domingo, 25 de outubro de 2015

O cavalo derrubado

         Gil Vicente, nasce no início da segunda metade do século XV (1465 ? ) e cria toda sua obra literária na primeira metade do século XVI – a primeira, Auto da Visitação, em 1502  e a última, Floresta de Enganos, em 1536. Assim, para um estudo adequado de sua obra literária é necessário levar em consideração as características desse período da história da humanidade cuja marca é a transição (COSTA: 1989 21-22) da Idade Média para a Idade Moderna – passagem de uma cultura teocêntrica para outra antropocêntrica, com a valorização do homem enquanto ser terreno e atenuação da supremacia da Igreja, no controle dos destinos do homem; esboroamento do sistema feudal e ascensão do mercantilismo, com suas conseqüências não só de ordem econômica, mas política, com a consolidação do regime monárquico absolutista em grande parte da Europa e social, com o surgimento incipiente da classe burguesa. Ao movimento intelectual desse período deu-se o nome de Humanismo.
O Humanismo, como movimento inserido num período transitório de significativas alterações políticas, econômicas, sociais e de visão de mundo do homem, era natural que apresentasse ambiguidades e procurasse preservar ainda valores da época anterior, como por exemplo, a Igreja, enquanto instituição aglutinadora unívoca da fé cristã, abalada irreversivelmente pouco depois pela Reforma, e atacasse outros, como por exemplo, a decadência moral do clero. No âmbito literário, o Trovadorismo, movimento característico da Baixa Idade Média e dentro dele, em particular a novela de cavalaria, passou do plano elevado-sério, para o rebaixado-cômico (devendo entender-se essa terminologia sem conotação depreciativa, apenas representando um ponto de vista diverso e oposto diante da maneira de abordar a questão), como por exemplo, no “Orlando furioso”, de Ariosto, abordagem que culminou, no início ( 1605, 1616) do século seguinte, com o  Quixote, obra-prima de Cervantes.
Gil Vicente na “Farsa de Inês Pereira” (VICENTE: 1944, 219-271), obra de 1523, oferece um bom exemplo dessa abordagem rebaixada-cômica sobre o tema da cavalaria, tão caro à visão trovadoresca da Idade Média  e na obra de Gil, ridicularizado pelo olhar através das lentes do Humanismo.
O escudeiro Brás da Mata, cavaleiro potencial, é uma figura caricata. Para ele, a visão sublime da mulher amada, símbolo de beleza pura e capaz de levar o herói ao autoconhecimento é substituída por olhar medíocre: “ se fosse moça tam bela/ como donzela seria?/ Môça de vila será ela/ com sinalzinho postiço,/ e sarnosa no toutiço,/ como burra de Castela.” (VICENTE op. cit. p.243 v. 4-9). O comportamento de elevada nobreza inverte-se em proceder rasteiro: “cumpre-me bem d’atentar/ se é garrida, se honesta,/ porque o milhor da festa/ é achar siso e calar.”(op. cit. p.243 v. 11-14); dá a seu criado (moço) orientação de “boas” maneiras, indica que não respeita os princípios da cavalaria, como por exemplo, não mentire evidencia seu cinismo: “ E se cospir pela venura/ põe-lhe o pé e faze mesura.//... E se me vires mentir,/ gabando-me de privado,/ está tu dissimulado,/ ou sai-te pera fora a rir.”(op.cit.p.244 v.10-11, 13-16).
Todo o “respeito” à esposa manifesta-se logo após o casamento: “Vós nam haveis de mandar/ em casa sómente um pêlo;/ se eu disser, isto é novelo,/ havei-lo de confirmar:/ e mais quando eu vier/ de fora, haveis de tremer,/ e cousa que vós digais/ nam vos há-de valer mais/ daquilo que eu quiser.”(op.cit. p.256 v. 10-18).
Brás da Mata ao decidir partir para o norte da África ( “partes d’além” op.cit. p.256 v. 19)) para ser armado cavaleiro (“vou fazer-me cavaleiro” op.cit. p.256 v.20)   indica o início de sua peregrinação física – participar da conquista de ultramar – e quem sabe em busca do autoconhecimento, ideais da cavalaria medieval. Porém, o verdadeiro caráter fraco e covarde da personagem revela-se logo mais adiante na carta que Inês recebe de seu irmão da localidade onde o marido estaria combatendo: “... Sabei que indo/ vosso marido fugindo (grifo meu)/ da batalha pera a vila,/ a meia légua de Arzila,/ o matou um mouro pastor.” (op.cit. p. 261 v.3-7); e o “elevado” juízo que a esposa, agora viúva, faz do acontecimento: “Ó que nova tam suave!/ Desatado é o nó;/ se eu por êle ponho dó,/ o diabo me arrebente:/ para mim era valente,/ e matou-o um mouro só.” (op.cit. p. 261 v. 12-17).O cavalo que derrubava, agora está derrubado.
Brás da Mata é, pela criação de Gil Vicente, o avesso do cavaleiro ideal, querendo o autor com isso, impelido por visão de mundo humanista, mostrar a decadência do sistema feudal, lançando mão da comicidade que vai provocar o riso o qual “tem significado e alcance sociais, de que a comicidade exprime acima de tudo certa inadaptação da pessoa à sociedade, de que não há comicidade fora do homem, é o homem, é o caráter que visamos em primeiro lugar.”(BERGSON: 2001, 99-100), riso que para Bakhtin é carnavalesco. Se aplicarmos os conceitos de Bakhtin (BAKHTIN: 1997, 126-127),  aos trechos em particular destacados dessa obra de Gil Vicente podemos argumentar que o autor ao usar o avesso do discurso oficial da cavalaria medieval, pela inversão desse discurso, estaria, impulsionado pelos novos valores humanistas, promovendo a crítica àqueles antigos valores, apontando a degradação dos mesmos, isto é, a decadência do sistema feudal. Com palavras bakhtinianas, Gil Vicente estaria com seu discurso promovendo à carnavalização do discurso da Idade Média, a qual provoca o riso carnavalesco, ambivalente, ligado aos dois pólos da mudança – a morte e o renascimento – intrinsecamente inserido ã crise, que é o processo de mudança, riso esse  que achincalha, ridiculariza para forçar a renovação.
    

BIBLIOGRAFIA

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch – Problemas da Poética de Dostoiévski.
            Trad. Paulo Bezerra. 2. ed.. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
BERGSON, Henri – O riso. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins
            Fontes, 2001.
COSTA, Dalila Pereira da – Gil Vicente e sua época. Lisboa: Guimarães Ed., 1989.
VICENTE, Gil – Obras completas. Prefácio e notas Prof. Marques Braga. Lisboa:
            Livraria Sá da Costa Ed., v. V, 1944.


(em “Ensaios Desnecessários” – inédito)

domingo, 18 de outubro de 2015

PRA SANAR A DOR DO SENADOR

         Foi feito das tripas coração durante décadas pra livrar a cara do velho político que não se desapegava do poder de jeito nenhum. Para tanto, foi usado o poder da máquina política e o poder da plutocracia, xifópagos indissociáveis. Mas a coisa não foi nada fácil. A ficha corrida do homem é mais suja que pau de galinheiro. Procurou-se até o último instante preservar a fachada de um edifício corroído por dentro, salvar a todo custo da privada a vida pública de mais um baluarte da pantanosa política do país. E parece que pelo menos formalmente conseguiram. 


(em “Crônicas Anacrônicas – Grotesca Filosofia Mediocridade Sublime” (inédito))

domingo, 11 de outubro de 2015

A MENINA DO CABELO ENROLADINHO

Era uma vez uma menina que se chamava Ciça.
Ciça era uma menina esperta; alegre; bonita e tinha um montão de amiguinhas e de amiguinhos.  Só que tinha um pequeno probleminha na vida de Ciça.
            Quer dizer. Quem está dizendo que era um pequeno probleminha sou eu porque na verdade a Ciça achava que seu problema era um grande problemão.
            O pequeno probleminha ou grande problemão ou pequeno problemão ou grande probleminha, sei lá, dizia respeito ao cabelo da Ciça.
            A Ciça não gostava de seu cabelo de jeito nenhum.
O cabelo da Ciça era preto que nem carvão.
Mas a Ciça não gostava de seu cabelo porque ele era preto que nem carvão, não. Bem, a Ciça não morria de amores com a cor preta do seu cabelo.
Se dependesse só dela ela até que escolheria outra cor. Mas ela tolerava o preto. O problema da Ciça era outro.
A Ciça não gostava de seu cabelo porque ele, o cabelo da Ciça, era todo enroladinho.
Enroladinho que nem arame, como os meninos falavam, mangando da Ciça. E a Ciça ficava bem aborrecida quando ouvia aquilo.
O tempo foi passando e a Ciça fazia de tudo pra ver se seu cabelo deixava de ser enroladinho. Cortava bem curtinho que nem cabelo de menino. Quer dizer, que nem cabelo da maioria dos meninos porque tem menino que deixa crescer um baita cabelão comprido que fica parecendo cabelo da maioria das mulheres.
Mas não adiantava nada. Quando o cabelo da Ciça crescia, crescia todo enroladinho de novo. Que nem era antes. Parecia até que crescia mais enroladinho ainda.
E a Ciça ficava chateada com aquilo.
Depois a Ciça deu pra alisar o cabelo na cabeleireira. Botava uns ferros quentes que deixavam ela parecendo uma megera. Aí o cabelo até que ficava liso uns dias. Mas logo depois da primeira lavada voltava a ficar enroladinho de novo.
A saída seria não lavar o cabelo. Mas já pensou que porcaria. Ficar com o cabelo sujo é a maior nojeira. Começa a crescer caspa e até piolho. Não dá pra ficar. Aí a Ciça lavava e tudo voltava a ser como antes. Cabelo enroladinho quem nem arame.  
A mãe da Ciça sempre aconselhava a filha a não se preocupar com o jeito pixaim do cabelo. Que aquilo era pura vaidade. E que de tanto ela alisar o cabelo e usar aquele monte de cremes e outras baboseiras que ela vivia colocando nos cabelos ia acabar ficando careca.
A Ciça que era uma menina muito legal dava risada das palavras da mãe, mas não queria nem saber, continuava fazendo de tudo pra não ter cabelo enroladinho. Mas não adiantava. O cabelo continuava enroladinho que nem arame.
Um dia Ciça foi viajar para o estrangeiro. Foi para um lugar bem longe de onde ela morava. Foi estudar num colégio para aprender a falar outra língua e outros costumes. Ela ganhou uma bolsa de estudos. A Ciça era muita inteligente e muito estudiosa também. O problema da Ciça eram os cabelos enroladinhos. Fora isso estava tudo quase sempre bem.
Lá no colégio no estrangeiro a Ciça ficou conhecendo um montão de outros jovens, meninos e meninas, que também tinham vindo estudar ali de outros países e também os que moravam naquele país.
Dentre todos a Ciça conheceu um rapaz que mais lhe encantou. Era um menino muito legal. Educado, alegre, estudioso e verdadeiro amigo. Igualzinho como era a Ciça. O menino se chamava John.
O John era alto, meio magricela, tinha a pele branca que nem leite e o cabelo bem loiro e lisinho, lisinho.
Ciça e John ficaram superamigos. Estavam sempre juntos.
Uma vez a Ciça criou coragem e acabou confessando para o John uma coisa que ela estava querendo falar pra ele há muito tempo. Ela disse que tinha a maior inveja do cabelo dele porque era tão lisinho e brilhava como seda ao sol.
Quando John ouviu aquelas palavras da Ciça. Começou a dar as maiores gargalhadas. A Ciça ficou espantada com aquilo. Quase ficou aborrecida achando que o menino estava zoando da cara dela, mas depois que ele explicou o que acontecia caiu também na maior gargalhada.
O John falou que ele também há bastante tempo queria falar uma coisa pra ela, mas também não tinha coragem. O que ele queria dizer é que achava os cabelos enroladinhos dela a coisa mais linda do mundo e que ele tinha a maior inveja dos cabelos dela e tinha pena de não ter um cabelo igual ao dela.
Daquele dia em diante a Ciça nunca mais pensou em ter cabelo liso. Passou a ter o maior orgulho dos seus cabelos enroladinhos. Enroladinhos que nem arame.
Depois de um tempo John veio morar na mesma cidade onde Ciça morava. Os dois se reencontraram e ficaram namorados. Mais tarde, quando John e Ciça já tinham um bom emprego resolveram se casar. Tiveram dois filhos lindos. Uma menina de cabelo preto lisinho e um menino de cabelo loiro enroladinho.


(do livro:”54 histórias que minha avó contava na kombi”)

domingo, 4 de outubro de 2015

VOU-MEMBORA PRA BRAZILIA

“Vou-membora pra Brazilia
Lá sou amigo do Rei
Lá tenho a mamata que quero
Na câmara que escolherei.
Vou-membora pra Brazília

Vou-membora pra Brazília
Aqui sou simples aprendiz
Lá rola muita maracutaia
Conchavos bem producentes
Esquemas lobbies e outros bichos
Pra mim e pros meus parentes
Rola legal um salvo-conduto
Pra entrar no valérioduto

E para fazer campanha
Andarei de avião
Enganarei o povo burro
Subirei no parlatório
Defenderei o mensalão!
E quando estiver acuado
Deixo de lado o mandato
Parto pra reeleição
Contando histórias da carochinha
De como desde menininho
Eu sempre fui tão bonzinho.
Vou-membora pra Brazília

Em Brazília tem tudo
É outra civilização
Tem processo seguro
De disseminar corrupção
Tem reajuste automático
Tem propina à vontade
Tem prostitutas bonitas
Pra gente namorar

E quando eu estiver mais rico
Mas rico de mais não poder
Quando de noite me der
Vontade de me mandar
— Lá sou amigo do Rei —
Terei a mamata que quero
Na câmara que escolherei.
Vou-membora pra Brazília.”

(do ebook “Yby katu, Yby poranga – Terra boa, Terra bonita”)