sábado, 13 de dezembro de 2014

Casa tomada

“Casa tomada” é o conto de abertura de Bestiário, primeiro livro de contos de Julio Cortázar, lançado em 1951. Nele, podemos depreender dois planos narrativos: um plano literal e um plano simbólico.
No plano literal, podemos dizer, em linhas gerais, que a história é narrada em primeira pessoa, por uma personagem masculina anônima “yo”, que vive apenas com sua irmã, Irene, um “silencioso matrimonio de hermanos”, numa casa espaçosa e antiga, herança de seus ancestrais, localizada em Buenos Aires, Argentina, numa época imprecisa, posterior a 1939. Os irmãos, ambos entrados nos quarenta anos de idade, vivem, isolados do mundo, uma rotina monocórdia de levantar cedo, fazer a limpeza da casa, preparar as refeições e depois, Irene, tricota, tricota obsessivamente, sentada no sofá do seu quarto, enquanto o irmão distrai-se com leituras de literatura, em geral francesa, ou examina a coleção de selos deixada pelo pai. Não precisam preocupar-se em ganhar a vida porque têm uma propriedade rural que lhes garante o dinheiro necessário para viver. Subitamente, a tranqüilidade do casal é rompida por sons imprecisos e surdos provenientes da parte não freqüentada da casa, que é isolada do restante da habitação por uma maciça porta de carvalho. Ao ouvir os estranhos sons o protagonista atira-se contra a porta “antes que fuera demasiado tarde, la cerré de golpe apoyando el cuerpo; felizmente la llave estaba puesta de nuestro lado y además corrí el gran cerrojo para más seguridad.” Fora essa providência, os irmãos procuram manter a rotina de suas vidas sem tentar conhecer a causa dos estranhos sons, sofrendo no início algum transtorno porque “ ambos habíamos dejado en la parte tomada muchas cosas que queríamos.” Após alguns dias, os estranhos sons passam para o lado de cá da maciça porta de carvalho, que estava bem trancada, e começam a tomar conta de toda a casa. Os irmãos, então, passiva e melancolicamente, abandonam a casa, com o narrador, em derradeira providência, trancando bem a porta de entrada e jogando a chave no bueiro. 
No plano simbólico, a casa pode ser considerada como uma metáfora da memória do narrador, espaçosa e antiga, “guardaba los recuerdos de nuestros bisabuelos, el abuelo paterno, nuestros padres y toda la infancia.” Talvez, a sua memória genealógica onde mantém “necesaria clausura de la genealogia asentada por los bisabuelos”. E, quando um dia, ele morrer algum parente distante tomará posse dela. A casa é ampla, com muitos e diferentes ambientes, e tem uma maciça porta de carvalho, que quando aberta revela o quanto a casa é grande, mas que normalmente está encostada, delimitando o espaço existencial do narrador a uma pequena área da casa e deixando a maior parte dela isolada, só esporadicamente visitada para limpeza. Metaforicamente, a maciça porta de carvalho (logo, pode-se inferir, pesada e resistente) é o meio de controle sobre o ato de pensar e divide a casa-memória do narrador em dois compartimentos: a memória superficial e restrita das coisas mais próximas, do cotidiano, e a memória dos acontecimentos longínquos, pertencentes ao passado remoto, calcados nas profundezas da mente e ocupando-lhe largo espaço, lugar visitado de quando em quando para ser revivificado pela remoção da poeira que vai, implacavelmente,  depositando-se sobre os objetos-lembranças que ali se acumulam.
Irene, se nos remetermos a Hesíodo, é a divindade grega que juntamente com Eumônia e Dike simbolizam as Horas, deusas ligadas ao tempo de existência dos seres humanos, irmãs das Moiras, Cloto, a fiandeira, que tece o fio da vida, Láquesis, a distribuidora da Sorte, que atribuí a cada homem o seu destino, e Átropos, a que leva a tesoura com a qual corta o fio da vida. Admitido um deslocamento provocado pelo autor nas características de Irene, que passaria a ser fiandeira, e tricota obsessivamente sem parar, podemos associá-la metaforicamente ao tempo que tece inexoravelmente a trama da vida. Como é tempo transcorrido no espaço da casa-memória do narrador, é tempo mítico, circular, nome repetido trinta vezes nas poucas páginas do conto, metáfora do cotidiano   vivido pelo protagonista.
À metáfora casa-memória associa-se metonimicamente a metáfora Irene-tempo, estabelecendo o binômio espaço-tempo no qual o narrador vive as superficiais lembranças do seu dia-a-dia. Eis, porém, que do fundo da memória-casa começam a  manifestar-se estranhos e indesejáveis sons, imprecisos e surdos, emitidos por metafóricos fantasmas, ruídos-lembranças emanados do passado a perturbar o presente. A porta maciça de carvalho da memória-casa é rapidamente fechada e bem trancada, tentativa desesperada para impedir a invasão dos perturbadores ruídos em todo o espaço da casa-memória. Há um período de trégua no qual o protagonista tenta restabelecer a rotina de sua vida, embora sofra transtornos por ter deixado na parte tomada muitas coisas que desejava: “Estábamos bien, y poco a poco empezábamos a no pensar. Se puede vivir sin pensar.” Procura nos períodos de vigília afastar as lembranças, mas à noite, a mente é invadida (os parênteses são marca  concreta a indicar essa inserção) por agitados sonhos que “consistían en grandes sacudones que a veces hacían caer el cobertor”, entrecortados por “mutuos y frecuentes insomnios.
A trégua dura pouco. A maciça porta de carvalho é incapaz de manter os estranhos sons-lembranças confinados nas profundezas da casa-memória. Os indesejáveis ruídos passam para o lado de cá e invadem a casa toda : “Nos quedamos escuchando los ruidos, notando claramente que eran de este lado de la puerta de roble”. O narrador-protagonista, diante do avassalador assalto do passado em sua memória decide abandonar a casa, sai para a rua, deixando para trás tantos bens que lhe são tão caros, leva apenas a roupa do corpo e um relógio-pulseira. Irene larga os fios do tricô, tecedura mítica, que se estendem para o interior da casa. O tempo circular do passado deixa de operar, perdendo-se na casa-memória. O tempo passa a ser o tempo linear, cronológico, medido pelo relógio-pulseira, e muito desse tempo já se passou: “Ya era tarde ahora.” Mas o tempo mítico não é abandonado, o narrador sai da  casa abraçado à irmã (que talvez chorasse). Como derradeira ação, antes de afastar-se, o narrador, com pesar, tranca bem a porta de entrada e joga a chave no bueiro para evitar que algum pobre diabo venha a invadir a preciosa casa-memória, “la casa tomada” pelo seu passado.    


(do livro “Ensaios Desnecessários” – inédito)

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