segunda-feira, 4 de agosto de 2014

A Agulha, a Linha e o Alfinete (ou “Outro Apólogo”)

            Ia ter um grande baile na cidade e a rica senhora decidiu, como era seu costume, fazer um vestido novo. Chique. Lindo. Maravilhoso. Mandou então vir a modista à casa para escolher modelo, tecido, adereços etc. Cumprida essa etapa, a modista retornou a seu atelier; traçou o molde conforme o escolhido; reuniu o material necessário, designou a costureira mais experiente de sua equipe para a tarefa e mandou dar início imediato ao importante trabalho. A costureira cortou o tecido de acordo com o molde; juntou as partes; pegou da agulha; pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Aquele vestido era pra ser feito à mão, com o máximo capricho possível. Iam, Agulha e Linha, andando pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos ágeis da costureira quando a Agulha teceu as seguintes considerações:
            — E aí prezada Linha? Você não repara não que esta distinta costureira só se importa comigo? Que sou eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, cosendo...
            — Cosendo? – disse a Linha. Você fura o pano, e olhe lá, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço de tecido a outro, dou feição aos babados...
            — E daí? Se eu não furasse o pano não haveria costura. Eu é que vou adiante, puxando você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...
            — Faz e manda? Ora essa!  Quem controla você é a costureira. Nesta peça, minha cara, você tem um papel secundário; vai adiante, mas tem que seguir o caminho do molde. Eu não; eu uno as partes e formo o todo. É por isso que nesta peça sou eu a artista principal, alinhavou a Linha.
            — A senhora é vaidosa ambiciosa, isso é o que a senhora é; quer sempre só ajuntar, ajuntar mais e mais pano, disse a Agulha com agudeza.
            — E a senhora o que é? Uma pretensiosa volúvel que acha que faz um grande serviço e mal chega num lugar já quer logo ir embora, em busca de novas aventuras. Enquanto a senhora passa, eu permaneço, replicou a Linha sem perder a linha. Além disso, a senhora devia era cuidar da sua vida e deixar os outros viver em paz. Perdeu uma boa oportunidade de calar o bico, arrematou a Linha.
            — Eu disse e repito: ambiciosa, ambiciosa, ambiciosa; e direi sempre que me der na cabeça.
            — Dar na cabeça? Que cabeça? Não seja ridícula, minha cara. E a senhora tem lá cabeça? Quem tem cabeça é alfinete e a senhora não é alfinete, é agulha. E agulha não tem cabeça...
            Diante de resposta tão contundente, mesmo para uma agulha, a Agulha se calou. Dali pra frente o silêncio tomou conta da sala de costura. Terminada a jornada de trabalho daquele dia, a costureira dobrou a costura para o dia seguinte; continuou nesse e no outro, até que no quarto dia acabou a obra.
            Veio a tão esperada noite do baile. A rica senhora vestiu-se com o vestido novo com a ajuda da costureira que trazia a Agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. A Linha, para provocar a Agulha, ironizou:
            — Me diga agora, dona pretensiosa volúvel, quem é que hoje vai ao baile, no corpo da rica senhora? Quem é que vai dançar e se divertir a noite toda, enquanto a senhora volta pra caixinha de costura? Vamos, diga lá.
            A Agulha não disse um a, mas um Alfinete, desses de cabeça grande, que tinha ouvido toda a conversa pensou com seus botões:
            — Uma, porque vai à frente furando o caminho, acha que é grande coisa, mas esquece que sempre acaba logo, logo voltando abandonada aqui pra caixinha de costura. Outra, porque prende um monte de pano fica cheia de si e não leva em conta que na próxima festa a rica senhora vai usar outro vestido novo e ela vai acabar mofando esquecida no escuro do armário. Pensando bem, nesta história toda, posso me considerar mais feliz. Eu furo e fico. Eu desbravo e uno. E de tempos em tempos mudo de paisagem.


Um comentário: