domingo, 1 de agosto de 2021

Interstícios

a tiracolo da vacuidade de meu dia 

capturo o que me resta de ânimo e 

me contorço pelas frinchas 

da massa letárgica de automóveis

que entopem implacáveis

o espaço locomotivo 

buracos borrados de asfalto e

alcanço o outro lado da calçada onde

arrastado por acachapante cotidianidade

busco em meu âmago força e

me imiscuo pelas frestas 

da multidão de pessoas 

replicantes permanentemente

avançando avassaladora 

do espaço coalhado de prédios espetados 

no chão não beijado pelo papa 

chego ao condomínio e

me esgueiro numa réstia

do bloco de ocupantes do elevador que

não me apresenta nenhum rosto amigável 

apesar de morar ali há mais de dez anos

no vigésimo me escafedo do antromóvel e

me espremo

pelo lusco-fusco do estreito corredor 

para por fim escorregar

na solidão do cubículo batizado de lar

semi-ileso de corpo plenileso de mente

abro a janela da sala e respiro com peito apertado 

o ar poluído de fim da tarde

depois a água morna do chuveiro

caindo na cuca quente

me faz sentir certo conforto 

encorajador da procura de uma trinca

no monolítico mal-estar

a que a realidade me obriga 

para por ela me infiltrar e tentar alcançar

um sentimento esperançoso

de que o viver humano poderia ser menos penoso

porém 

constrito no exíguo espaço

o ingênuo pensamento sem demora

escorre pela nudez do real 

arrastado pela espuma do sabonete

misturado à sujeira do corpo

para o chão do boxe

e daí para a tampa do ralo

onde flutua por instantes até ser lançado 

através dos orifícios da tampa 

para a fétida escuridão do esgoto


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