“Casa
tomada” é o conto de abertura de Bestiário,
primeiro livro de contos de Julio Cortázar, lançado em 1951. Nele, podemos
depreender dois planos narrativos: um plano literal e um plano simbólico.
No
plano literal, podemos dizer, em linhas gerais, que a história é narrada em
primeira pessoa, por uma personagem masculina anônima “yo”, que vive apenas com sua irmã, Irene, um “silencioso matrimonio de hermanos”, numa casa espaçosa e antiga,
herança de seus ancestrais, localizada em Buenos Aires ,
Argentina, numa época imprecisa, posterior a 1939. Os irmãos, ambos entrados
nos quarenta anos de idade, vivem, isolados do mundo, uma rotina monocórdia de
levantar cedo, fazer a limpeza da casa, preparar as refeições e depois, Irene,
tricota, tricota obsessivamente, sentada no sofá do seu quarto, enquanto o
irmão distrai-se com leituras de literatura, em geral francesa, ou examina a
coleção de selos deixada pelo pai. Não precisam preocupar-se em ganhar a vida
porque têm uma propriedade rural que lhes garante o dinheiro necessário para
viver. Subitamente, a tranqüilidade do casal é rompida por sons imprecisos e
surdos provenientes da parte não freqüentada da casa, que é isolada do restante
da habitação por uma maciça porta de carvalho. Ao ouvir os estranhos sons o
protagonista atira-se contra a porta “antes
que fuera demasiado tarde, la cerré de golpe apoyando el cuerpo; felizmente la
llave estaba puesta de nuestro lado y además corrí el gran cerrojo para más
seguridad.” Fora essa providência, os irmãos procuram manter a rotina de
suas vidas sem tentar conhecer a causa dos estranhos sons, sofrendo no início
algum transtorno porque “ ambos habíamos
dejado en la parte tomada muchas cosas que queríamos.” Após alguns dias, os
estranhos sons passam para o lado de cá da maciça porta de carvalho, que estava
bem trancada, e começam a tomar conta de toda a casa. Os irmãos, então, passiva
e melancolicamente, abandonam a casa, com o narrador, em derradeira
providência, trancando bem a porta de entrada e jogando a chave no bueiro.
No
plano simbólico, a casa pode ser considerada como uma metáfora da memória
do narrador, espaçosa e antiga, “guardaba
los recuerdos de nuestros bisabuelos, el abuelo paterno, nuestros padres y toda
la infancia.” Talvez, a sua memória genealógica onde mantém “necesaria clausura de la genealogia asentada
por los bisabuelos”. E, quando um dia, ele morrer algum parente distante
tomará posse dela. A casa é ampla, com muitos e diferentes ambientes, e tem uma
maciça porta de carvalho, que quando aberta revela o quanto a casa é grande,
mas que normalmente está encostada, delimitando o espaço existencial do
narrador a uma pequena área da casa e deixando a maior parte dela isolada, só
esporadicamente visitada para limpeza. Metaforicamente, a maciça porta de
carvalho (logo, pode-se inferir, pesada e resistente) é o meio de controle
sobre o ato de pensar e divide a casa-memória do narrador em dois
compartimentos: a memória superficial e restrita das coisas mais próximas, do
cotidiano, e a memória dos acontecimentos longínquos, pertencentes ao passado
remoto, calcados nas profundezas da mente e ocupando-lhe largo espaço, lugar
visitado de quando em quando para ser revivificado pela remoção da poeira que
vai, implacavelmente, depositando-se
sobre os objetos-lembranças que ali se acumulam.
Irene,
se nos remetermos a Hesíodo, é a divindade grega que juntamente com Eumônia e
Dike simbolizam as Horas, deusas ligadas ao tempo de existência dos seres
humanos, irmãs das Moiras, Cloto, a fiandeira, que tece o fio da vida,
Láquesis, a distribuidora da Sorte, que atribuí a cada homem o seu destino, e
Átropos, a que leva a tesoura com a qual corta o fio da vida. Admitido um
deslocamento provocado pelo autor nas características de Irene, que passaria a
ser fiandeira, e tricota obsessivamente sem parar, podemos associá-la
metaforicamente ao tempo que tece inexoravelmente a trama da vida. Como
é tempo transcorrido no espaço da casa-memória do narrador, é tempo mítico,
circular, nome repetido trinta vezes nas poucas páginas do conto, metáfora do
cotidiano vivido pelo protagonista.
À
metáfora casa-memória associa-se metonimicamente a metáfora Irene-tempo,
estabelecendo o binômio espaço-tempo no qual o narrador vive as superficiais
lembranças do seu dia-a-dia. Eis, porém, que do fundo da memória-casa começam
a manifestar-se estranhos e indesejáveis
sons, imprecisos e surdos, emitidos por metafóricos fantasmas,
ruídos-lembranças emanados do passado a perturbar o presente. A porta maciça de
carvalho da memória-casa é rapidamente fechada e bem trancada, tentativa
desesperada para impedir a invasão dos perturbadores ruídos em todo o espaço da
casa-memória. Há um período de trégua no qual o protagonista tenta restabelecer
a rotina de sua vida, embora sofra transtornos por ter deixado na parte tomada
muitas coisas que desejava: “Estábamos
bien, y poco a poco empezábamos a no pensar. Se puede vivir sin pensar.”
Procura nos períodos de vigília afastar as lembranças, mas à noite, a mente é
invadida (os parênteses são marca
concreta a indicar essa inserção) por agitados sonhos que “consistían en grandes sacudones que a veces
hacían caer el cobertor”, entrecortados por “mutuos y frecuentes insomnios.”
A
trégua dura pouco. A maciça porta de carvalho é incapaz de manter os estranhos
sons-lembranças confinados nas profundezas da casa-memória. Os indesejáveis
ruídos passam para o lado de cá e invadem a casa toda : “Nos quedamos escuchando los ruidos, notando claramente que eran de este
lado de la puerta de roble”. O narrador-protagonista, diante do avassalador
assalto do passado em sua memória decide abandonar a casa, sai para a rua,
deixando para trás tantos bens que lhe são tão caros, leva apenas a roupa do
corpo e um relógio-pulseira. Irene larga os fios do tricô, tecedura mítica, que
se estendem para o interior da casa. O tempo circular do passado deixa de
operar, perdendo-se na casa-memória. O tempo passa a ser o tempo linear,
cronológico, medido pelo relógio-pulseira, e muito desse tempo já se passou: “Ya era tarde ahora.” Mas o tempo mítico não
é abandonado, o narrador sai da casa
abraçado à irmã (que talvez chorasse). Como derradeira ação, antes de
afastar-se, o narrador, com pesar, tranca bem a porta de entrada e joga a chave
no bueiro para evitar que algum pobre diabo venha a invadir a preciosa
casa-memória, “la casa tomada” pelo
seu passado.
(do livro “Ensaios
Desnecessários” – inédito)
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