sábado, 22 de novembro de 2014

A Raposa e as Uvas

     A Raposa caminhava por um caminho que costeava a encosta de um morro, ainda inacessível, na época em que aconteceu este acontecimento, ao tráfego de diligência, embora houvesse forte tráfico de influência dos poderosos locais junto às autoridades constitucionalmente constituídas para mudar essa situação e transformar (o caminho) em rota comercial passível de possível exploração comercial, transformado (o morro), graças à diligência de laboriosas mãos de inúmeros trabalhadores braçais obrigados a trabalhar praticamente de graça, sem achar a mínima graça e jamais ouvir sequer um simples obrigado do prepotente patrão, serviçais que eram, do proprietário da terra, num magnífico parreiral de uvas cabernet sauvignon.
     O dia estava nublado, mas para a Raposa era como se estivesse um ensolarado dia radiante com os raios solares refletindo em cada grãozinho de areia do caminho. A Raposa era uma otimista. Olhava tudo pelo lado bom. Encarava tudo pelo lado positivo das coisas. Era uma assídua leitora de livros de auto-ajuda. Não por precisão, mas por convicção. Vivia feliz. Muito feliz. Mas, especialmente, naquela tarde, aliás, não só naquela, mas em todas as demais tardes, não só tardes, mas manhãs e noites também, que lhe pareciam todas esplendorosas, vinha satisfeita com a vida, não só com a vida, mas também com o estômago, e em paz com sua consciência raposável. Acabara de comer (literalmente) várias galinhas de um galinheiro nas cercanias pulando a cerca. Fartara-se sem sentir qualquer falta moral, pois, aprendera com seus pais, que por sua vez também tinham aprendido com seus pais (deles) etc., que as galinhas foram feitas por Deus para serem comidas, particularmente, pelas raposas e ela, apenas dava continuidade a tal privilégio histórico, mantendo assim uma espécie de tradição da sua espécie. Assobiava alegremente uma ária de Verdi quando, de repente, pôs tento em alguns cachos de uva do parreiral e pensou de si para si:
     — Oh! Como a mãe-natureza é maravilhosa. Vejam – pensou esse verbo nos seus respectivos: modo, tempo, número e pessoa, com um sentido genérico, indefinido, sem se dirigir [mentalmente] a ninguém especificamente – que belas uvas. Estão maduras (enquanto ela assim pensava, continuava assobiar a ária de Verdi). Uma sobremesazinha até que vai cair bem agora, depois de tanta galinha. E uva, dizem, é digestivo. Vou aproveitar a oportunidade e provar alguns cachos.
Porém, o otimismo da Raposa, talvez, perturbasse psicologicamente de alguma forma ainda desconhecida seu raciocínio e daí turvasse sua visão, pois as uvas não estavam de forma alguma maduras, as uvas estavam verdes. E bem verdes. Vendo uma escada deixada ali à beira do caminho, sempre movida pelo seu inseparável espírito otimista, exclamou (dela para ela mesma, uma vez que estava sozinha):
     — Louvada seja a boa alma que providencialmente deixou esta escada aqui à beira do caminho, certamente, para facilitar minha vida permitindo, assim, que eu apanhe as uvas sem necessidade de ter que dar aqueles pulos ridículos para tentar, inutilmente, apanhá-las, conforme sucedeu com minha ancestral protagonista de outra versão bem mais antiga desta fábula.
Puxou a escada para junto de um dos pés de uva; subiu; colheu alguns cachos; desceu; e passou a desfrutar da fruta fruto de sua colheita. Enquanto mastigava os bagos colhidos franzia a testa, fechava os olhos, de onde escorriam grossas lágrimas, cerrava os lábios, crispava a face e, em face daquela situação, pensava:
     — Ah! Como estão deliciosas — motivada por seu permanente otimismo, sem levar em conta o sabor acerbo da fruta verde.
     Degustado o acepipe, sob o ponto de vista otimista dela, é claro, recolocou a escada no lugar à beira do caminho, pois além de otimista era uma raposa ordeira, e retomou seu caminho. Mal deu alguns poucos passos, uma cólica fenomenal transpassou-lhe as tripas fulminando-a. Virou almoço de urubu.



(do livro “Contos Medonhos”)

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