domingo, 2 de setembro de 2018

Vaga visão

amanhecia
a vidraça da sala rústica
testemunhava
difusa claridade que pouco a pouco
substituía
o negrume da noite
uma aragem atrevida
percebendo um dos vidros da vidraça quebrado
escafedia-se para o interior
espalhando frio no ambiente

o homem
fechou o volumoso livro de aspecto envelhecido
pousou-o sobre a mesa de madeira carunchada
apagou o lampião
levantou-se lentamente
amassando a ponta de mais um cigarro
no tosco improvisado cinzeiro
entupido de guimbas e cinza
raspou a garganta para soltar o pigarro crônico que
há anos o acompanhava
espreguiçou-se
vestiu o gibão
dobrado no espaldar da cadeira de palha
única que havia na sala
esticou as perneiras
bateu duas ou três vezes as alpargatas
contra o chão cimentado
ajeitou o chapéu de couro na cabeça e
saiu porta afora

não se enxergava um palmo diante do nariz
cada beco
era dominado pelo cinceiro

o bléin-bléin-bléin do cincerro
vindo de um ponto perdido do meio do brancor geral
provavelmente alguma vaca recém-parida
conduzindo o sinuelo
para mais uma jornada de pastagem
feria com nostalgia os ouvidos
o homem
caminhou na direção do sinceiro
plantado ao lado da casa
seu verdadeiro companheiro sincero
pernoitava ali
numa cocheira improvisada

o homem
levantou a aldraba e
abriu a porteira apodrecida

o animal
soltou um brando relincho
parecendo querer saudar aquele que
chegava novamente tão cedo
foi a passo em sua direção

o homem
apanhou a albarda
há muito se fora o tempo dos arreios com adereços de metal
apoiada na cerca meio bamba e
ajustou-a sobre o lombo do cavalo
escondendo parte de suas costelas
recolheu a alabarda
caída no chão
montou
empunhando a arma
apontada para frente
imprimiu um trote ligeiro na montaria

posando de cavaleiro
furou a densa neblina
desaparecendo sem deixar vestígio

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