cair morto a gente pode cair praticamente em qualquer lugar, quer dizer, não em todos os lugares, evidentemente, mas que são muitos os lugares onde se pode cair morto ninguém em sã consciência haverá de contestar, espero). Seu único bem era uma galinha que ele ganhara numa rifa beneficente. Algum pentelho com certeza vai querer perguntar como um homem tão pobre pôde comprar um bilhete de rifa beneficente se era tão pobre que mal tinha onde cair morto? A resposta é simples, pentelhos de merda. Ele não comprou. Ele ganhou da esposa de um conhecido abastado comerciante conhecida por seu elevado espírito filantrópico e que vivia praticando ações filantrópicas ali nas proximidades do viaduto embaixo do qual o pobre homem pobre tinha o seu lar.
Como o pobre homem pobre não alimentava a galinha (coitado, não conseguia alimentar nem a si próprio quanto mais outro ser, embora irracional, por mais que tivesse pena dele [não dele – homem – mas dele – ser irracional - ou seja - dela - a galinha]), ela era raquítica, despenada, dava pena. Por não ingerir as quantidades mínimas biologicamente necessárias de proteínas, carboidratos e sais minerais, ela era incapaz de pôr ovos apesar de botar todo seu instintivo esforço em, diariamente, tentar fazê-lo. Ela cisca-cisca-ciscava pelas calçadas, e no asfalto das avenidas das imediações do viaduto em que morava com o seu dono, expondo-se à violência urbana dos pés transeuntes e dos automotivos pneus, colocando em risco a própria vida em busca de um algo qualquer de comer. Mas os pardais e os pombos eram muito mais espertos e sempre levavam vantagem em tudo. O pobre homem pobre, privado assim de uma omelete, ou de um ovo poché, ou, até de um simples ovo estrelado, às vezes pensava em fazer uma canja, mesmo que ralinha de galinha raquítica, ou um ensopado magro, mas logo afastava tal pensamento. Ele afeiçoara-se à bichinha. Nas noites frias dormiam abraçadinhos e apesar de desdentada e feia ela era, afinal, sua fiel companheira...
Eis, porém, que, um belo dia, um vendedor ambulante de bilhete de loteria passando por ali se encantou com a galinhazinha, embora ela fosse raquítica, despenada, desdentada e feia, conforme já dito. Mas a vida é assim mesmo, cheia de mistérios; e amor é coisa que a gente não explica, amor é coisa que a gente sente; e quem ama o feio bonito lhe parece e o amor do ambulante pela galinha foi fulminante, amor à primeira vista. Ele propôs, então, ao pobre homem pobre um negócio: — Fico com a galinha em troca destas três últimas frações da federal, corre amanhã, é o avestruz, meu, vai que você ganha, já pensou?
O pobre homem pobre a princípio rejeitou veementemente a oferta do vendedor ambulante de bilhete de loteria. Aquela galinha era seu único bem, e ele pensava bem muito menos no sentido material e muito mais no sentido espiritual. Ela era sua fiel companheira das horas alegres, que eram tão poucas, e das horas tristes, que eram tantas. Dos dias ensolarados e dos nem tanto. Das noites quentes e, principalmente, das noites frias. Mas o vendedor ambulante de bilhete de loteria, como bom vendedor, colocou toda a Ciência Retórica a serviço de sua causa, e argumentou e contra-argumentou até que conseguiu convencer o pobre homem pobre. Seu argumento final arrasador foi que, se ele (o pobre homem pobre) realmente amava a bichinha, devia deixar de lado seu egoísmo, e aceitar o negócio para o bem dela, pois do jeito que as coisas estavam, se ela não morresse antes esmagada sob as rodas de um carro, muito breve ia morrer de inanição; enquanto ele (o vendedor ambulante de bilhete de loteria) podia dar um galinheiro decente pra ela, além de ração balanceada à vontade, diariamente.
Fechado o negócio, o vendedor ambulante de bilhete de loteria meteu a galinha cocoricó no sovaco e sus se picou dali. Aquele dia, o pobre homem pobre passou uma noite de cão sem a galinhazinha sua fiel companheira. No dia seguinte madrugou, saiu logo cedo e ficou o dia todo catando papel (catar papel era seu meio miserável, porém honesto, de subsistência). No final da tarde, ao passar diante de uma casa lotérica, lembrou-se de conferir o resultado. O número sorteado no primeiro prêmio era igualzinho ao número impresso nos seus três bilhetes. O pobre homem pobre deixou de ser pobre (não ficou milionário, mas deixou de ser pobre). Comprou um sobradinho cinco por vinte e cinco geminado num bairro classe média média. Comprou um opala quatro portas. Botou o resto do dinheiro na poupança e passou a viver de juros. Jurou nunca mais catar papel. Hoje só cata pulga do seu novo fiel companheiro vira-lata e coça o saco (o seu não o do cachorro).


(do livro “Contos Medonhos”)

sábado, 11 de outubro de 2014

O BAILE DOS CACHORROS

Era uma vez, há muito tempo, quando os animais ainda falavam, os cachorros decidiram organizar um grande baile para comemorar o Dia do Cão.
Como era esperada a presença de um grande número de cães de todas as raças, cores, todos os tamanhos, tipos, credos, sexos etc. etc. os organizadores decidiram por bem que os convidados ao chegar à festa deveriam deixar o rabo na portaria do salão. Motivo: evitar que no calor do baile, com o balança pra cá, balança pra lá, típica manifestação de alegria,  os rabos viessem a se enroscar uns nos outros o que provocaria inevitável confusão. E assim foi feito.
À medida que os cachorros chegavam ao baile, tiravam o rabo, entregavam para o porteiro e recebiam uma senha para retirar o respectivo rabo quando fossem embora.
O baile seguia calmamente com os pares caninos dando voltas no salão. A orquestra tocava bolero, tango, mambo e principalmente pagode e samba de gafieira porque aquela cachorrada era chegada num sambinha.
Lá pelo meio da madrugada, o Joca, um dobermann muito metido ficou doido quando viu a Dogmar, uma poodle  toda branquinha dentro de uma minissaia de fechar o comércio tendo ao lado um vira-lata  com cara de fraco. O Joca não teve dúvida. Foi tirar a Dogmar pra dançar. O vira-lata era faixa preta simplesmente e fez o Joca rebolar sem bambolê.
O baile virou um tremendo sururu. Era mesa que voava. Cadeirada na cabeça era o que não faltava. A orquestra tentou acalmar os ânimos e botar ordem no recinto atacando um sambão tradicional. Não adiantou nada. O pau continuou comendo solto. O pistão tirou a surdina e tocou bem alto pra polícia não manjar a bagunça.   
De repente um irresponsável, porque não era verdade, foi só pra zoar, gritou: Fogo!
Não deu outra. Todo mundo se precipitou como doido para a saída. O porteiro foi atropelado. Ninguém deu bola pra aquela história senha para retirar o seu rabo. À medida que os cachorros conseguiam se livrar do salão e passavam pela portaria pegavam a esmo o primeiro rabo que lhes caía na pata, botavam no respectivo traseiro e caiam fora. Não prestavam a mínima atenção se o rabo que tinham agarrado era o seu ou não.
É claro que aconteceu o que era de se esperar. Mais tarde, já mais calma, com o juízo no lugar, a cachorrada foi percebendo que o rabo que agora carregavam no traseiro não era necessariamente o seu. Ele havia sido trocado por causa daquela confusão toda que tinha acontecido no baile.
Desde então, na tentativa de recuperar o rabo perdido, os cachorros passaram a procurar nos traseiros dos outros companheiros o seu próprio rabo. ´

É por isso que os cachorros, quando se encontram pelas ruas, cheiram o rabo um do outro.

(do livro "54 histórias que minha avó contava na kombi")

sábado, 4 de outubro de 2014

Reescritas modernas do legado romântico: a “Canção do exílio” de Gonçalves Dias.

                Qualquer texto, verbal ou não — compreendido texto como um bem cultural que possui significação e que almeja comunicação — é um “palimpsesto” (Genette, 1982). Quer isso dizer que sobre qualquer texto, o texto matriz ou o hipotexto, outro texto, um hipertexto, pode ser calcado. Restringindo nossas idéias ao campo particular dos textos verbais literários — a literatura — podemos dizer, acompanhando Bakhtin (1997), que um texto sempre dialoga com outros textos pré-existentes. Diálogo por vezes sutil, implícito, outras abundante, explícito. Pacifico, quando a obra acompanha as tendências da moda. Conflituoso, quando se opõe ao status quo. Mas sempre diálogo. Ninguém cria nada do nada. Cada novo texto depende de outros textos para vir à luz. E uma vez criado representa mais um elo, fraco ou forte, colocado na corrente de infindáveis elos formadora do acervo universal dos textos literários.  O ato criador ratifica a tradição.  
            Intertextualidade é um dos nomes possíveis para exprimir a relação entre hipertextos e hipotextos (Kristeva, 2005; Vasconcellos, 2001).
            O hipertexto costuma dialogar com múltiplos hipotextos, em geral canônicos, para neles colher matéria verbal que lhe alimente. Alguns hipotextos, porém, ultrapassam o convencionalismo canônico e atingem condição de verdadeiros arquétipos. Nesses casos, é comum surgir uma profusão de hipertextos em que a intertextualidade escancara-se copiosamente. Podemos aí distinguir dois tipos de intertextualidade: a paráfrase e a paródia (Sant’Anna, 2003).
            A característica principal da paráfrase é a harmonia entre hipertexto e hipotexto. Na paródia ocorre confronto. Paráfrase é reafirmação da obra original. As palavras mudam. A forma pode mudar, mas o conteúdo, a essência mantém-se. Paródia é confronto com a obra original. Independente de palavras e forma o conteúdo, a essência da obra original é subvertida. A paráfrase repete. É continuidade. A paródia contesta. É descontinuidade. Na paráfrase o hipertexto aproxima-se do significado do hipotexto. Na paródia afasta-se. A paráfrase busca um efeito de condensação, de reforço das idéias. A paródia busca um efeito de deslocamento, de deformação. No plano da linguagem definido pelos eixos paradigmático e sintagmático, a paráfrase tem lugar no eixo paradigmático, dos efeitos de paralelismo, metafóricos; a paródia, no eixo sintagmático, dos efeitos de justaposição, metonímicos.

            Para demonstrar a aplicação desses conceitos vamos considerar o poema “Canção do exílio”, 1843, de Gonçalves Dias (1985):

Kennst du das Land, wo die Citronen blühn,          (Conheces o país onde florescem as laranjeiras
Im dunkeln Laub die Gold-Orangen glühn,             que no verde escuro da folhagem ardem frutos de ouro,
Kennst du es wohl? — Dahin, dahin!                      conheces bem? — Lá, lá!
Möcht’ich … ziehn. (Goethe)                                   quisera eu... estar.)

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar – sozinho, à noite –
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Esse poema é um ponto de referência dentro da tradição literária brasileira e pode ser considerado um ícone da poesia do Romantismo brasileiro. Ele tem sido parafraseado e parodiado desde o século XIX. Casimiro de Abreu o parafraseou já em 1855 e novamente em 1857.
             Exemplo de paráfrase mais moderna é o poema “Nova canção do exílio”, 1945, de Carlos Drummond de Andrade (1992):

A Josué Montello
Um sabiá
na palmeira, longe.
Estas aves cantam
um outro canto.

O céu cintila
sobre flores úmidas.
Vozes na mata,
e o maior amor.

Só, na noite,
seria feliz:
um sabiá,
na palmeira, longe.

Onde é tudo belo
e fantástico,
só, na noite,
seria feliz.
(Um sabiá,
na palmeira, longe.)

Ainda um grito de vida e
voltar
para onde é tudo belo
e fantástico:
a palmeira, o sabiá,
o longe.

            Exemplo de paródia pode ser citado o poema “Canção do exílio”, 1930, de Murilo Mendes (1994):

Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia.

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!

           
            O poema original tem versos de sete sílabas, com tonicidade nas terceira, quinta e sétima sílabas. É uma redondilha maior. Métrica e ritmo que dão ao poema leveza e musicalidade. O próprio título assim sugere: é uma canção. O apelo ao sentido da audição é uma das características da poética romântica de uma maneira geral, e com maior ênfase, na de Gonçalves Dias. O poema apresenta uma estrutura de estrofes composta por três quadras seguidas de duas sextilhas; e de rimas: sabiá, lá, lá sabiá,, cá, lá, sabiá (2º., 4º., 10º., 12º., 14º., 16º., 18º.); flores, amores, primores ( 6º.,8º., 13º.), um tanto livre sem estrita obediência a uma rigidez formal paradigmática como preceituava a poesia do Classicismo. Essa liberdade de construção formal, o “repúdio aos padrões, às regras e aos modelos da Antiguidade, cultivados pelo gosto francês predominante em toda a Europa” (Camilo, p. 22) pode ser apontada como uma das características marcantes do Romantismo. Ela se constituiu em importante herança para o Modernismo que dela usou e abusou.
            A voz lírica apresenta o poema em primeira pessoa do singular abrindo-o com o sintagma — Minha terra. Tal fato associado ao clima ufanista que se instaura no transcorrer dos versos, em relação à terra natal do “eu-lírico”, evidencia forte apego ao torrão de origem. O pronome, do singular, evolui para o plural como a procurar envolver todos os compatriotas no mesmo apego. A construção anafórica de toda a segunda estrofe com pronome possessivo em primeira pessoa do plural reforça esse objetivo. A repetição dentro do discurso é recurso retórico que serve à amplificação afetiva (Lausberg, 2004). E a repetição não pára em palavras isoladas. Estende-se a versos completos: onze dos vinte e quatro versos da canção repetem-se integralmente e três, parcialmente. Na leitura do poema sentimos martelar em nossa mente que a terra do poeta (a nossa terra) é maravilhosa. Que o Brasil é maravilhoso. A voz poética quer transmitir um vibrante sentimento de nacionalismo. Nacionalismo que foi uma das características mais marcantes assumidas pelo Romantismo brasileiro em sua primeira fase. Nacionalismo do qual Gonçalves Dias foi um dos principais bastiões.
            O nacionalismo do poema exprime-se pela sublimação dos bens naturais da terra. A palmeira, que, embora não sendo árvore nativa, trazida do oriente pelos colonizadores tão bem se adaptou à nova terra a ponto de transformar-se em paisagem típica de seu extenso litoral. O Sabiá, ave nativa, presente em todos seus recantos com seu mavioso canto, com estatuto de substantivo próprio ao ser grafado com inicial maiúscula para realçar sua especificidade. E as estrelas que no seu céu abundam. E suas flores das várzeas. E seus vívidos bosques. Tudo é um primor. Tanto que a vida ganha mais vida sob o império do amor. É o sublime natural em sua acepção mais simples e direta utilizado para exprimir a grandeza da pátria. Nacionalismo apresentado de maneira pura e até ingênua.
            Os advérbios de lugar — cá e lá — criam interessante oposição. O , lugar onde naquele momento se encontra o poeta, longe da pátria, é empobrecido, enquanto há engrandecimento do , a terra natal do poeta. O enaltecido mais o repudiado infundem sensação de mal-estar no “aqui-agora”, de distanciamento nostálgico que impregna o corpo e a alma do poeta com a saudade da pátria querida. O poeta por estar longe de sua terra natal sente-se exilado em terras estrangeiras. O exílio do poeta provoca-lhe a manifestação do sentimento de “saudade nacional”. Binômio — saudade-nacionalismo — muito do gosto da primeira leva de românticos brasileiros.             Melancolia foi sentimento que proliferou em maior ou menor grau entre grande parte dos artistas românticos. Nascida do embate entre o individualismo que esses artistas desenvolveram e as contradições advindas das novas condições da vida moderna, que a partir do século XIX celeremente iam-se impondo, para o nosso poeta, sentindo-se exilado no estrangeiro, nasce da saudade da pátria. A nostalgia surge quando o poeta se põe a cismar, ruminar, pensar insistentemente, sozinho, ausente do convívio dos homens. Isolado do mundo, seus pensamentos podem concentrar-se melhor. Seu cismar em nada se desvia da coisa pensada, E isso se dá pela conjugação de isolamento com noite. Noite, privilegiada pelos românticos, em associação ao obscuro, ao soturno, ao mistério, aos sonhos, ao inconsciente, em oposição ao dia, privilegiado pelos clássicos, associado à clareza, à luz, à vigília, à razão (Camilo, op. cit. p. 31). Noite também quando o burburinho do dia amaina e o silêncio passa a reinar. Esse isolamento noturno constitui condição ideal para o poeta extravasar suas saudosas lembranças da terra natal.  As vírgulas entre sozinho e noite no 9º. verso e os travessões e vírgula no 15º. verso reforçam, pela construção formal, o desejo de misantropia noturna ideal para um pensar mais intenso na pátria distante.
            Para o poeta, pessoa física, o desejo manifesto na última sextilha do poema, infelizmente, alguns anos depois, não se concretizou. Deus lhe foi cruel e fez que, no retorno de uma de suas viagens à Europa, desaparecesse náufrago nas profundezas das verdes águas, então bravias, do mar que banha as praias da sua terra onde, hoje, nas raras palmeiras, um sabiá, às vezes, ainda teima em pousar.        
     
            Carlos Drummond faz paráfrase do poema original ao reiterar com outras palavras valores presentes no hipotexto. Porém, o nacionalismo ufanista do texto modelo desaparece. Desaparecem os qualificativos minha, nossa, nosso, nossas, nossos. Desaparece até a menção à terra natal — Minha terra. Em seu lugar surge um indefinido longe onde, na palmeira, um também indefinido sabiá (ficamos sem saber) talvez cante, ou não. A sublimação da natureza baixa de tom e fica comedida, embora ali é tudo belo e fantástico.
            O título original é resgatado com a adição do adjetivo Nova. O poeta explicita, assim, a intertextualidade e personaliza sua criação. Poetiza usando de bastante liberdade formal, própria de um poeta modernista, então, amadurecido. Os versos são livres e brancos. A maioria dos versos, porém, curtos, quatro, cinco sílabas poéticas, aproxima o poema de uma redondilha menor o que dá caráter incisivo às idéias que as palavras procuram exprimir. A voz poética se oculta em uma bem dissimulada terceira pessoa. O étimo é praticamente todo ele substantivo, bem mais até que no já substantivado texto original o que dá ao poema extrema simplicidade significante a disfarçar toda a trama de significados. O uso de muito poucas formas verbais, duas apenas — cantam, cintila — excluídas as de ligação, minimiza as ações e faz com que o pensamento se retarde sobre as coisas pensadas.
            A nostalgia surgida da condição de afastamento, de estar distante de um outro lugar que não este em que se está aqui, agora, e dos seus bens naturais – o sabiá, a palmeira, o céu, as flores, a mata – também impregna o hipertexto. Só que fica comedida; arrefece-se; distancia-se. O advérbio longe, ausente no hipotexto, é o responsável pela infusão do clima nostálgico. Separado por vírgula destaca-se. Ganha mais ênfase pela repetição quatro vezes ao longo do poema, no início, no meio e no fim, e aqui ganha especial destaque. Constitui isolado o último verso, substantivado (quase que concretamente) pela presença do artigo definido — o —.
            O ambiente noturno, inestimável patrimônio romântico, também traz sua marca para o texto parafrástico. O sintagma na noite, entre vírgulas para enfatizar sua importância, como adjunto adverbial associado ao tempo verbal futuro pretérito — seria — condiciona o modo de se atingir a felicidade. O estar solitário completa a circunstância desse condicionamento. O poeta, entretanto, optou pelo termo , em lugar de sozinho empregado pelo bardo romântico. O adjetivo sozinho não deixa dúvida. É o estar solitário. A palavra isolada no início do verso é ambígua. Pode ser adjetivo e significar solitário, tal qual o poema original. Mas pode também ser advérbio e significar apenas, unicamente, sentido que enfatizaria a necessidade da noite como condição para ser feliz — unicamente, na noite, seria feliz. A ambiguidade enriquece o texto.
            O hipertexto tem o mesmo número de versos que o hipotexto: vinte e quatro, e a mesma divisão estrófica: três quadras e duas sextilhas; é construído em total paralelismo a ele. O par de versos — / Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o Sabiá; / — tem correspondência no par — / Um sabiá / na palmeira, longe. / — com inversão da posição do sujeito (substantivo definido próprio) último sintagma do segundo verso — o Sabiá — para sintagma nominal de abertura do poema (porém substantivo indefinido comum) — Um sabiá — no lugar do sujeito — Minha terra — transformado num indefinido adjunto adverbial — longe. São respectivamente os versos: 1º.- 2º., 11º.- 12º. e 17º.- 18º. nos dois poemas. O par — / As aves, que aqui gorjeiam, / Não gorjeiam como lá. / — (3º. e 4º. versos) tem correspondência no seco e direto — / Estas aves cantam / um outro canto. / — também 3º.- 4º. versos. A estrofe — / Nosso céu tem mais estrelas, / Nossas várzeas têm mais flores, / Nossos bosques têm mais vida, / Nossa vida mais amores./  resume-se na fria e distante — / O céu cintila / sobre flores úmidas. / Vozes na mata, / e o maior amor. (sem qualificação possessiva) 5º.- 8º. versos. O par — / Em cismar, (—) sozinho, à noite, (—) / Mais prazer encontro eu lá; /  com / Só,(só) na noite, / seria feliz: (.) /  — versos 9º. – 10º. e 15º. – 16º. O par — / Minha terra tem primores, / Que tais não encontro eu cá; / (/ Sem que desfrute os primores / Que não encontro por cá; /) — com — / Onde é tudo belo/ e fantástico, / (/ para onde é tudo belo / e fantástico: /) — versos 13º. – 14º. e 21º. – 22º. respectivamente nos dois poemas. / Não permita Deus que eu morra, / Sem que eu volte para lá; / com / Antes um grito de vida e / voltar. /  19º. – 20º. versos. / Sem qu’inda aviste as palmeiras, / Onde canta o Sabiá. /  com / a palmeira, o sabiá / o longe. /  23º. – 24º. e últimos versos.
            Paráfrase pura. Fria paráfrase. Bem ao modo de boa parte da, toda ela genial, poética drummoniana.

            Na Canção do exílio de Murilo Mendes vamos encontrar uma paródia do poema de Gonçalves Dias. A identidade de título aponta para a intertextualidade. Publicado pela primeira vez em 1930 no livro de estréia do poeta: Poemas 1925-1929 é o primeiro poema da primeira parte do livro denominada de O jogador de diabolô. Ele pode ser inserido na corrente ideológica verde-amarelada do Modernismo brasileiro dos primeiros anos, cheia de apelo nacionalista inconsequente, lastreada em frágil liberalismo, cultora da blague e da paródia. Escrito em dezesseis versos livres e brancos, distancia-se da métrica, da rima e da musicalidade do hipotexto. Apresenta uma voz lírica que também em primeira pessoa abre o poema com o mesmo sintagma — Minha terra — fazendo, porém, em contraposição ao poema modelo, em lugar de elogios, acerba crítica generalizada à sua terra.
            Se, em Gonçalves Dias, o poema buscava sublimar a natureza da terra natal, em Murilo Mendes, o efeito pretendido é bem o oposto. Apela para o grotesco. O movimento é exatamente contrário, descensional. E bem mais generalizado. Não se restringe apenas à natureza. Estende-se da natureza, à intelectualidade, às instituições, à economia. Em lugar do culto ao nacionalismo ufanista pela sublimação dos bens naturais da pátria, uso do grotesco (estética muito explorada pelo Romantismo [Camilo, op. cit. p. 29-31]) marcado pela irreverência, pela ironia, pelo sarcasmo para atacar em vários aspectos a terra natal.         
            Crítica ao colonialismo cultural do país. A palmeira transforma-se em macieiras da Califórnia e o sabiá, em gaturamos de Veneza para ressaltar o estrangeirismo que grassa pela terra, apontando para a dependência do país ao estrangeiro, notadamente aos Estados Unidos e à Europa, ou seja, todo o mundo civilizado ocidental.
            Rebaixamento, com ranço racista, do movimento literário antecedente ao Modernismo, o Simbolismo, na figura do poeta negro Cruz e Souza seu principal representante. Rebaixamento racista por colocar ironicamente pretos em torres de ametista, pois, embora o mencionado poeta simbolista tenha vindo do baixo estrato social, filho de país escravos, fez, no entender do “eu-lírico”, arte alienada, fechado em uma equivalente torre de marfim.
            Crítica ao exército, instituição responsável pela defesa da pátria, metonimicamente representado por uma de suas mais importantes patentes, a dos sargentos, pela atribuição irônica de valores culturais que, a bem da verdade, lhe são tradicionalmente considerados estranhos, criando um efeito de nonsense.
            Crítica grosseira à intelectualidade do país. Os pensadores são prostitutas que se vendem a prazo. 
            Apelo à oralidade pelo uso de termos coloquiais — A gente; sururus — procedimento característico do Modernismo brasileiro, que coloca num nível pedestre a relação entre o povo, a gente, e seus representantes políticos, metaforizados em oradores, e equiparados a pernilongos, inseto comum de regiões tropicais, hematófago, transmissor de doenças, inconveniente pelo desassossego noturno que provoca e pelo desconforto da coceira resultante de sua picada; banaliza as relações familiares sob os olhares de uma Mona Lisa que só pode ser uma cópia, pois o original está no Louvre. Cópia provavelmente medíocre pendurada na parede de uma sala de uma casa de uma família burguesa classe média medíocre sem classe.
            Se no hipotexto, o poeta, exilado numa terra estrangeira, distante da terra natal, pede a Deus que não morra antes de rever sua pátria, em Murilo Mendes, o “eu-lírico” morre sufocado na própria terra natal, sentida como uma terra estrangeira.  A terra parece tão estranha aos olhos do poeta que ele se sente um exilado na própria pátria. 
            De repente a voz poética dá a impressão que vai mudar de rumo e entrar pelo caminho do nacionalismo ufanista ao sublimar flores (mais bonitas) e frutas (mais gostosas) trazidas à cena acompanhadas do mesmo possessivo coletivo — nossas — mas um expedito adversativo — mas — recoloca as coisas no seu devido desaprumo desabonador, agora de cunho econômico-financeiro: custam os olhos da cara.
            Assim, em praticamente catorze dos dezesseis versos do poema, o grotesco está presente para rebaixar as coisas da terra do poeta. Nos dois últimos e isolados versos, porém, ele não resiste. Sentindo-se exilado na própria terra, para ele toda ela descaracterizada; sentindo saudades da pátria na própria pátria, anseia lamentosamente poder desfrutar uma verdadeira fruta da terra (carambola no entender do poeta) e ouvir um genuíno sabiá. Escorrega, finalmente, na casca de banana do saudosismo nacionalista. Deixa-se invadir pela nostalgia, nostalgia da boa, nostalgia romântica.             
           

Bibliografia

ANDRADE, Carlos Drummond de (1992 ) – Poesia e prosa. Organizado pelo autor. 8ª. ed. Rio de Janeiro, Nova Aguilar.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch (1997) – Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra, 2ª. ed. Rio de Janeiro, Forense Universitária.
CAMILO, Vagner – Fundamentos estéticos, históricos e sociais do Romantismo. Trabalho monitorado, Faculdade de Educação, USP.
DIAS, Gonçalves (1985) – Poesia. Organizado por Manuel Bandeira, 12ª. ed. Rio de Janeiro, Agir (Coleção Nossos clássicos, v. 18).
GENETTE, Gerard (1982) – Palimpsestes – La littérature au second degré. Paris: Éditions du Seuil.
KRISTEVA, Júlia (2005) – Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz, 2ª. ed. São Paulo, Perspectiva.
LAUSBERG, Heinrich (2004) – Elementos de retórica literária. Tradução de R.M. Rosado Fernandes, 5ª. ed. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.
MENDES, Murilo (1994) – Poesia completa e prosa, volume único. Organização e preparação do texto Luciana Stegagno Picchio. Rio de Janeiro, Nova Aguilar.
SANT’ANNA, Affonso Romano de (2003) – Paródia, paráfrase & cia. 7ª. ed. São Paulo, Ática.
VASCONCELLOS, Paulo Sérgio de (2001) – Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio. São Paulo: Humanitas/FAPESP.


(do livro "Ensaios Desnecessários" - inédito)