domingo, 28 de junho de 2015

A falsa da Inês Pereira

Poder-se-ia argumentar que ela estivesse usando, talvez, o avesso do discurso que qualquer pessoa considerada “normal” esperaria fosse usado naquelas circunstâncias. Poder-se-ia pensar que tal comportamento fosse, talvez, uma estratégia sutil para, de um lado, criticar antigos valores há tempos enraizados nas carnes, nos ossos, nas mentes das gentes, valores arrastados pelo comboio do tempo e disfarçados com o nome de tradição, para apontar sua degradação; mostrar a decadência do sistema como um todo, ou pelo menos em alguns de seus aspectos mais significativos. E, em contrapartida, tentar impulsionar novos valores, promover ideias mais arrojadas, numa busca incessante, e quiçá inconsequente, de horizontes mais amplos; querendo meio que utopicamente contribuir para o aprimoramento do viver como um todo, ou pelo menos em alguns de seus aspectos mais relevantes, não sei. Talvez. Ou então, quem sabe, ela não estivesse preocupada com nada disso. Estivesse apenas querendo curtir a vida numa boa, da melhor maneira que lhe aprazia. Óbvio que era comportamento potencial gerador de situação ambivalente inevitavelmente provocadora de riso; riso ligado aos dois polos da mudança – a morte e o renascimento; riso visceralmente inserido à crise que, como a própria etimologia da palavra grega indica, por trazer em sua raiz a ideia de exame, avaliação, julgamento (ideia que o verbo latino puto também carrega [transmitindo sabiamente a etimologia significante do signo para a contemporaneidade, visto que, em geral, numa situação de crise a gente costuma ficar é muito puto mesmo]), deve constituir-se no estado predecessor necessário ao desencadeamento da ação, verdadeiro âmago de todo processo de mudança; riso que, pela sua intrínseca natureza, achincalha, ridiculariza (sem tautologia) para forçar a renovação. Até onde se pôde apurar parece foi isso que se deu com a Inês Pereira desta outra história. 
A Inês Pereira desta outra história era uma socialite. Mas não uma socialite qualquer. Suas fotos enchiam semanalmente (ou pelo menos quinzenalmente) essas revistas mundanas publicadas para saciar a curiosidade da classe média baixa em saber como vivem os ricos e os artistas da onda. Quer dizer, revistas de e para fofocas. Não se poderia afirmar incondicionalmente que ela fosse muito bonita, mas ninguém poderia duvidar de seu charme, de sua elegância, de seu sex-appeal. Ela colocava como centro de suas preocupações a perfeição. Perfeição que devia ser tomada em seus aspectos exclusivamente exteriores, ou seja, puramente mundanos, tão mundanos quanto às revistas que corriqueiramente estampavam suas imagens. Sua busca era da perfeição do trajar, da perfeição do apresentar, da perfeição do exibir, da perfeição do aparentar, jamais, em momento algum, o menor resquício de algo interior que pudesse ser considerado de sublime por alguém de espírito ingenuamente romântico e, portanto, obsoleto, ultrapassado. E essa perfeição custava caro. Exigia muito dinheiro. Modista, joalheiro, perfumista, massagista, nutricionista, personal trainer, cirurgião plástico, spa, caramba! isso tudo exigia um caminhão de dinheiro (dos grandes, tipo trucado) para pagar as contas da Inês todos os meses. 
O motorista desse caminhão era Brás da Brenha, abastado comerciante do ramo atacadista de secos e molhados, dono de portentosa rede de supermercados, sessentão beirando os setenta; cara carunchosa, resultado de uma furunculose adolescente; alma coberta de escrófulas desenvolvidas ao longo de muitos anos de tirocínio profissional; homem prático, sem contaminação de literatura, aristocratizado pelo saldo bancário, esperto como um rato de esgoto de cidade grande, empreendedor emérito na pilhagem sem pilhéria das transações comerciais do dia-a-dia, visão aquilina nas coisas do seu negócio, porém um tanto míope no trato dos assuntos domésticos. Apesar da idade, como gozasse ainda de razoável saúde estômaco-intestinal, possuísse verba mais que suficiente para o investimento, deleitava-se em abundantes extravagâncias de forno e fogão acompanhadas de desregradas libações etílicas, verdadeiros banquetes pantagruélicos que, em contrapartida, lhe traziam respeitáveis constipações intestinais e sérios transtornos miccionais incontinentes. A gastronomia do Brás só muito pouco esporradicamente incluía Inês entre seus pratos. Podia-se dizer, sem medo de errar, que Inês ocupava uma posição secundária, quiçá terciária, no cardápio do Brás. Como algumas vezes, costumam dizer alguns italianos, nati ou oriundi, talvez, Inês pudesse ser considerada il contornoil primo, adesso mai. Casados há quase duas décadas, nos últimos tempos, desgastado pela ação irrefreável dos anos e diluído pela abusiva gastronomia supracitada, o nível de testosterona em seu sangue atingia nos melhores momentos valores que poderiam ser considerados sem sombra de dúvida bem abaixo de um mínimo satisfatório. Brás da Brenha, conforme assim caracterizado, só entrou nesta história para poder justificar o mote.  
Inês não se aporrinhava com o velho Brás. Ainda livre dos calores menopáusicos, se o apetite do marido era estômaco-intestinal o seu era um voraz messalínico apetite sexual. Visto que, como acabamos de ler, nesse particular o velho Brás se comportava como um bombeiro aposentado carregando entre as pernas a mangueira velha praticamente fora de condições operacionais para o apagamento dos incêndios vaginais da Inês. Embora a dita mangueira mal-e-mal exercia, em seus melhores momentos, uma atividade meramente hidráulica e assim mesmo de maneira bem precária consequência de uma hiperplasia prostática que a assolava não era de hoje, Inês, apesar de tudo, não se caceteava com o velho Brás. Ao contrário, procurava resolver o problema do Brás (e o seu) com o máximo empenho, com total dedicação. Ela providenciava amantes para exercerem a nobre função de eficientes bombeiros da ativa no combate de seu fogo vulvar (e adjacentes). Além de perfeccionista ela era uma mulher bem objetiva. Ia direto ao ponto.  
Pedro Marques foi seu último amante. Último por quê? Por uma circunstância da qual ninguém que esteja vivo pode se furtar de viver. A morte. Sim a morte. Porque como todo mundo já está saturado de saber para morrer basta estar vivo e, estando-se vivo, mais dia menos dia, inevitavelmente, se morre. E foi o que aconteceu neste caso. Morte matada? Crime hediondo? Ódio? Ranger de dentes? Vingança? Ciúmes?  Ou morte morrida? Mero acaso? Parada cardíaca? Falência respiratória? Vejamos ... 
Pedro Marques tinha menos idade do que o único filho de Inês, Fernando, toxicômano, alcoólatra, pederasta, maldito fruto do vosso ventre virgem (até então) em seu primeiro rapidamente fracassado casamento graças adeus enterrado de há muito. Pedro Marques tinha os membros todos muito bem desenvolvidos. Pedro Marques era só bíceps, tríceps, deltoides, peitorais, pernas e pênis. Pedro Marques tinha a pele bronzeada do surfe. Pedro Marques era um animal na cama. Levava Inês a delirantes orgasmos duplos, triplos, múltiplos, nas tardes quentes do verão, nas manhãs amenas da primavera, nas noites chuvosas do outono e nas madrugadas frias do inverno. Neste último caso, quando Brás da Brenha estava ausente em viagem de negócios ou em alguma outra circunstância propiça. Pedro Marques, conforme assim caracterizado, só entrou nesta história para poder justificar o mote.  
Na véspera de sua trágica, súbita e inesperada morte em um acidente de trânsito em pleno centro da cidade (atropelada por um motoboi), Inês Pereira, conversava com Leonor Vaz, amiga íntima de infância (conversa muito cheia de psicologismos baratos e abundantes bota-foras banais de coisas do coração). Ouviu, então, da boca da amiga a filosófica indagação se não sentia remorso em plantar chifres no pobre do Brás; se não lhe doía o adultério; se não lhe incomodava aquela vida de falsidade e ainda por cima, recentemente, com um garotão mais novo até do que o próprio filho. Inês, com aquele seu inconfundível jeito só dela, debochado e cínico, que tão bem seus amigos e inimigos jamais esquecerão, enquanto a memória assim lhes permitir, entre sonoras gargalhadas, respondeu: “De jeito nenhum, amiga, que falsidade que nada, tudo depende de se saber conciliar, numa boa, a solução do problema da economia conjugal com a solução do problema da fisiologia animal – eu, no que me toca dessa questão, quero mais é um burro velho que me carregue junto com um garanhão membrudo que me cavalgue. 

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