“O poço” é a
peça central do livro de Mário de Andrade (São Paulo, 1893-1945) Contos Novos (3). Central por se situar
no meio do volume (é o 5º de um total de nove) e central por se constituir
“como que o eixo da coletânea [que possui] uma unidade profunda, ao ponto de
todos eles parecerem variações de um tema só: o tema do homem disfarçado, do
homem desdobrado em ser e aparência.” (4) A terceira versão desse conto, datada
de 26-XII-42, será o objeto deste nosso estudo que almeja realizar uma breve
análise crítica do mesmo, sob a óptica de seu conteúdo imanente, de sua
estrutura formal e de sua ideologia.
A história se passa num ambiente
rural conduzida por um narrador oculto onisciente que, em terceira pessoa,
conta as peripécias ocorridas no transcurso de praticamente uma tarde, mais um
breve momento, no desfecho do conto, dois dias depois, da vida do fazendeiro da
zona mogiana paulista Joaquim Prestes, homem “de pouco riso... endurecido por
setenta e cinco anos que o mumificavam naquele esqueleto agudo e taciturno.”
Joaquim Prestes nascera em berço de
ouro, não “tivera que construir a riqueza com a mão, dono de fazendas desde o
nascer”, acostumara-se desde cedo a mandar e a ser obedecido. “Bem rico,
viajado, meio sem quefazer” aproveitava sua fortuna para desenvolver atividades
inovadoras às quais se dedicava com afinco almejando sempre se transformar numa
““autoridade” no assunto ... [pois] tinha a idolatria da autoridade ...
Caprichosíssimo ... tudo o que Joaquim Prestes fazia, fazia bem ... [porém era]
mais cioso de mando que de justiça.” Outra marca do caráter do velho fazendeiro
era uma estranha “parcimônia”. Embora fosse rico – tinha três automóveis, sendo
um “uma “rolls-royce” de encomenda”, tinha “dez chapéus estrangeiros, até um
panamá de conto de réis, mas as meias, só usava meias feitas pela mulher, “pra
economizar” afirmava.”
Joaquim Prestes chega por volta das
onze horas da manhã de um dia do fim de um julho, em seu pesqueiro na barranca
do rio Mogi [Guaçu?] juntamente com uma visita convidada para pescaria. Nesse
local está construindo uma boa casa para abrigar a si e aos seus, nos raros
momentos que pretendesse por ali ficar. Para o abastecimento de água “mandara
abrir um poço.” Quatro peões tinham sido designados para cavar o poço, gente
que normalmente trabalha na fazenda sede. Joaquim Prestes em lugar de contratar
um poceiro, profissional especializado naquele tipo de serviço decidira
aproveitar sua própria mão-de-obra interna para executar a tarefa. Os
operários, mandados pelo patrão, obedeceram, mas estão “todos muito descontentes...
corroídos de irritação.”
No pesqueiro faz um frio atroz, além de muita
umidade, naquele fim de manhã de inverno. Joaquim Prestes ao chegar encontra a
peãozada reunida em torno de uma fogueira. Tira então seu relógio do bolso e
“com muita calma” observa “bem que horas eram” e sem aparentar censura pergunta
aos homens “se ainda não tinham ido
trabalhar.” A resposta é positiva. Naquele momento estão terminando o café do
meio-dia, mas como com aquele tempo não se aguentava trabalhar na perfuração do
poço estavam “dando uma mão no acabamento da casa.” – Não trouxe vocês aqui pra
fazer casa, é a resposta do patrão. Silêncio constrangedor paira no ar. Um dos
homens, um mulato, acaba “inventando um jeito humilhante de disfarçar a culpa
inexistente, botando um pouco de felicidade no dono.” Ele fala que o serviço do
poço agora está mais penoso “porque enfim já estava minando água.” Joaquim
Prestes ao ouvir tais palavras estampa no rosto satisfação e todos suspiram
aliviados.
Joaquim Prestes procura se inteirar
de mais detalhes daquela boa notícia, mas logo fica “muito mudo, na reflexão
... decidindo uma lei ... Os camaradas esperavam, naquele silêncio que os
desprezava”. Por fim, rompe o silêncio e com “má vontade, sem olhar os
camaradas” ordena: - Bem ... é continuar todos na casa, vocês estão ganhando.
Dirige-se então “para a elevação a uns vinte metros da casa, onde ficava o poço
... se acocorou numa das tábuas do rebordo ... avançou o corpo pra espiar” e
...zás a caneta tinteiro [que trazia no bolso da camisa] cai dentro do poço.
Joaquim Prestes se ergue “com rompante e sem mesmo cuidar de sair daquela
bocarra traiçoeira” vai falando que não pode ficar sem sua caneta e passa a dar
ordens para a operação de resgate do objeto.
Os homens atendem imediatamente.
“Pra eles era evidente que a caneta-tinteiro do dono não podia ficar lá
dentro.” Albino, “que é leviano”, nu da cintura pra cima, calças arregaçadas,
descalço, afunda “na escureza do buraco” pendurado na corda que faz o sarilho
gemer. Albino grudado na corda, de cócoras passa a mão na lama do fundo do poço
na tentativa inútil de recuperar o precioso objeto do dono. Naquela escuridão
com toda aquela lama impossível conseguir. Albino é alçado. “Só quando surgiu na boca do poço o sarilho
parou de gemer. O rapaz estava que era um monstro de lama ... – Puta-frio!” é
tudo que consegue falar tentando disfarçar o seu fracasso. “Joaquim Prestes
estava numa exasperação terrível”, alguém lembra de chamar um poceiro na
cidade, Joaquim Prestes estrila “Não estava pra pagar poceiro ... que eles
estavam com má vontade de trabalhar!”. Os homens feridos em seu orgulho passam
a trabalhar afoitamente na tentativa de esgotar o poço, mas é lama demais, não
conseguem dar conta do recado. Joaquim Prestes se destempera “bem que estava
percebendo a má vontade de todos ... [e] berrava, fulo de raiva ... Albino,
aquela mansidão doentia de fraco, pra evitar briga maior, fizera questão de
descer outra vez, sem mesmo recobrar fôlego.”
O vento sopra chicoteando os corpos que tremem de frio. “Só Joaquim
Prestes não tremia nada, firme, olhos fincados na boca do poço.” De repente a
corda é sacudida agitadíssima. É Albino avisando que precisa subir depressa. Os
peões se afobam. Joaquim Prestes abre os abraços num gesto de impaciência: -
Também Albino não parou nem dez minutos! Albino aparece na boca do poço,
agarrado na corda, terrificado, tremendo de frio e Joaquim Prestes: - Pois é,
Albino: se você tivesse procurado já, decerto achava. Enquanto isso a água vai minando...
– Se eu tivesse uma lúiz... – Pois leve. E então José, irmão de Albino, calmo,
olhando o velho nos olhos; – Albino não desce mais. – Como não desce! berra o
patrão – Não desce não. Eu não quero. Albino agarra “o braço do mano mas toma
um safanão que quase cai.” José devagar, numa calma de morte, olhar sem
pestanejar enfiado no inimigo, falando baixo mastigando as palavras: - Eu não
quero não sinhô.
Nas primeiras “escurezas do
entardecer” os olhos de Joaquim Prestes afinal baixam, “fixando o chão. Depois
foi a cabeça que baixou... [os] ombros... foram descendo... ficou sem perfil...
Ficou sórdido. : - Não vale a pena mesmo ... e sem dignidade pra suportar a
derrota esbraveja: - Mas que diacho, rapaz! vista saia! Albino ri aliviado. Um
outro ri de covardia. José não ri, vira a cara, “talvez para não mostrar os
olhos amolecidos.” Joaquim Prestes prepara-se para partir e com “uns restos de
superioridade machucada” fala ríspido, “dando a lei com lentidão: - Amanhã vocês
se aprontem. Faça frio não faça frio mando o poceiro cedo. E... José [agora
olhando firme o mulato]... doutra vez veja como fala com seu patrão.
Dois dias depois Joaquim Prestes
recebe a caneta-tinteiro na sede da fazenda. Ela vem muito limpa, mas toda arranhada.
Joaquim Prestes experimenta a caneta. Ela não escreve está rachada. Estúpidos,
pisaram na caneta. Joga o objeto inútil no lixo e continua impassível a escrita
que vinha fazendo com outra caneta-tinteiro, dentre as muitas que possui.
Nesta história a personagem Joaquim
Prestes usando com arrogância sua força de patrão manipula outras personagens –
seus empregados – para satisfazer seu desejo caprichoso e mesquinho de mando,
obrigando-os a realizarem uma difícil, arriscada e injustificada tarefa para a
qual não estão motivados e nem adequadamente preparados. Esses trabalhadores,
coagidos e humilhados pela atitude do dono que além de impor sua vontade ainda
lhes fere o amor-próprio, passam a executar atabalhoadamente a tarefa imposta.
O relacionamento patrão-empregados vai num crescendo de tensão até atingir um
clímax quando um dos peões enfrenta verbalmente o proprietário
desautorizando-o. Esse, surpreendido pela atitude corajosa do trabalhador, se
acovarda e recua, transferindo a tarefa para o dia seguinte e com a ajuda de um
profissional a ser contratado. Ao final, o sujeito do fazer – os trabalhadores
– apesar de todo esforço despendido, recebem sanção negativa, pois resgatam a
caneta-tinteiro em condição imprestável de uso.
O texto em sua estrutura profunda se
constitui numa oposição entre a autoridade
de um patrão fútil e a submissão
de seus empregados.
A autoridade de Joaquim Prestes é
revestida de mesquinhez. Não é autoridade autêntica, necessária muitas vezes à
condução de uma atividade em grupo de maneira coordenada, eficiente, objetiva e
segura. É autoridade transformada em capricho que não consegue se sustentar
incólume e cai, juntamente com a caneta transformada “em símbolo patriarcal da
superioridade do patrão, símbolo de domínio” (5), na lama do fundo do poço.
A submissão dos empregados é
revestida de subserviência própria de uma relação capital-trabalho tacanha e
doente, fruto de um sistema econômico insalubre por natureza contaminado
adicionalmente por remanescentes quase que “arquetípicos” de natureza
senhorial-servil que por tanto tempo impregnaram nossa sociedade afeita à
escravatura. Essa submissão se a princípio busca justificativa, diante do
comportamento absurdo do patrão, transforma-se em revolta: “O que para Joaquim
Prestes é mero capricho, encontra por parte dos camaradas de início plena
compreensão: a caneta-tinteiro do patrão não pode ficar na lama do poço que
está sendo perfurado. Mas a teima irracional de Joaquim paulatinamente lhes
exaspera os ânimos.” (6)
A autoridade de Joaquim Prestes além
de mero capricho mesquinho é ambígua. Obriga seus empregados a um esforço
desnecessário, mas: “Depois do almoço chamou a mulher do vigia, mandou levar
café aos homens, porém que fosse bem quente.” “É paternal a ponto de ir de carro
pessoalmente à cidade a fim de comprar remédio para o Albino fraco de peito –
sem descontar no ordenado. Mas quando o rapaz quebra uma vidraça desconta os
três mil e quinhentos do custo.” (7)
Estamos diante de um patrão mandando sem convicção, exigindo futilidade,
e de empregados obedecendo, mas querendo desobedecer, desobedecendo, mas
sentindo vontade de obedecer. Falta sinceridade no relacionamento humano.
Joaquim Prestes usa a máscara do patrão arrogante, superior, patriarcal,
autoritário e os empregados são compelidos a usar a máscara da obediência
forçada. Instaura-se o descompasso entre o discurso e o sentimento interior. A
essência temática do conto trata “do homem disfarçado, do homem desdobrado em
ser e aparência.” (8). Os seres investidos de uma aparência sem conteúdo que os
substancie, ocos, vazios, se fragmentam em sua totalidade, sofrem perdas, danos
e embora tentem se recuperar, reaver a unidade perdida, não conseguem
alcançá-la, o esforço é vão. A enlameada autoridade do patrão pusilânime uma vez
desmascarada está irremediavelmente perdida, arranhada e rachada como a
caneta-tinteiro, e como essa, deve ir para o lixo. O esforço subserviente dos
empregados é inútil. Não é reconhecido
pelo patrão mesquinho. Esvai-se na lama do fundo do poço. O texto cria “um
mundo cindido e solitário [com a] ação narrativa [levando] as personagens a
viver situações-limites [de] confronto dramático [sendo] o vigor [da] cisão
[resultante] não só [da] alta tensão do enredo, mas também [da] linguagem
expressionista da narração, capaz de personificar os elementos espaciais,
contribuindo para acirrar o embate humano (o vento que ‘chicoteia”, a umidade
que ‘corrói”, o sarilho que “geme” e “uiva”)”. (9)
A linguagem popular brasileira também se exprime com vigor neste texto
marioandradino. Aproveitamento de léxico vindo diretamente do falar do povo,
sintaxe coloquial, pontuação emotiva, ritmo vibrante são recursos incorporados
aos diálogos das personagens e à fala do narrador e que desempenham papel
importante na captação da oralidade da língua: “Lhe amargavam penosamente aquelas mandassaias.../ foram se chegando pra
fogueira.../ - Ocê marcou mano.../ - Quer dizer... a gente nem não sabe, tá uma
lama... O poço tá fundo, só o mano que é leviano pode descer... .../ - ‘cê besta
mano! .../ – Inda tem um poucadinho, sim sinhô. .../ mode o Albino descer no
poço .../ O frio estava por demais .../ - Achoooou! .../ percisa secar o poço
.../ - Bamo!... .../ Joaquim Prestes berrava, fulo de raiva. .../ Os camaradas
... tomados de insulto ... já muito sem paciência mais. .../ - É isso mesmo!...
Cachaceiro!... ...cumpra o seu dever!... .../ - Farta... é só ta-tá seco .../ -
Se eu tivesse uma lúiz.
Embora distante já duas décadas da deflagração do Modernismo, Mário de
Andrade se mantém coerente o seu projeto estético original de construir “uma
obra que se desenha sobre o fundo nítido da consciência
de linguagem”(10). Sendo “consciência” palavra chave: “consciência da obra
de arte como fato estético” (11) e o “termo – linguagem – deve ser entendido aqui em seu sentido amplo, pois não
se trata apenas do fato artístico, da linguagem esteticamente organizada,
estruturada em obra de arte, mas ainda de outros aspectos do fenômeno,
subjacentes à obra feita /.../ enquanto [expressão da] vida psíquica individual
(enfoque psicológico), e enquanto
participante da vida social (enfoque
sociológico). (12)
Com “O poço”, Mário de Andrade faz de sua literatura ponta-de-lança a
polemizar aspectos da realidade social brasileira captados por sua sensibilidade
artística, mantendo-se coerente também a seu projeto ideológico “de intelectual
à procura do melhor desempenho no papel de formador da nacionalidade e/ou no
trabalho de construção social. (13)
E, se “o ponto ideal de equilíbrio ou a solução dialética capaz de fundir
– superados os conflitos – projeto estético e projeto ideológico [nem sempre
tenha sido plenamente atingido ou encontrada]” (14), Mário de Andrade
representa “o esforço maior e mais bem-sucedido, em grande parte vitorioso,
para ajustar numa posição única e coerente os dois projetos do Modernismo”
(15).
Notas:
- Andrade,
Mário de. Contos Novos. 17ª. ed.
Estudo e edição revista por Maria Célia de Almeida Paulillo. Belo
Horizonte:Itatiaia, 1999.
- Rosenfeld,
Anatol. “Mário e o cabotinismo” em: Texto/
Contexto. 3ª. ed., São Paulo:Perspectiva, p. 193 e p. 198, 1976.
- idem, p. 200.
- idem, p 199.
- idem, pp. 198-199.
- idem, p. 193.
- Paulillo,
Maria Célia de Almeida. “Contos da plenitude” in Contos Novos, op.
cit. p. 15.
- Lafetá,
João Luiz. “As categorias da crítica” in:
1930: A Crítica e o Modernismo. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34,
p. 154, 2000.
- idem, p. 154.
- idem, pp. 154-155.
- idem, p. 154.
- idem, p. 154.
- idem, p. 153.
(Em “Ensaios Desnecessários” – inédito)
Nenhum comentário:
Postar um comentário