Qualquer texto,
verbal ou não — compreendido texto como um bem cultural que possui significação
e que almeja comunicação — é um “palimpsesto” (Genette, 1982). Quer isso dizer
que sobre qualquer texto, o texto matriz ou o hipotexto, outro texto, um
hipertexto, pode ser calcado. Restringindo nossas idéias ao campo particular
dos textos verbais literários — a literatura — podemos dizer, acompanhando
Bakhtin (1997), que um texto sempre dialoga com outros textos pré-existentes.
Diálogo por vezes sutil, implícito, outras abundante, explícito. Pacifico,
quando a obra acompanha as tendências da moda. Conflituoso, quando se opõe ao status quo. Mas sempre diálogo. Ninguém
cria nada do nada. Cada novo texto depende de outros textos para vir à luz. E
uma vez criado representa mais um elo, fraco ou forte, colocado na corrente de
infindáveis elos formadora do acervo universal dos textos literários. O ato criador ratifica a tradição.
Intertextualidade é um dos nomes
possíveis para exprimir a relação entre hipertextos e hipotextos (Kristeva,
2005; Vasconcellos, 2001).
O hipertexto costuma dialogar com
múltiplos hipotextos, em geral canônicos, para neles colher matéria verbal que
lhe alimente. Alguns hipotextos, porém, ultrapassam o convencionalismo canônico
e atingem condição de verdadeiros arquétipos. Nesses casos, é comum surgir uma
profusão de hipertextos em que a intertextualidade escancara-se copiosamente.
Podemos aí distinguir dois tipos de intertextualidade: a paráfrase e a paródia
(Sant’Anna, 2003).
A característica principal da
paráfrase é a harmonia entre hipertexto e hipotexto. Na paródia ocorre
confronto. Paráfrase é reafirmação da obra original. As palavras mudam. A forma
pode mudar, mas o conteúdo, a essência mantém-se. Paródia é confronto com a
obra original. Independente de palavras e forma o conteúdo, a essência da obra
original é subvertida. A paráfrase repete. É continuidade. A paródia contesta.
É descontinuidade. Na paráfrase o hipertexto aproxima-se do significado do
hipotexto. Na paródia afasta-se. A paráfrase busca um efeito de condensação, de
reforço das idéias. A paródia busca um efeito de deslocamento, de deformação.
No plano da linguagem definido pelos eixos paradigmático e sintagmático, a
paráfrase tem lugar no eixo paradigmático, dos efeitos de paralelismo,
metafóricos; a paródia, no eixo sintagmático, dos efeitos de justaposição,
metonímicos.
Para
demonstrar a aplicação desses conceitos vamos considerar o poema “Canção do
exílio”, 1843, de Gonçalves Dias (1985):
Kennst du das Land, wo die Citronen
blühn, (Conheces o país onde florescem as laranjeiras
Im dunkeln Laub die Gold-Orangen
glühn, que no verde escuro da folhagem ardem frutos de ouro,
Kennst
du es wohl? — Dahin, dahin! conheces bem? — Lá, lá!
Möcht’ich … ziehn. (Goethe) quisera eu... estar.)
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar – sozinho, à noite –
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as
palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Esse poema é um
ponto de referência dentro da tradição literária brasileira e pode ser
considerado um ícone da poesia do Romantismo brasileiro. Ele tem sido
parafraseado e parodiado desde o século XIX. Casimiro de Abreu o parafraseou já
em 1855 e novamente em 1857.
Exemplo de paráfrase mais moderna é o poema
“Nova canção do exílio”, 1945, de Carlos Drummond de Andrade (1992):
A Josué Montello
Um
sabiá
na palmeira,
longe.
Estas aves cantam
um outro canto.
O céu
cintila
sobre flores úmidas.
Vozes na mata,
e o maior amor.
Só, na noite,
seria feliz:
um sabiá,
na palmeira, longe.
Onde é tudo
belo
e fantástico,
só, na noite,
seria feliz.
(Um sabiá,
na palmeira, longe.)
Ainda um
grito de vida e
voltar
para onde é tudo belo
e fantástico:
a palmeira, o sabiá,
o longe.
Exemplo
de paródia pode ser citado o poema “Canção do exílio”, 1930, de Murilo Mendes
(1994):
Minha terra
tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de
Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres
de ametista,
os sargentos do exército são
monistas, cubistas,
os filósofos são polacos
vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os
pernilongos.
Os sururus em família têm por
testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil réis a
dúzia.
Ai quem me
dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão
de idade!
O poema original tem versos de sete
sílabas, com tonicidade nas terceira, quinta e sétima sílabas. É uma redondilha
maior. Métrica e ritmo que dão ao poema leveza e musicalidade. O próprio título
assim sugere: é uma canção. O apelo ao sentido da audição é uma das
características da poética romântica de uma maneira geral, e com maior ênfase,
na de Gonçalves Dias. O poema apresenta uma estrutura de estrofes composta por
três quadras seguidas de duas sextilhas; e de rimas: sabiá, lá, lá sabiá,, cá, lá, sabiá (2º., 4º., 10º., 12º., 14º.,
16º., 18º.); flores, amores, primores (
6º.,8º., 13º.), um tanto livre sem estrita obediência a uma rigidez formal
paradigmática como preceituava a poesia do Classicismo. Essa liberdade de
construção formal, o “repúdio aos
padrões, às regras e aos modelos da Antiguidade, cultivados pelo gosto francês
predominante em toda a Europa” (Camilo, p. 22) pode ser apontada como uma
das características marcantes do Romantismo. Ela se constituiu em importante
herança para o Modernismo que dela usou e abusou.
A voz lírica apresenta o poema em
primeira pessoa do singular abrindo-o com o sintagma — Minha terra. Tal fato associado ao clima ufanista que se instaura
no transcorrer dos versos, em relação à terra natal do “eu-lírico”, evidencia
forte apego ao torrão de origem. O pronome, do singular, evolui para o plural
como a procurar envolver todos os compatriotas no mesmo apego. A construção
anafórica de toda a segunda estrofe com pronome possessivo em primeira pessoa
do plural reforça esse objetivo. A repetição dentro do discurso é recurso
retórico que serve à amplificação afetiva (Lausberg, 2004). E a repetição não
pára em palavras isoladas. Estende-se a versos completos: onze dos vinte e
quatro versos da canção repetem-se integralmente e três, parcialmente. Na
leitura do poema sentimos martelar em nossa mente que a terra do poeta (a nossa
terra) é maravilhosa. Que o Brasil é maravilhoso. A voz poética quer transmitir
um vibrante sentimento de nacionalismo. Nacionalismo que foi uma das
características mais marcantes assumidas pelo Romantismo brasileiro em sua primeira
fase. Nacionalismo do qual Gonçalves Dias foi um dos principais bastiões.
O nacionalismo do poema exprime-se
pela sublimação dos bens naturais da terra. A palmeira, que, embora não sendo
árvore nativa, trazida do oriente pelos colonizadores tão bem se adaptou à nova
terra a ponto de transformar-se em paisagem típica de seu extenso litoral. O
Sabiá, ave nativa, presente em todos seus recantos com seu mavioso canto, com
estatuto de substantivo próprio ao ser grafado com inicial maiúscula para
realçar sua especificidade. E as estrelas que no seu céu abundam. E suas flores
das várzeas. E seus vívidos bosques. Tudo é um primor. Tanto que a vida ganha
mais vida sob o império do amor. É o sublime natural em sua acepção mais
simples e direta utilizado para exprimir a grandeza da pátria. Nacionalismo
apresentado de maneira pura e até ingênua.
Os advérbios de lugar — cá e lá — criam interessante oposição. O
cá, lugar onde naquele momento se
encontra o poeta, longe da pátria, é empobrecido, enquanto há engrandecimento
do lá, a terra natal do poeta. O lá enaltecido mais o cá repudiado infundem sensação de
mal-estar no “aqui-agora”, de distanciamento nostálgico que impregna o corpo e
a alma do poeta com a saudade da pátria querida. O poeta por estar longe de sua
terra natal sente-se exilado em terras estrangeiras. O exílio do poeta
provoca-lhe a manifestação do sentimento de “saudade nacional”. Binômio —
saudade-nacionalismo — muito do gosto da primeira leva de românticos
brasileiros. Melancolia foi
sentimento que proliferou em maior ou menor grau entre grande parte dos
artistas românticos. Nascida do embate entre o individualismo que esses
artistas desenvolveram e as contradições advindas das novas condições da vida
moderna, que a partir do século XIX celeremente iam-se impondo, para o nosso
poeta, sentindo-se exilado no estrangeiro, nasce da saudade da pátria. A
nostalgia surge quando o poeta se põe a cismar, ruminar, pensar
insistentemente, sozinho, ausente do convívio dos homens. Isolado do mundo,
seus pensamentos podem concentrar-se melhor. Seu cismar em nada se desvia da
coisa pensada, E isso se dá pela conjugação de isolamento com noite. Noite,
privilegiada pelos românticos, em associação ao obscuro, ao soturno, ao
mistério, aos sonhos, ao inconsciente, em oposição ao dia, privilegiado pelos
clássicos, associado à clareza, à luz, à vigília, à razão (Camilo, op. cit. p. 31). Noite também quando o
burburinho do dia amaina e o silêncio passa a reinar. Esse isolamento noturno
constitui condição ideal para o poeta extravasar suas saudosas lembranças da
terra natal. As vírgulas entre sozinho e noite no 9º. verso e os travessões e vírgula no 15º. verso
reforçam, pela construção formal, o desejo de misantropia noturna ideal para um
pensar mais intenso na pátria distante.
Para o poeta, pessoa física, o
desejo manifesto na última sextilha do poema, infelizmente, alguns anos depois,
não se concretizou. Deus lhe foi cruel e fez que, no retorno de uma de suas
viagens à Europa, desaparecesse náufrago nas profundezas das verdes águas,
então bravias, do mar que banha as praias da sua terra onde, hoje, nas raras
palmeiras, um sabiá, às vezes, ainda teima em pousar.
Carlos Drummond faz paráfrase do
poema original ao reiterar com outras palavras valores presentes no hipotexto.
Porém, o nacionalismo ufanista do texto modelo desaparece. Desaparecem os
qualificativos minha, nossa, nosso,
nossas, nossos. Desaparece até a menção à terra natal — Minha terra. Em seu lugar surge um
indefinido longe onde, na palmeira,
um também indefinido sabiá (ficamos sem saber) talvez cante, ou não. A sublimação da natureza baixa de tom
e fica comedida, embora ali é tudo belo e
fantástico.
O título original é resgatado com a
adição do adjetivo Nova. O poeta
explicita, assim, a intertextualidade e personaliza sua criação. Poetiza usando
de bastante liberdade formal, própria de um poeta modernista, então,
amadurecido. Os versos são livres e brancos. A maioria dos versos, porém,
curtos, quatro, cinco sílabas poéticas, aproxima o poema de uma redondilha
menor o que dá caráter incisivo às idéias que as palavras procuram exprimir. A
voz poética se oculta em uma bem dissimulada terceira pessoa. O étimo é
praticamente todo ele substantivo, bem mais até que no já substantivado texto
original o que dá ao poema extrema simplicidade significante a disfarçar toda a
trama de significados. O uso de muito poucas formas verbais, duas apenas — cantam, cintila — excluídas as de
ligação, minimiza as ações e faz com que o pensamento se retarde sobre as
coisas pensadas.
A nostalgia surgida da condição de
afastamento, de estar distante de um outro lugar que não este em que se está
aqui, agora, e dos seus bens naturais – o sabiá, a palmeira, o céu, as flores,
a mata – também impregna o hipertexto. Só que fica comedida; arrefece-se;
distancia-se. O advérbio longe, ausente
no hipotexto, é o responsável pela infusão do clima nostálgico. Separado por
vírgula destaca-se. Ganha mais ênfase pela repetição quatro vezes ao longo do
poema, no início, no meio e no fim, e aqui ganha especial destaque. Constitui
isolado o último verso, substantivado (quase que concretamente) pela presença
do artigo definido — o —.
O
ambiente noturno, inestimável patrimônio romântico, também traz sua marca para
o texto parafrástico. O sintagma na noite,
entre vírgulas para enfatizar sua importância, como adjunto adverbial associado
ao tempo verbal futuro pretérito — seria
— condiciona o modo de se atingir a felicidade. O estar solitário completa
a circunstância desse condicionamento. O poeta, entretanto, optou pelo termo só, em lugar de sozinho empregado pelo bardo romântico. O adjetivo sozinho não deixa dúvida. É o estar
solitário. A palavra só isolada no
início do verso é ambígua. Pode ser adjetivo e significar solitário, tal qual o
poema original. Mas pode também ser advérbio e significar apenas, unicamente,
sentido que enfatizaria a necessidade da noite como condição para ser feliz — unicamente, na noite, seria feliz. A
ambiguidade enriquece o texto.
O hipertexto tem o mesmo número de
versos que o hipotexto: vinte e quatro, e a mesma divisão estrófica: três
quadras e duas sextilhas; é construído em total paralelismo a ele. O par de
versos — / Minha terra tem palmeiras, /
Onde canta o Sabiá; / — tem correspondência no par — / Um sabiá / na palmeira, longe. / — com inversão da posição do
sujeito (substantivo definido próprio) último sintagma do segundo verso — o Sabiá — para sintagma nominal de
abertura do poema (porém substantivo indefinido comum) — Um sabiá — no lugar do sujeito — Minha terra — transformado num indefinido adjunto adverbial — longe. São respectivamente os versos:
1º.- 2º., 11º.- 12º. e 17º.- 18º. nos dois poemas. O par — / As aves, que aqui gorjeiam, / Não gorjeiam como lá. / — (3º. e
4º. versos) tem correspondência no seco e direto — / Estas aves cantam / um outro canto. / — também 3º.- 4º. versos. A
estrofe — / Nosso céu tem mais estrelas,
/ Nossas várzeas têm mais flores, / Nossos bosques têm mais vida, / Nossa vida
mais amores./ — resume-se na fria e distante — / O céu cintila / sobre flores úmidas. / Vozes
na mata, / e o maior amor. — (sem
qualificação possessiva) 5º.- 8º. versos. O par — / Em cismar, (—) sozinho, à noite, (—) / Mais prazer encontro eu lá; / com /
Só,(só) na noite, / seria feliz: (.) / — versos 9º. – 10º. e 15º. – 16º. O par — / Minha terra tem primores, / Que tais não
encontro eu cá; / (/ Sem que desfrute os primores / Que não encontro por cá; /)
— com — / Onde é tudo belo/ e
fantástico, / (/ para onde é tudo belo / e fantástico: /) — versos 13º. –
14º. e 21º. – 22º. respectivamente nos dois poemas. / Não permita Deus que eu morra, / Sem que eu volte para lá; / com / Antes um grito de vida e / voltar. / 19º. – 20º. versos. / Sem qu’inda aviste as palmeiras, / Onde canta o Sabiá. / com / a
palmeira, o sabiá / o longe. / 23º.
– 24º. e últimos versos.
Paráfrase pura. Fria paráfrase. Bem
ao modo de boa parte da, toda ela genial, poética drummoniana.
Na Canção do exílio de Murilo Mendes vamos encontrar uma paródia do
poema de Gonçalves Dias. A identidade de título aponta para a
intertextualidade. Publicado pela primeira vez em 1930 no livro de estréia do
poeta: Poemas 1925-1929 é o primeiro
poema da primeira parte do livro denominada de O jogador de diabolô. Ele pode ser inserido na corrente ideológica
verde-amarelada do Modernismo brasileiro dos primeiros anos, cheia de apelo
nacionalista inconsequente, lastreada em frágil liberalismo, cultora da blague
e da paródia. Escrito em dezesseis versos livres e brancos, distancia-se da
métrica, da rima e da musicalidade do hipotexto. Apresenta uma voz lírica que
também em primeira pessoa abre o poema com o mesmo sintagma — Minha terra — fazendo, porém, em
contraposição ao poema modelo, em lugar de elogios, acerba crítica generalizada
à sua terra.
Se, em Gonçalves Dias , o
poema buscava sublimar a natureza da terra natal, em Murilo Mendes , o
efeito pretendido é bem o oposto. Apela para o grotesco. O movimento é
exatamente contrário, descensional. E bem mais generalizado. Não se restringe
apenas à natureza. Estende-se da natureza, à intelectualidade, às instituições,
à economia. Em lugar do culto ao nacionalismo ufanista pela sublimação dos bens
naturais da pátria, uso do grotesco (estética muito explorada pelo Romantismo
[Camilo, op. cit. p. 29-31]) marcado
pela irreverência, pela ironia, pelo sarcasmo para atacar em vários aspectos a
terra natal.
Crítica ao colonialismo cultural do
país. A palmeira transforma-se em macieiras
da Califórnia e o sabiá, em gaturamos
de Veneza para ressaltar o estrangeirismo que grassa pela terra, apontando
para a dependência do país ao estrangeiro, notadamente aos Estados Unidos e à
Europa, ou seja, todo o mundo civilizado ocidental.
Rebaixamento, com ranço racista, do
movimento literário antecedente ao Modernismo, o Simbolismo, na figura do poeta
negro Cruz e Souza seu principal representante. Rebaixamento racista por
colocar ironicamente pretos em torres de ametista,
pois, embora o mencionado poeta simbolista tenha vindo do baixo estrato social,
filho de país escravos, fez, no entender do “eu-lírico”, arte alienada, fechado
em uma equivalente torre de marfim.
Crítica ao exército, instituição
responsável pela defesa da pátria, metonimicamente representado por uma de suas
mais importantes patentes, a dos sargentos, pela atribuição irônica de valores
culturais que, a bem da verdade, lhe são tradicionalmente considerados
estranhos, criando um efeito de nonsense.
Crítica grosseira à intelectualidade
do país. Os pensadores são prostitutas que se vendem a prazo.
Apelo à oralidade pelo uso de termos
coloquiais — A gente; sururus — procedimento característico do Modernismo
brasileiro, que coloca num nível pedestre a relação entre o povo, a gente, e
seus representantes políticos, metaforizados em oradores, e equiparados a
pernilongos, inseto comum de regiões tropicais, hematófago, transmissor de
doenças, inconveniente pelo desassossego noturno que provoca e pelo desconforto
da coceira resultante de sua picada; banaliza as relações familiares sob os
olhares de uma Mona Lisa que só pode ser uma cópia, pois o original está no
Louvre. Cópia provavelmente medíocre pendurada na parede de uma sala de uma
casa de uma família burguesa classe média medíocre sem classe.
Se no hipotexto, o poeta, exilado
numa terra estrangeira, distante da terra natal, pede a Deus que não morra
antes de rever sua pátria, em
Murilo Mendes , o “eu-lírico” morre sufocado na própria terra
natal, sentida como uma terra estrangeira.
A terra parece tão estranha aos olhos do poeta que ele se sente um
exilado na própria pátria.
De repente a voz poética dá a
impressão que vai mudar de rumo e entrar pelo caminho do nacionalismo ufanista
ao sublimar flores (mais bonitas) e frutas (mais gostosas) trazidas à cena
acompanhadas do mesmo possessivo coletivo — nossas
— mas um expedito adversativo — mas
— recoloca as coisas no seu devido desaprumo desabonador, agora de cunho
econômico-financeiro: custam os olhos da cara.
Assim, em praticamente catorze dos
dezesseis versos do poema, o grotesco está presente para rebaixar as coisas da
terra do poeta. Nos dois últimos e isolados versos, porém, ele não resiste.
Sentindo-se exilado na própria terra, para ele toda ela descaracterizada;
sentindo saudades da pátria na própria pátria, anseia lamentosamente poder
desfrutar uma verdadeira fruta da terra (carambola no entender do poeta) e
ouvir um genuíno sabiá. Escorrega, finalmente, na casca de banana do saudosismo
nacionalista. Deixa-se invadir pela nostalgia, nostalgia da boa, nostalgia
romântica.
Bibliografia
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CAMILO, Vagner –
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GENETTE, Gerard
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KRISTEVA, Júlia
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Fernandes, 5ª. ed. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.
MENDES, Murilo
(1994) – Poesia completa e prosa, volume único. Organização e preparação do
texto Luciana Stegagno Picchio. Rio de Janeiro, Nova Aguilar.
SANT’ANNA,
Affonso Romano de (2003) – Paródia, paráfrase & cia. 7ª. ed. São Paulo,
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VASCONCELLOS, Paulo Sérgio de (2001) – Efeitos
intertextuais na Eneida de Virgílio.
São Paulo: Humanitas/FAPESP.(do livro "Ensaios Desnecessários" - inédito)
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