Gil Vicente, nasce no início da
segunda metade do século XV (1465 ? ) e cria toda sua obra literária na
primeira metade do século XVI – a primeira, Auto da Visitação, em 1502 e a última, Floresta de Enganos, em 1536.
Assim, para um estudo adequado de sua obra literária é necessário levar em
consideração as características desse período da história da humanidade cuja
marca é a transição (COSTA: 1989 21-22) da Idade Média para a Idade Moderna –
passagem de uma cultura teocêntrica para outra antropocêntrica, com a
valorização do homem enquanto ser terreno e atenuação da supremacia da Igreja,
no controle dos destinos do homem; esboroamento do sistema feudal e ascensão do
mercantilismo, com suas conseqüências não só de ordem econômica, mas política,
com a consolidação do regime monárquico absolutista em grande parte da Europa e
social, com o surgimento incipiente da classe burguesa. Ao movimento
intelectual desse período deu-se o nome de Humanismo.
O Humanismo, como
movimento inserido num período transitório de significativas alterações
políticas, econômicas, sociais e de visão de mundo do homem, era natural que
apresentasse ambiguidades e procurasse preservar ainda valores da época
anterior, como por exemplo, a Igreja, enquanto instituição aglutinadora unívoca
da fé cristã, abalada irreversivelmente pouco depois pela Reforma, e atacasse
outros, como por exemplo, a decadência moral do clero. No âmbito literário, o
Trovadorismo, movimento característico da Baixa Idade Média e dentro dele, em particular
a novela de cavalaria, passou do plano elevado-sério, para o rebaixado-cômico
(devendo entender-se essa terminologia sem conotação depreciativa, apenas
representando um ponto de vista diverso e oposto diante da maneira de abordar a
questão), como por exemplo, no “Orlando furioso”, de Ariosto, abordagem que
culminou, no início ( 1605, 1616) do século seguinte, com o Quixote, obra-prima de Cervantes.
Gil Vicente na “Farsa de
Inês Pereira” (VICENTE: 1944, 219-271), obra de 1523, oferece um bom exemplo
dessa abordagem rebaixada-cômica sobre o tema da cavalaria, tão caro à visão
trovadoresca da Idade Média e na obra de
Gil, ridicularizado pelo olhar através das lentes do Humanismo.
O escudeiro Brás da Mata,
cavaleiro potencial, é uma figura caricata. Para ele, a visão sublime da mulher
amada, símbolo de beleza pura e capaz de levar o herói ao autoconhecimento é
substituída por olhar medíocre: “ se fosse moça tam bela/ como donzela seria?/
Môça de vila será ela/ com sinalzinho postiço,/ e sarnosa no toutiço,/ como
burra de Castela.” (VICENTE op. cit. p.243
v. 4-9). O comportamento de elevada nobreza inverte-se em proceder rasteiro:
“cumpre-me bem d’atentar/ se é garrida, se honesta,/ porque o milhor da festa/
é achar siso e calar.”(op. cit. p.243
v. 11-14); dá a seu criado (moço) orientação de “boas” maneiras, indica que não
respeita os princípios da cavalaria, como por exemplo, não mentire evidencia
seu cinismo: “ E se cospir pela venura/ põe-lhe o pé e faze mesura.//... E se
me vires mentir,/ gabando-me de privado,/ está tu dissimulado,/ ou sai-te pera
fora a rir.”(op.cit.p.244 v.10-11,
13-16).
Todo o “respeito” à
esposa manifesta-se logo após o casamento: “Vós nam haveis de mandar/ em casa
sómente um pêlo;/ se eu disser, isto é novelo,/ havei-lo de confirmar:/ e mais
quando eu vier/ de fora, haveis de tremer,/ e cousa que vós digais/ nam vos
há-de valer mais/ daquilo que eu quiser.”(op.cit.
p.256 v. 10-18).
Brás da Mata ao decidir
partir para o norte da África ( “partes d’além” op.cit. p.256 v. 19)) para ser armado cavaleiro (“vou fazer-me
cavaleiro” op.cit. p.256 v.20) indica o início de sua peregrinação física –
participar da conquista de ultramar – e quem sabe em busca do autoconhecimento,
ideais da cavalaria medieval. Porém, o verdadeiro caráter fraco e covarde da
personagem revela-se logo mais adiante na carta que Inês recebe de seu irmão da
localidade onde o marido estaria combatendo: “... Sabei que indo/ vosso marido fugindo
(grifo meu)/ da batalha pera a vila,/ a meia légua de Arzila,/ o matou um mouro
pastor.” (op.cit. p. 261 v.3-7); e o
“elevado” juízo que a esposa, agora viúva, faz do acontecimento: “Ó que nova
tam suave!/ Desatado é o nó;/ se eu por êle ponho dó,/ o diabo me arrebente:/
para mim era valente,/ e matou-o um mouro só.” (op.cit. p. 261 v. 12-17).O cavalo que derrubava, agora está
derrubado.
Brás da Mata é, pela
criação de Gil Vicente, o avesso do cavaleiro ideal, querendo o autor com isso,
impelido por visão de mundo humanista, mostrar a decadência do sistema feudal,
lançando mão da comicidade que vai provocar o riso o qual “tem significado e
alcance sociais, de que a comicidade exprime acima de tudo certa inadaptação da
pessoa à sociedade, de que não há comicidade fora do homem, é o homem, é o
caráter que visamos em primeiro lugar.”(BERGSON: 2001, 99-100), riso que para
Bakhtin é carnavalesco. Se aplicarmos os conceitos de Bakhtin (BAKHTIN: 1997,
126-127), aos trechos em particular
destacados dessa obra de Gil Vicente podemos argumentar que o autor ao usar o
avesso do discurso oficial da cavalaria medieval, pela inversão desse discurso,
estaria, impulsionado pelos novos valores humanistas, promovendo a crítica
àqueles antigos valores, apontando a degradação dos mesmos, isto é, a
decadência do sistema feudal. Com palavras bakhtinianas, Gil Vicente estaria
com seu discurso promovendo à carnavalização do discurso da Idade Média, a qual
provoca o riso carnavalesco, ambivalente, ligado aos dois pólos da mudança – a
morte e o renascimento – intrinsecamente inserido ã crise, que é o processo de
mudança, riso esse que achincalha,
ridiculariza para forçar a renovação.
BIBLIOGRAFIA
BAKHTIN, Mikhail
Mikhailovitch – Problemas da Poética de
Dostoiévski.
Trad. Paulo Bezerra. 2. ed.. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1997.
BERGSON, Henri – O riso. Trad. Ivone Castilho Benedetti.
São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
COSTA, Dalila Pereira da
– Gil Vicente e sua época. Lisboa:
Guimarães Ed., 1989.
VICENTE, Gil – Obras completas. Prefácio e notas Prof.
Marques Braga. Lisboa:
Livraria Sá da Costa Ed., v. V, 1944.
(em “Ensaios
Desnecessários” – inédito)