Era uma vez um homem muito, mas muito pobre, mal tendo onde cair morto (e
olha que cair morto a gente pode cair praticamente em qualquer lugar, quer
dizer, não em todos os lugares, evidentemente, mas que são muitos os lugares
onde se pode cair morto ninguém em sã consciência haverá de contestar, espero).
Seu único bem era uma galinha que ele ganhara numa rifa beneficente. Algum
pentelho com certeza vai querer perguntar como um homem tão pobre pôde comprar
um bilhete de rifa beneficente se era tão pobre que mal tinha onde cair morto?
A resposta é simples, pentelhos de merda. Ele não comprou. Ele ganhou da esposa
de um conhecido abastado comerciante conhecida por seu elevado espírito
filantrópico e que vivia praticando ações filantrópicas ali nas proximidades do
viaduto embaixo do qual o pobre homem pobre tinha o seu lar.
Como o pobre homem pobre não alimentava a galinha (coitado, não conseguia
alimentar nem a si próprio quanto mais outro ser, embora irracional, por mais
que tivesse pena dele [não dele – homem – mas dele – ser irracional - ou seja -
dela - a galinha]), ela era raquítica, despenada, dava pena. Por não ingerir as
quantidades mínimas biologicamente necessárias de proteínas, carboidratos e
sais minerais, ela era incapaz de pôr ovos apesar de botar todo seu instintivo
esforço em, diariamente, tentar fazê-lo. Ela cisca-cisca-ciscava pelas
calçadas, e no asfalto das avenidas das imediações do viaduto em que morava com
o seu dono, expondo-se à violência urbana dos pés transeuntes e dos automotivos
pneus, colocando em risco a própria vida em busca de um algo qualquer de comer.
Mas os pardais e os pombos eram muito mais espertos e sempre levavam vantagem em tudo. O pobre homem pobre,
privado assim de uma omelete, ou de um ovo poché,
ou, até de um simples ovo estrelado, às vezes pensava em fazer uma canja, mesmo
que ralinha de galinha raquítica, ou um ensopado magro, mas logo afastava tal
pensamento. Ele afeiçoara-se à bichinha. Nas noites frias dormiam abraçadinhos
e apesar de desdentada e feia ela era, afinal, sua fiel companheira...
Eis, porém, que, um belo dia, um vendedor ambulante de bilhete de loteria
passando por ali se encantou com a galinhazinha, embora ela fosse raquítica,
despenada, desdentada e feia, conforme já dito. Mas a vida é assim mesmo, cheia
de mistérios; e amor é coisa que a gente não explica, amor é coisa que a gente
sente; e quem ama o feio bonito lhe parece e o amor do ambulante pela galinha
foi fulminante, amor à primeira vista. Ele propôs, então, ao pobre homem pobre
um negócio: — Fico com a galinha em troca destas três últimas frações da
federal, corre amanhã, é o avestruz, meu, vai que você ganha, já pensou?
O pobre homem pobre a princípio rejeitou veementemente a oferta do
vendedor ambulante de bilhete de loteria. Aquela galinha era seu único bem, e
ele pensava bem muito menos no sentido material e muito mais no sentido
espiritual. Ela era sua fiel companheira das horas alegres, que eram tão
poucas, e das horas tristes, que eram tantas. Dos dias ensolarados e dos nem
tanto. Das noites quentes e, principalmente, das noites frias. Mas o vendedor
ambulante de bilhete de loteria, como bom vendedor, colocou toda a Ciência
Retórica a serviço de sua causa, e argumentou e contra-argumentou até que
conseguiu convencer o pobre homem pobre. Seu argumento final arrasador foi que,
se ele (o pobre homem pobre) realmente amava a bichinha, devia deixar de lado
seu egoísmo, e aceitar o negócio para o bem dela, pois do jeito que as coisas
estavam, se ela não morresse antes esmagada sob as rodas de um carro, muito
breve ia morrer de inanição; enquanto ele (o vendedor ambulante de bilhete de
loteria) podia dar um galinheiro decente pra ela, além de ração balanceada à
vontade, diariamente.
Fechado o negócio, o vendedor ambulante de bilhete de loteria meteu a
galinha cocoricó no sovaco e sus se picou dali. Aquele dia, o pobre homem pobre
passou uma noite de cão sem a galinhazinha sua fiel companheira. No dia
seguinte madrugou, saiu logo cedo e ficou o dia todo catando papel (catar papel
era seu meio miserável, porém honesto, de subsistência). No final da tarde, ao
passar diante de uma casa lotérica, lembrou-se de conferir o resultado. O
número sorteado no primeiro prêmio era igualzinho ao número impresso nos seus três
bilhetes. O pobre homem pobre deixou de ser pobre (não ficou milionário, mas
deixou de ser pobre). Comprou um sobradinho cinco por vinte e cinco geminado
num bairro classe média média. Comprou um opala quatro portas. Botou o resto do
dinheiro na poupança e passou a viver de juros. Jurou nunca mais catar papel.
Hoje só cata pulga do seu novo fiel companheiro vira-lata e coça o saco (o seu
não o do cachorro).
(do livro “Contos Medonhos”)
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