domingo, 5 de novembro de 2017

Beleza pura

prometo de hoje em diante
não ser mais pessimista
este sujeito mal-humorado
implicante que em tudo vê defeito
vou deixar a ironia de lado
e enxergar o lado bom da vida
vou olhar este vasto mundo
imundo
com olhos de brandura meigos de ternura
vou achar tudo beleza pura

quando eu encontrar um bando
de crianças famélicas
sujas maltrapilhas abandonadas
mendigando pela cidade
vou achar uma beleza
e pensar em contrapartida
“mas também tem um montão
de criança bem tratada bem alimentada
que frequenta escola cara e usa roupa de grife”

quando eu passar por uma
das centenas de favelas que pululam
aos quatro cantos desta magnífica metrópole
com seus milhares de barracos ao estilo gaudí
paredes feitas de madeira velha e pedaços de papelão
piso de terra batida teto de restos de lona plástica
amontoados uns sobre os outros
em tremenda promiscuidade
fedor de cocô no ar exalando
de esgoto que escorre aberto ao céu
vou achar uma beleza
e pensar em contrapartida
“mas também tem um montão
de gente que mora em casa de alvenaria
com todo saneamento básico
sobrado geminado uns
sobrado semi-isolado outros
alguns em
sobrado isolado dos dois lados
ou apartamento bem montado
tem gente até que mora
bem acima do inferno do rés do chão
lá no alto quase dentro do céu
em cobertura milionária
de não sei quantos mil metros quadrados”

quando eu andar distraído desavisado
por rua deserta ou mesmo movimentada
e aí ter a oportunidade de ser abordado
por um ou mais laboriosos cidadãos
a pé de carro ou de motocicleta
sem muita noção de boa educação
com um baita revólver na mão
apontado bem para o meio da minha cabeça
solicitando que eu entregue minha carteira
vai ser legal à beça
vou achar uma beleza
e pensar em contrapartida
“até que tive uma baita de uma sorte
poderia ter sido levada também a vida
por bala mancomunada com a morte
porém foi levado apenas o dinheiro
fruto do trabalho de um mês inteiro”

quando eu caminhar ao longo das margens
dos rios córregos ribeirões que cortam o
sagrado solo desta imensa capital do estado
e encontrar principalmente depois de boa chuvarada
flutuando sobre as águas escuras cheirando à bosta
milhares de garrafas plásticas de embalagem
e densa espuma de algum produto tóxico
competindo pra ver quem é que consegue
cobrir mais área de superfície
vou achar uma beleza
e pensar em contrapartida
“o ser humano é mesmo genial
primeiro faz água pura cristalina cheia de vida
virar um líquido fétido podre morto
depois usando o poder de sua tecnologia
volta a transformar
uma verdadeira merda fluida
de novo em prometida água potável
própria pra se beber ou ao menos se lavar”

quando eu me encontrar perdido
no meio da multidão que invade
shopping centers supermercados
parques clubes jardins
restaurantes bares lanchonetes
teatros cinemas casas de shows
consultórios ambulatórios hospitais
ônibus trens aviões
nos fins de semana
nos meios de semana
nos inícios de semana
vou achar uma beleza
e pensar em contrapartida
“já imaginou se não tivesse todo esse povaréu
como seria triste nossa vida
quão terrível nossa solidão
ia faltar tanto calor humano”

quando eu me pegar preso
num destes puta congestionamentos
do caótico trânsito urbano de veículos
de manhã indo para o trabalho
de noite voltando pra casa
durante o dia rodando daqui pra lá de lá pra cá
ou nos fins de semana e nas vésperas de feriados
indo pro litoral pra enfrentar nas padarias
fila pra comprar leite pão e cigarro
pegar micose na areia da praia
ingerir uns coliformes fecais a mais
ao tomar agradável banho de mar
vou achar uma beleza
e pensar em contrapartida
“pelo menos quando eu chegar vou poder relaxar
beber uma cervejinha assistindo ao meu time jogar
se a esposa se lembrou de botar pra gelar
se as crianças tiverem ido mais cedo pra cama
se a sogra não resolveu dar as caras pra aporrinhar”

é por essas e por outras que doravante
posso até jurar por deus se quiserem
conforme prometi acima
não serei mais pessimista
nem menos

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