domingo, 28 de junho de 2015

A falsa da Inês Pereira

Poder-se-ia argumentar que ela estivesse usando, talvez, o avesso do discurso que qualquer pessoa considerada “normal” esperaria fosse usado naquelas circunstâncias. Poder-se-ia pensar que tal comportamento fosse, talvez, uma estratégia sutil para, de um lado, criticar antigos valores há tempos enraizados nas carnes, nos ossos, nas mentes das gentes, valores arrastados pelo comboio do tempo e disfarçados com o nome de tradição, para apontar sua degradação; mostrar a decadência do sistema como um todo, ou pelo menos em alguns de seus aspectos mais significativos. E, em contrapartida, tentar impulsionar novos valores, promover ideias mais arrojadas, numa busca incessante, e quiçá inconsequente, de horizontes mais amplos; querendo meio que utopicamente contribuir para o aprimoramento do viver como um todo, ou pelo menos em alguns de seus aspectos mais relevantes, não sei. Talvez. Ou então, quem sabe, ela não estivesse preocupada com nada disso. Estivesse apenas querendo curtir a vida numa boa, da melhor maneira que lhe aprazia. Óbvio que era comportamento potencial gerador de situação ambivalente inevitavelmente provocadora de riso; riso ligado aos dois polos da mudança – a morte e o renascimento; riso visceralmente inserido à crise que, como a própria etimologia da palavra grega indica, por trazer em sua raiz a ideia de exame, avaliação, julgamento (ideia que o verbo latino puto também carrega [transmitindo sabiamente a etimologia significante do signo para a contemporaneidade, visto que, em geral, numa situação de crise a gente costuma ficar é muito puto mesmo]), deve constituir-se no estado predecessor necessário ao desencadeamento da ação, verdadeiro âmago de todo processo de mudança; riso que, pela sua intrínseca natureza, achincalha, ridiculariza (sem tautologia) para forçar a renovação. Até onde se pôde apurar parece foi isso que se deu com a Inês Pereira desta outra história. 
A Inês Pereira desta outra história era uma socialite. Mas não uma socialite qualquer. Suas fotos enchiam semanalmente (ou pelo menos quinzenalmente) essas revistas mundanas publicadas para saciar a curiosidade da classe média baixa em saber como vivem os ricos e os artistas da onda. Quer dizer, revistas de e para fofocas. Não se poderia afirmar incondicionalmente que ela fosse muito bonita, mas ninguém poderia duvidar de seu charme, de sua elegância, de seu sex-appeal. Ela colocava como centro de suas preocupações a perfeição. Perfeição que devia ser tomada em seus aspectos exclusivamente exteriores, ou seja, puramente mundanos, tão mundanos quanto às revistas que corriqueiramente estampavam suas imagens. Sua busca era da perfeição do trajar, da perfeição do apresentar, da perfeição do exibir, da perfeição do aparentar, jamais, em momento algum, o menor resquício de algo interior que pudesse ser considerado de sublime por alguém de espírito ingenuamente romântico e, portanto, obsoleto, ultrapassado. E essa perfeição custava caro. Exigia muito dinheiro. Modista, joalheiro, perfumista, massagista, nutricionista, personal trainer, cirurgião plástico, spa, caramba! isso tudo exigia um caminhão de dinheiro (dos grandes, tipo trucado) para pagar as contas da Inês todos os meses. 
O motorista desse caminhão era Brás da Brenha, abastado comerciante do ramo atacadista de secos e molhados, dono de portentosa rede de supermercados, sessentão beirando os setenta; cara carunchosa, resultado de uma furunculose adolescente; alma coberta de escrófulas desenvolvidas ao longo de muitos anos de tirocínio profissional; homem prático, sem contaminação de literatura, aristocratizado pelo saldo bancário, esperto como um rato de esgoto de cidade grande, empreendedor emérito na pilhagem sem pilhéria das transações comerciais do dia-a-dia, visão aquilina nas coisas do seu negócio, porém um tanto míope no trato dos assuntos domésticos. Apesar da idade, como gozasse ainda de razoável saúde estômaco-intestinal, possuísse verba mais que suficiente para o investimento, deleitava-se em abundantes extravagâncias de forno e fogão acompanhadas de desregradas libações etílicas, verdadeiros banquetes pantagruélicos que, em contrapartida, lhe traziam respeitáveis constipações intestinais e sérios transtornos miccionais incontinentes. A gastronomia do Brás só muito pouco esporradicamente incluía Inês entre seus pratos. Podia-se dizer, sem medo de errar, que Inês ocupava uma posição secundária, quiçá terciária, no cardápio do Brás. Como algumas vezes, costumam dizer alguns italianos, nati ou oriundi, talvez, Inês pudesse ser considerada il contornoil primo, adesso mai. Casados há quase duas décadas, nos últimos tempos, desgastado pela ação irrefreável dos anos e diluído pela abusiva gastronomia supracitada, o nível de testosterona em seu sangue atingia nos melhores momentos valores que poderiam ser considerados sem sombra de dúvida bem abaixo de um mínimo satisfatório. Brás da Brenha, conforme assim caracterizado, só entrou nesta história para poder justificar o mote.  
Inês não se aporrinhava com o velho Brás. Ainda livre dos calores menopáusicos, se o apetite do marido era estômaco-intestinal o seu era um voraz messalínico apetite sexual. Visto que, como acabamos de ler, nesse particular o velho Brás se comportava como um bombeiro aposentado carregando entre as pernas a mangueira velha praticamente fora de condições operacionais para o apagamento dos incêndios vaginais da Inês. Embora a dita mangueira mal-e-mal exercia, em seus melhores momentos, uma atividade meramente hidráulica e assim mesmo de maneira bem precária consequência de uma hiperplasia prostática que a assolava não era de hoje, Inês, apesar de tudo, não se caceteava com o velho Brás. Ao contrário, procurava resolver o problema do Brás (e o seu) com o máximo empenho, com total dedicação. Ela providenciava amantes para exercerem a nobre função de eficientes bombeiros da ativa no combate de seu fogo vulvar (e adjacentes). Além de perfeccionista ela era uma mulher bem objetiva. Ia direto ao ponto.  
Pedro Marques foi seu último amante. Último por quê? Por uma circunstância da qual ninguém que esteja vivo pode se furtar de viver. A morte. Sim a morte. Porque como todo mundo já está saturado de saber para morrer basta estar vivo e, estando-se vivo, mais dia menos dia, inevitavelmente, se morre. E foi o que aconteceu neste caso. Morte matada? Crime hediondo? Ódio? Ranger de dentes? Vingança? Ciúmes?  Ou morte morrida? Mero acaso? Parada cardíaca? Falência respiratória? Vejamos ... 
Pedro Marques tinha menos idade do que o único filho de Inês, Fernando, toxicômano, alcoólatra, pederasta, maldito fruto do vosso ventre virgem (até então) em seu primeiro rapidamente fracassado casamento graças adeus enterrado de há muito. Pedro Marques tinha os membros todos muito bem desenvolvidos. Pedro Marques era só bíceps, tríceps, deltoides, peitorais, pernas e pênis. Pedro Marques tinha a pele bronzeada do surfe. Pedro Marques era um animal na cama. Levava Inês a delirantes orgasmos duplos, triplos, múltiplos, nas tardes quentes do verão, nas manhãs amenas da primavera, nas noites chuvosas do outono e nas madrugadas frias do inverno. Neste último caso, quando Brás da Brenha estava ausente em viagem de negócios ou em alguma outra circunstância propiça. Pedro Marques, conforme assim caracterizado, só entrou nesta história para poder justificar o mote.  
Na véspera de sua trágica, súbita e inesperada morte em um acidente de trânsito em pleno centro da cidade (atropelada por um motoboi), Inês Pereira, conversava com Leonor Vaz, amiga íntima de infância (conversa muito cheia de psicologismos baratos e abundantes bota-foras banais de coisas do coração). Ouviu, então, da boca da amiga a filosófica indagação se não sentia remorso em plantar chifres no pobre do Brás; se não lhe doía o adultério; se não lhe incomodava aquela vida de falsidade e ainda por cima, recentemente, com um garotão mais novo até do que o próprio filho. Inês, com aquele seu inconfundível jeito só dela, debochado e cínico, que tão bem seus amigos e inimigos jamais esquecerão, enquanto a memória assim lhes permitir, entre sonoras gargalhadas, respondeu: “De jeito nenhum, amiga, que falsidade que nada, tudo depende de se saber conciliar, numa boa, a solução do problema da economia conjugal com a solução do problema da fisiologia animal – eu, no que me toca dessa questão, quero mais é um burro velho que me carregue junto com um garanhão membrudo que me cavalgue. 

domingo, 21 de junho de 2015

POR FAVOR, OBRIGADO

        As palavras que nós falamos moram todas dentro da nossa boca. Quanto mais usamos uma palavra mais forte ela fica. Se usamos pouco ou não usamos uma palavra ela vai ficando fraca e pode até morrer.
Foi o que aconteceu com um menino que nunca pedia, por favor, as coisas que ele queria nem agradecia com, obrigado, quando alguém fazia algum favor para ele. Por isso todo mundo dizia que ele era mal-educado. O Por Favor e o Obrigado do menino por que não eram usados foram ficando cada vez mais e mais fraquinhos.
            Uma noite quando o menino dormia de boca aberta o seu Por Favor e o seu Obrigado saíram lá de dentro e começaram a chorar em cima do travesseiro.  
            O Anjo Azul, que sempre ficava por ali para proteger o menino, viu o Por Favor e o Obrigado chorando em cima do travesseiro e perguntou:
            — O que acontece com vocês que estão tristes deste jeito?
            — Ah! Anjo Azul — disse o Por Favor — este menino nunca usa nem a mim que sou o Por Favor nem ao meu amigo aqui o Obrigado, por isso nós estamos fraquinhos deste jeito acho até que nós vamos morrer. É por isso que nós estamos chorando de tristeza.
            — É sim, confirmou o Obrigado.
            — Hum... vou dar uma ideia para vocês, disse o Anjo Azul. Toda vez que o menino  deixar de falar você, Por Favor e, você Obrigado, vocês dão um pequeno beliscão na língua dele. Aí ele vai abrir a boca de susto e vocês podem sair. Quanto mais vocês saírem mais fortes vão ficar até o dia que conseguirão sair normalmente sem precisar dar nenhum beliscão.
            O Anjo Azul continuou por ali tomando conta do menino e o Por favor e o Obrigado entraram lá pra dentro da boca do menino que continuava dormindo, mas que ia acordar não ia demorar muito porque já estava amanhecendo.
De manhã, o menino levantou da cama logo cedo e foi tomar café com leite e comer pão com manteiga, antes de ir para a escola. Chegou à cozinha e disse para sua mãe como sempre fazia:
— Quero meu café com leite e meu pão com manteiga... — nisso ele sentiu um beliscão na língua,  abriu a boca e completou — por favor.
A mãe ficou espantada com aquilo, mas não disse nada. Quando ela serviu o pão e o café, o menino sentiu outro beliscão da língua, abriu de novo a boca e, para novo espanto da mãe, lá de dentro saiu:
— Obrigado, mãe.
A mãe comentou com o pai o que tinha acontecido e os dois ficaram muito contentes com o comportamento educado do filho.
Naquele dia na escola, com os professores, os amigos, os funcionários não foi diferente. Toda vez que o menino precisava de alguma coisa, sentia um beliscão na língua, abria a boca e de lá vinha o Por Favor e depois o Obrigado.
No dia seguinte foi igual e dali para frente o Por Favor e o Obrigado do menino foram ficando cada vez mais fortes, por que eram sempre usados, até que chegou o dia que não precisaram mais beliscar a língua do menino para sair. Eles saíam normalmente sem nenhum esforço.
E todos passaram a admirar o menino que deixou de ser considerado mal-educado e passou a ser um exemplo de menino bem-educado. 

(do livro “54 histórias que minha avó contava na kombi”)
http://www.asabeca.com.br/detalhes.php?sid=29032015151549&prod=6201&friurl=_-54-HISTORIAS-QUE-MINHA-AVO-CONTAVA-NA-KOMBI-_&kb=1073#.VYaqcPlVikq

domingo, 14 de junho de 2015

É a lama! É a lama!

           “O poço” é a peça central do livro de Mário de Andrade (São Paulo, 1893-1945) Contos Novos (3). Central por se situar no meio do volume (é o 5º de um total de nove) e central por se constituir “como que o eixo da coletânea [que possui] uma unidade profunda, ao ponto de todos eles parecerem variações de um tema só: o tema do homem disfarçado, do homem desdobrado em ser e aparência.” (4) A terceira versão desse conto, datada de 26-XII-42, será o objeto deste nosso estudo que almeja realizar uma breve análise crítica do mesmo, sob a óptica de seu conteúdo imanente, de sua estrutura formal e de sua ideologia. 
            A história se passa num ambiente rural conduzida por um narrador oculto onisciente que, em terceira pessoa, conta as peripécias ocorridas no transcurso de praticamente uma tarde, mais um breve momento, no desfecho do conto, dois dias depois, da vida do fazendeiro da zona mogiana paulista Joaquim Prestes, homem “de pouco riso... endurecido por setenta e cinco anos que o mumificavam naquele esqueleto agudo e taciturno.”
            Joaquim Prestes nascera em berço de ouro, não “tivera que construir a riqueza com a mão, dono de fazendas desde o nascer”, acostumara-se desde cedo a mandar e a ser obedecido. “Bem rico, viajado, meio sem quefazer” aproveitava sua fortuna para desenvolver atividades inovadoras às quais se dedicava com afinco almejando sempre se transformar numa ““autoridade” no assunto ... [pois] tinha a idolatria da autoridade ... Caprichosíssimo ... tudo o que Joaquim Prestes fazia, fazia bem ... [porém era] mais cioso de mando que de justiça.” Outra marca do caráter do velho fazendeiro era uma estranha “parcimônia”. Embora fosse rico – tinha três automóveis, sendo um “uma “rolls-royce” de encomenda”, tinha “dez chapéus estrangeiros, até um panamá de conto de réis, mas as meias, só usava meias feitas pela mulher, “pra economizar” afirmava.”
            Joaquim Prestes chega por volta das onze horas da manhã de um dia do fim de um julho, em seu pesqueiro na barranca do rio Mogi [Guaçu?] juntamente com uma visita convidada para pescaria. Nesse local está construindo uma boa casa para abrigar a si e aos seus, nos raros momentos que pretendesse por ali ficar. Para o abastecimento de água “mandara abrir um poço.” Quatro peões tinham sido designados para cavar o poço, gente que normalmente trabalha na fazenda sede. Joaquim Prestes em lugar de contratar um poceiro, profissional especializado naquele tipo de serviço decidira aproveitar sua própria mão-de-obra interna para executar a tarefa. Os operários, mandados pelo patrão, obedeceram, mas estão “todos muito descontentes... corroídos de irritação.”
             No pesqueiro faz um frio atroz, além de muita umidade, naquele fim de manhã de inverno. Joaquim Prestes ao chegar encontra a peãozada reunida em torno de uma fogueira. Tira então seu relógio do bolso e “com muita calma” observa “bem que horas eram” e sem aparentar censura pergunta aos homens “se ainda não tinham ido trabalhar.” A resposta é positiva. Naquele momento estão terminando o café do meio-dia, mas como com aquele tempo não se aguentava trabalhar na perfuração do poço estavam “dando uma mão no acabamento da casa.” – Não trouxe vocês aqui pra fazer casa, é a resposta do patrão. Silêncio constrangedor paira no ar. Um dos homens, um mulato, acaba “inventando um jeito humilhante de disfarçar a culpa inexistente, botando um pouco de felicidade no dono.” Ele fala que o serviço do poço agora está mais penoso “porque enfim já estava minando água.” Joaquim Prestes ao ouvir tais palavras estampa no rosto satisfação e todos suspiram aliviados.
            Joaquim Prestes procura se inteirar de mais detalhes daquela boa notícia, mas logo fica “muito mudo, na reflexão ... decidindo uma lei ... Os camaradas esperavam, naquele silêncio que os desprezava”. Por fim, rompe o silêncio e com “má vontade, sem olhar os camaradas” ordena: - Bem ... é continuar todos na casa, vocês estão ganhando. Dirige-se então “para a elevação a uns vinte metros da casa, onde ficava o poço ... se acocorou numa das tábuas do rebordo ... avançou o corpo pra espiar” e ...zás a caneta tinteiro [que trazia no bolso da camisa] cai dentro do poço. Joaquim Prestes se ergue “com rompante e sem mesmo cuidar de sair daquela bocarra traiçoeira” vai falando que não pode ficar sem sua caneta e passa a dar ordens para a operação de resgate do objeto.
 Os homens atendem imediatamente. “Pra eles era evidente que a caneta-tinteiro do dono não podia ficar lá dentro.” Albino, “que é leviano”, nu da cintura pra cima, calças arregaçadas, descalço, afunda “na escureza do buraco” pendurado na corda que faz o sarilho gemer. Albino grudado na corda, de cócoras passa a mão na lama do fundo do poço na tentativa inútil de recuperar o precioso objeto do dono. Naquela escuridão com toda aquela lama impossível conseguir. Albino é alçado.  “Só quando surgiu na boca do poço o sarilho parou de gemer. O rapaz estava que era um monstro de lama ... – Puta-frio!” é tudo que consegue falar tentando disfarçar o seu fracasso. “Joaquim Prestes estava numa exasperação terrível”, alguém lembra de chamar um poceiro na cidade, Joaquim Prestes estrila “Não estava pra pagar poceiro ... que eles estavam com má vontade de trabalhar!”. Os homens feridos em seu orgulho passam a trabalhar afoitamente na tentativa de esgotar o poço, mas é lama demais, não conseguem dar conta do recado. Joaquim Prestes se destempera “bem que estava percebendo a má vontade de todos ... [e] berrava, fulo de raiva ... Albino, aquela mansidão doentia de fraco, pra evitar briga maior, fizera questão de descer outra vez, sem mesmo recobrar fôlego.”
O vento sopra chicoteando os corpos que tremem de frio. “Só Joaquim Prestes não tremia nada, firme, olhos fincados na boca do poço.” De repente a corda é sacudida agitadíssima. É Albino avisando que precisa subir depressa. Os peões se afobam. Joaquim Prestes abre os abraços num gesto de impaciência: - Também Albino não parou nem dez minutos! Albino aparece na boca do poço, agarrado na corda, terrificado, tremendo de frio e Joaquim Prestes: - Pois é, Albino: se você tivesse procurado já, decerto achava. Enquanto isso a água vai minando... – Se eu tivesse uma lúiz... – Pois leve. E então José, irmão de Albino, calmo, olhando o velho nos olhos; – Albino não desce mais. – Como não desce! berra o patrão – Não desce não. Eu não quero. Albino agarra “o braço do mano mas toma um safanão que quase cai.” José devagar, numa calma de morte, olhar sem pestanejar enfiado no inimigo, falando baixo mastigando as palavras: - Eu não quero não sinhô.
            Nas primeiras “escurezas do entardecer” os olhos de Joaquim Prestes afinal baixam, “fixando o chão. Depois foi a cabeça que baixou... [os] ombros... foram descendo... ficou sem perfil... Ficou sórdido. : - Não vale a pena mesmo ... e sem dignidade pra suportar a derrota esbraveja: - Mas que diacho, rapaz! vista saia! Albino ri aliviado. Um outro ri de covardia. José não ri, vira a cara, “talvez para não mostrar os olhos amolecidos.” Joaquim Prestes prepara-se para partir e com “uns restos de superioridade machucada” fala ríspido, “dando a lei com lentidão: - Amanhã vocês se aprontem. Faça frio não faça frio mando o poceiro cedo. E... José [agora olhando firme o mulato]... doutra vez veja como fala com seu patrão.
            Dois dias depois Joaquim Prestes recebe a caneta-tinteiro na sede da fazenda. Ela vem muito limpa, mas toda arranhada. Joaquim Prestes experimenta a caneta. Ela não escreve está rachada. Estúpidos, pisaram na caneta. Joga o objeto inútil no lixo e continua impassível a escrita que vinha fazendo com outra caneta-tinteiro, dentre as muitas que possui.
            Nesta história a personagem Joaquim Prestes usando com arrogância sua força de patrão manipula outras personagens – seus empregados – para satisfazer seu desejo caprichoso e mesquinho de mando, obrigando-os a realizarem uma difícil, arriscada e injustificada tarefa para a qual não estão motivados e nem adequadamente preparados. Esses trabalhadores, coagidos e humilhados pela atitude do dono que além de impor sua vontade ainda lhes fere o amor-próprio, passam a executar atabalhoadamente a tarefa imposta. O relacionamento patrão-empregados vai num crescendo de tensão até atingir um clímax quando um dos peões enfrenta verbalmente o proprietário desautorizando-o. Esse, surpreendido pela atitude corajosa do trabalhador, se acovarda e recua, transferindo a tarefa para o dia seguinte e com a ajuda de um profissional a ser contratado. Ao final, o sujeito do fazer – os trabalhadores – apesar de todo esforço despendido, recebem sanção negativa, pois resgatam a caneta-tinteiro em condição imprestável de uso.
            O texto em sua estrutura profunda se constitui numa oposição entre a autoridade de um patrão fútil e a submissão de seus empregados.
            A autoridade de Joaquim Prestes é revestida de mesquinhez. Não é autoridade autêntica, necessária muitas vezes à condução de uma atividade em grupo de maneira coordenada, eficiente, objetiva e segura. É autoridade transformada em capricho que não consegue se sustentar incólume e cai, juntamente com a caneta transformada “em símbolo patriarcal da superioridade do patrão, símbolo de domínio” (5), na lama do fundo do poço.
 A submissão dos empregados é revestida de subserviência própria de uma relação capital-trabalho tacanha e doente, fruto de um sistema econômico insalubre por natureza contaminado adicionalmente por remanescentes quase que “arquetípicos” de natureza senhorial-servil que por tanto tempo impregnaram nossa sociedade afeita à escravatura. Essa submissão se a princípio busca justificativa, diante do comportamento absurdo do patrão, transforma-se em revolta: “O que para Joaquim Prestes é mero capricho, encontra por parte dos camaradas de início plena compreensão: a caneta-tinteiro do patrão não pode ficar na lama do poço que está sendo perfurado. Mas a teima irracional de Joaquim paulatinamente lhes exaspera os ânimos.” (6)
            A autoridade de Joaquim Prestes além de mero capricho mesquinho é ambígua. Obriga seus empregados a um esforço desnecessário, mas: “Depois do almoço chamou a mulher do vigia, mandou levar café aos homens, porém que fosse bem quente.” “É paternal a ponto de ir de carro pessoalmente à cidade a fim de comprar remédio para o Albino fraco de peito – sem descontar no ordenado. Mas quando o rapaz quebra uma vidraça desconta os três mil e quinhentos do custo.” (7)      
Estamos diante de um patrão mandando sem convicção, exigindo futilidade, e de empregados obedecendo, mas querendo desobedecer, desobedecendo, mas sentindo vontade de obedecer. Falta sinceridade no relacionamento humano. Joaquim Prestes usa a máscara do patrão arrogante, superior, patriarcal, autoritário e os empregados são compelidos a usar a máscara da obediência forçada. Instaura-se o descompasso entre o discurso e o sentimento interior. A essência temática do conto trata “do homem disfarçado, do homem desdobrado em ser e aparência.” (8). Os seres investidos de uma aparência sem conteúdo que os substancie, ocos, vazios, se fragmentam em sua totalidade, sofrem perdas, danos e embora tentem se recuperar, reaver a unidade perdida, não conseguem alcançá-la, o esforço é vão. A enlameada autoridade do patrão pusilânime uma vez desmascarada está irremediavelmente perdida, arranhada e rachada como a caneta-tinteiro, e como essa, deve ir para o lixo. O esforço subserviente dos empregados é inútil.  Não é reconhecido pelo patrão mesquinho. Esvai-se na lama do fundo do poço. O texto cria “um mundo cindido e solitário [com a] ação narrativa [levando] as personagens a viver situações-limites [de] confronto dramático [sendo] o vigor [da] cisão [resultante] não só [da] alta tensão do enredo, mas também [da] linguagem expressionista da narração, capaz de personificar os elementos espaciais, contribuindo para acirrar o embate humano (o vento que ‘chicoteia”, a umidade que ‘corrói”, o sarilho que “geme” e “uiva”)”. (9)  
A linguagem popular brasileira também se exprime com vigor neste texto marioandradino. Aproveitamento de léxico vindo diretamente do falar do povo, sintaxe coloquial, pontuação emotiva, ritmo vibrante são recursos incorporados aos diálogos das personagens e à fala do narrador e que desempenham papel importante na captação da oralidade da língua: “Lhe amargavam penosamente aquelas mandassaias.../ foram se chegando pra fogueira.../ - Ocê marcou mano.../ - Quer dizer... a gente nem não sabe, tá uma lama... O poço tá fundo, só o mano que é leviano pode descer... .../ - ‘cê besta mano! .../ – Inda tem um poucadinho, sim sinhô. .../ mode o Albino descer no poço .../ O frio estava por demais .../ - Achoooou! .../ percisa secar o poço .../ - Bamo!... .../ Joaquim Prestes berrava, fulo de raiva. .../ Os camaradas ... tomados de insulto ... já muito sem paciência mais. .../ - É isso mesmo!... Cachaceiro!... ...cumpra o seu dever!... .../ - Farta... é só ta-tá seco .../ - Se eu tivesse uma lúiz.      
Embora distante já duas décadas da deflagração do Modernismo, Mário de Andrade se mantém coerente o seu projeto estético original de construir “uma obra que se desenha sobre o fundo nítido da consciência de linguagem”(10). Sendo “consciência” palavra chave: “consciência da obra de arte como fato estético” (11) e o “termo – linguagem – deve ser entendido aqui em seu sentido amplo, pois não se trata apenas do fato artístico, da linguagem esteticamente organizada, estruturada em obra de arte, mas ainda de outros aspectos do fenômeno, subjacentes à obra feita /.../ enquanto [expressão da] vida psíquica individual (enfoque psicológico), e enquanto participante da vida social (enfoque sociológico). (12)
Com “O poço”, Mário de Andrade faz de sua literatura ponta-de-lança a polemizar aspectos da realidade social brasileira captados por sua sensibilidade artística, mantendo-se coerente também a seu projeto ideológico “de intelectual à procura do melhor desempenho no papel de formador da nacionalidade e/ou no trabalho de construção social. (13)
E, se “o ponto ideal de equilíbrio ou a solução dialética capaz de fundir – superados os conflitos – projeto estético e projeto ideológico [nem sempre tenha sido plenamente atingido ou encontrada]” (14), Mário de Andrade representa “o esforço maior e mais bem-sucedido, em grande parte vitorioso, para ajustar numa posição única e coerente os dois projetos do Modernismo” (15).
 
Notas:
  1. Andrade, Mário de. Contos Novos. 17ª. ed. Estudo e edição revista por Maria Célia de Almeida Paulillo. Belo Horizonte:Itatiaia, 1999.
  2. Rosenfeld, Anatol. “Mário e o cabotinismo” em: Texto/ Contexto. 3ª. ed., São Paulo:Perspectiva, p. 193 e p. 198, 1976.
  3. idem, p. 200.
  4. idem, p 199.
  5. idem, pp. 198-199.
  6. idem, p. 193.
  7. Paulillo, Maria Célia de Almeida. “Contos da plenitude” in Contos Novos, op. cit. p. 15.
  8. Lafetá, João Luiz. “As categorias da crítica” in: 1930: A Crítica e o Modernismo. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34, p. 154, 2000.
  9. idem, p. 154.
  10. idem, pp. 154-155.
  11. idem, p. 154.
  12. idem, p. 154.
  13. idem, p. 153.


(Em “Ensaios Desnecessários” – inédito)

domingo, 7 de junho de 2015

ESCALA DE RUINDADE

            Se a gente não é ruim ou quando muito um pouco ruim quando alguém faz alguma sacanagem com a gente a gente sente raiva. E é natural, eu penso, a gente sentir raiva.
            Como a gente não é ruim ou quando muito um pouco ruim com o passar do tempo a raiva vai secando e a gente acaba se esquecendo.
Se a gente é muito ruim ou pelo menos ruim quando alguém faz alguma sacanagem com a gente a gente não sente raiva a gente sente ódio. E é aí, penso eu, que o bicho pega.
Como a gente é muito ruim ou pelo menos ruim com o passar do tempo o ódio vai secando a gente e a gente acaba se acabando. 


(em “Crônicas Anacrônicas – Grotesca Filosofia Mediocridade Sublime (inédito))